Um pensamento ético, por mais distinto que seja, é sempre decorrente do conceito global de “Ética”[1] e uma parte fundamental da Filosofia e da Moral. Deste modo, o problema ético pressupõe sempre uma escolha, uma opção e uma direção. A ética compreende, portanto, um vasto leque de possibilidades de natureza moral e relacionadas com múltiplos códigos de conduta, entre outros regulamentos deontológicos.[2]
Qualquer conceito ético, por mais específico ou global, é sempre uma definição em aberto. Como consequência, a ética não é finita nem exata, mas perpetuamente uma matéria subjetiva. A ética possui um carácter individualista, embora possa ser entendida na ótica coletiva ou social. A ética é uma interrogação permanente[3], fruto de um produto cultural, dado que cada sociedade possui condutas éticas e deontológicas diferentes.
A ética está continuamente em mudança, dado que faz parte da dialética da vida, ou seja, quanto mais complexa for a existência, mais emaranhada será a ética que a rege. A ética é normativa e tem um sentido impositivo, o que justifica o seu poder. Daí o pensamento ético tender a ser autónomo, o que pressupõe o exercício de um livre-arbítrio. Também pode ser confundida com a Moral, mas não é nitidamente um pensamento ou ato moral; confunde-se inclusive com o Direito, mas não é um conjunto de leis.[4]
A ética acompanha a evolução do pensamento e está compreendida na estrutura básica da sociedade. O que possibilita o “Homem social” é a ética e a obediência a essa mesma ética, sendo lícito afirmar que é responsável pela vida em comunidade. Seria difícil imaginar uma sociedade sem ética, porque, caso contrário, viveríamos num meio anárquico, sem leis ou regras, num estado permanentemente “selvagem”. A ética é a expressão da coesão humana, sendo cada vez mais uma reivindicação nos domínios das ciências da vida, aonde o conceito de “bioética”[5] é constantemente revisto. Assim sucede na realidade portuguesa, crescentemente atenta às orientações científicas das questões da Bioética.[6]
Problematização/Desenvolvimento
No decurso profissional da prática da Enfermagem, somos confrontados com inúmeras questões de natureza ética. É, sem dúvida, uma premissa constante nestas atividades profissionais.[7] Devemos informar inteiramente o doente? Nem sempre o profissional de saúde está devidamente informado e formado. A exigência formativa e informativa deve ser uma constante para, em última análise, sabermos responder a novas problemáticas, daí a importância de acompanhar a evolução dos conhecimentos.
Na sociedade em que vivemos, num mundo cada vez mais globalizado, o acesso há informação é imperativo. Não podemos cair na info-exclusão, pois a informação é Poder e Saber. O caminho da ética, ou o melhor caminho para a ética, surge através do acesso a esse mesmo conhecimento.
Uma discussão científica em torno dos eixos «beneficência», em contraponto com a “não-maleficência”, é um princípio constante nas ações e práticas da Saúde, com especial acuidade no campo da Enfermagem. [8] É, notoriamente, uma preocupação de cariz filantrópico e de assistência ao outro, uma exigência para todos os profissionais nas áreas da Saúde. Muito além dos tradicionais conceitos do “Bem” e do “Mal”, que tanto preocuparam os teólogos e pensadores do mundo ocidental [9], sem esquecer a capacidade de escolha que o dote do livre-arbítrio concede, atualmente a discussão/aplicabilidade do ‘fazer bem’ e do ‘não fazer mal’ reveste-se da maior pertinência. É certo que todos nós, enquanto seres dotados de uma consciência social, faremos escolhas, tomaremos decisões e, forçosamente ou não, acarretamos com as demais consequências.
É um reflexo do quotidiano, bem patente e com grande impacto no meio hospitalar, por exemplo. É nesse local que, muitas das vezes, se decide o grande jogo da vida e da morte, da saúde e da doença, da sanidade e da insanidade, do alívio ou do desespero. É no combate contra a dor e o sofrimento que aflige o paciente que levam a que, ultima ratio, se tomem opções e escolhas, enfrentando uma maior ou menor autonomia de acção e passível de uma adequada justiça.
Entre as múltiplas definições de “beneficência” pode entender-se que seja um conceito puramente ético, no qual uma acção é moralmente correta quando as suas consequências são mais favoráveis do que desfavoráveis a todos, exceto ao agente que a concretiza, desde que obedeça a códigos [10] e condutas éticas.[11] Também pode revelar-se uma forma de altruísmo, o qual se opõe ao egoísmo puro [também ético]. É, sobretudo, uma tendência humana inata, ou instintiva, por assim dizer.
No seu oposto, o egoísmo ou a “maleficência” [convém não esquecer que deve procurar-se a “não-maleficência”] nascem perspetivas divergentes, isto é, à busca de conciliação dos direitos individuais com os direitos do outro e os direitos coletivos: “A minha liberdade termina aonde começa a do outro”. Trata-se, então, de um modelo de coexistência altruística. Contudo, existem graus de altruísmo dificilmente explicáveis ao abrigo da lógica de defesa dos próprios interesses – por exemplo: dar sangue, fazer doações anónimas de órgãos, morrer por uma causa, dar a vida por outro, não praticar o aborto, a eutanásia.[12] Estas atitudes parecem encontrar uma explicação ao nível das convicções éticas e denotam uma forma de altruísmo ou egoísmo, conforme as nossas escolhas.[13]
Nessa ótica, os tradicionais executantes nas áreas da Saúde, os médicos e os enfermeiros, estão na dianteira dessa mesma escolha, quantas vezes de difícil resolução ou consenso mesmo entre os nossos pares! [14] São as velhas questões éticas, sobre a decisão a tomar perante um caso de vida, neste caso na forma de um caso clínico, que norteiam as preocupações do quotidiano profissional. Só quando é ultrapassado o limiar de existência condigna fará sentido o movimento em prol da defesa da vida ou da eutanásia, por exemplo – neste âmbito, destacam-se as interrogações que a evolução da Bioética exige.
Conclusões
Estas questões são, em boa verdade, bastante simples, de natureza dualista ou maniqueísta, se preferirmos, embora toda essa carga simbólica se exceda, indo muito além do Bem e do Mal, tal como Friedrich Nietzsche [15] evocava nos finais do século XIX. Estas contendas são quási eternas, porque acompanham o Homem praticamente desde o berço, ou pelo menos quando possui a capacidade cognitiva de entender o “certo” ou o “errado”, ainda que a esfera infantil seja compreensivelmente nebulosa.
Com a construção da personalidade e da consciência do indivíduo, per si, as preferências e escolhas revestem-se cada vez mais de uma complexidade crescente. E assim será, até ao dia em que morrermos. Somos instados a escolher, mesmo que não queiramos optar ou decidir, especialmente no que diz respeito ao destino alheio. [16]
Não devemos descurar a procura da excelência no trabalho de assistência ao paciente, sem nunca deixar de respeitar os grandes princípios éticos. No entanto, todas estas interrogações de natureza ética permanecerão sempre em aberto.
Beyond Good & Evil, choices and dilemmas…
Referências
[1]É virtualmente impossível apontar todas as obras de referência e estudos especializados sobre o conceito de «Ética». Foi de grande utilidade para esta questão, em termos bastantes sintéticos, a consulta de LUÑO, Angel Rodriguez – Etica, Ediciones Universidad de Navarra, Pamplona, 1984.
[2]Por exemplo, veja-se «Ética», in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. X, Editorial Enciclopédia, Lisboa, [s. d.], p. 596.
[3]“Estabelecido o campo da Bioética pelo exame de suas definições, importa, agora, interrogar sobre os princípios orientadores do seu exercício. Assim, se a moral indica o que devo fazer, a Bioética, reflexão ética aplicada, indaga: Por que devo fazer? Qual é o sentido de minha acção? Com que argumentos posso justificar minhas decisões? O principialismo, entre as diversas teorias bioéticas, pensamos, é apto em oferecer importantes elementos capazes de auxiliar nos processos decisórios.” HINRICHSEN, Luís Evandro – «O que é Bioética? Tecendo uma primeira noção», in PUCRS Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica, Rio Grande do Sul, 2010, p. 16.
[4]“[…] poderíamos pensar em algumas situações do nosso quotidiano que nos levam a reflectir sobre a postura ética necessária aos profissionais da saúde, especialmente da Enfermagem, quais sejam: como eu actuo, penso e falo frente a um cliente descontrolado e agressivo? Frente a um cliente alcoolizado? […] Frente à gestante adolescente? Frente ao cliente que não coopera, não aceita o tratamento e exige alta? […] Frente à falta de estruturas das acções e do planeamento de recursos na organização dos serviços de saúde? Estas, além de outras, são questões frequentes nos contextos dos serviços de saúde e que podem nortear um debate mais aprofundado sob o ponto de vista ético. Assim, pode-se perceber que a preocupação com os aspectos éticos na assistência à saúde, não se restringe à simples normatização contida na legislação ou nos códigos de ética profissional, mas estende-se ao respeito à pessoa com cidadã e com ser social, enfatizando que a ‘essência da bioética é a liberdade, porém com compromisso e responsabilidade.’” KOERICH, Magda; MACHADO, Rosani; COSTA, Eliani – «Ética e Bioética: para dar início à reflexão», in Texto & Contexto Enfermagem, vol. XIV, n.º 1, Universidade Federal de Santa Catarina, Janeiro-Março 2005, p. 107.
[5]De entre as inúmeras definições sobre o termo «bioética», salientamos: “Bioética s. f. (1982) BIO ÉT estudos dos problemas e implicações morais despertados pelas pesquisas científicas em Biologia e Medicina [A bioética abrange questões como a utilização de seres vivos em experiências, a legitimidade moral do aborto ou da eutanásia, as implicações profundas da pesquisa e da prática no campo da genética etc.] ETIM bio- + ética.” Cf. «Bioética», in Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, vol. IV, Temas & Debates, Lisboa, 2005, p. 1302.
[6]Onde se destacam as directivas do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida [CNECV]. A Lei n.º 14/90, de 9 de Junho, que permitiu a criação do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, tem como primeira competência “analisar sistematicamente os problemas morais suscitados pelos progressos científicos nos domínios da biologia, da medicina ou da saúde em geral” [art.º 2.º, n.º 1].
[7]Uma excelente obra de referência que nos foi utilíssima: HOTTOIS, Gilbert & PARIZEAU, Marie-Hélène – Dicionário da Bioética, tradução de Maria de CARVALHO, «Atlas e Dicionários», Instituto Piaget, Lisboa, 1998, com abundantes indicações especializadas.
[9]“Segundo [São Tomás de] Aquino, todo o ser humano tem a faculdade de distinguir o bem do mal, tal como é possível separar a verdade do erro. […] Para além disso, todos os seres humanos têm a faculdade de distinguir entre bens particulares e males particulares. Aquino chama a esta faculdade de ‘conscientia’. Esta faculdade desenvolve-se com o tempo e com a experiência. Se todos os seres humanos possuem estas faculdades, então é porque tem de haver um padrão objectivo de avaliação dos actos morais.” MARQUES, Ramiro – Breve História da Ética Ocidental, Plátano Edições, Lisboa, 2000, p. 93.
[10]A actividade profissional do Enfermeiro pelo Código Deontológico [inserido no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, republicado como anexo pela Lei n.º 111/2009, de 16 de Setembro].
[11]Destacamos, entre outros organismos científicos, o Centro de Bioética e Enfermagem. Cf. VIEIRA, Margarida – «Composição das Comissões de Ética – o Enfermeiro», in Comissões de Ética: das bases teóricas à actividade quotidiana, coordenação de M.ª do Céu Patrão Neves, [s. n.], Coimbra, 2002.
[12]Para as questões bioéticas da eutanásia, ver LEAMAN, Oliver – «Bioética», in Enciclopédia da Morte e da Arte de Morrer, coordenação de Glennys HOWART e Oliver LEAMAN, Círculo de Leitores, Lisboa, 2004, pp. 62-63, com bibliografia.
[13]“Dois tipos de moralidade impregnam, então, a atitude do profissional de saúde: uma de natureza ‘altruísta’, baseada no critério do bem para o doente, e outra mais ‘corporativista’ com o propósito de afirmar um ‘ethos’ especial de defesa do prestígio profissional. É nesta perspectiva virtuosa que o princípio da beneficência se veio a constituir como o pilar ético da prática dos profissionais de saúde ao propor que se actue de modo que as consequências da intervenção sejam para o bem do doente, avaliada a proporção entre os benefícios e os riscos de qualquer intervenção.” BARBOSA, António – Manual de Cuidados Paliativos, 2.ª edição revista e aumentada, Centro de Bioética, FMUL, Lisboa, 2010, p. 661.
[14]De salientar a necessidade e importância das Comissões de Ética na prática hospitalar, de modo a gerir eventuais conflitos e inquietudes éticas.
[15]“Com os nossos princípios procuramos tiranizar os nossos hábitos para justificar ou honrar, censurar ou esconder – duas pessoas com os mesmos princípios provavelmente procuram algo fundamentalmente diferente com eles. […] O perigo é a felicidade – agora está tudo a correr bem para mim, agora amo todos os destinos – quem é que gostaria de ser o meu destino? […] A expressão mais casta que alguma vez ouvi: <Dans la véritable amour c’est l’âme, qui envelope de corps.>” NIETZSCHE, Friedrich – Além do Bem e do Mal, tradução de Sophie VINGA, «Grandes Obras», n.º 531, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1990, pp. 71-83.
[16]“Quem sabe não se deva ir além do Bem e do Mal numa busca dialéctica de melhor posição possível? Será que nos devemos contentar com as posições que alcançamos? Tais ponderações sobre as potencialidades de acção, criação e transformação social individual fazem parte da ética e do processo de constante reinvenção do ser humano em sociedade.” Barros De Luccia, Thiago Paes de – «Reflexões sobre a ética médica, a bioética e a realidade brasileira», in Revista Bioética, n.º 18, Conselho Federal de Medicina, Brasília, 2010, p. 343.
Bibliografia
BARBOSA, António – Manual de Cuidados Paliativos, 2.ª edição revista e aumentada, Centro de Bioética, FMUL, Lisboa, 2010.
Barros De Luccia, Thiago Paes de – «Reflexões sobre a ética médica, a bioética e a realidade brasileira», in Revista Bioética, n.º 18, Conselho Federal de Medicina, Brasília, 2010.
Código Deontológico [inserido no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, republicado como anexo pela Lei n.º 111/2009, de 16 de Setembro].
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, vol. IV, Temas & Debates, Lisboa, 2005.
Enciclopédia da Morte e da Arte de Morrer, coordenação de Glennys HOWART e Oliver LEAMAN, Círculo de Leitores, Lisboa, 2004.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. X, Editorial Enciclopédia, Lisboa, [s. d.].
HINRICHSEN, Luís Evandro – «O que é Bioética? Tecendo uma primeira noção», in PUCRS Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica, Rio Grande do Sul, 2010.
HOTTOIS, Gilbert & PARIZEAU, Marie-Hélène – Dicionário da Bioética, tradução de Maria de CARVALHO, «Atlas e Dicionários», Instituto Piaget, Lisboa, 1998.
KOERICH, Magda; MACHADO, Rosani; COSTA, Eliani – «Ética e Bioética: para dar início à reflexão», in Texto & Contexto Enfermagem, vol. XIV, n.º 1, Universidade Federal de Santa Catarina, Janeiro-Março 2005.
LUÑO, Angel Rodriguez – Etica, Ediciones Universidad de Navarra, Pamplona, 1984.
MARQUES, Ramiro – Breve História da Ética Ocidental, Plátano Edições, Lisboa, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich – Além do Bem e do Mal, tradução de Sophie VINGA, «Grandes Obras», n.º 531, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1990.
SMELTZER, Suzanne & BARE, Brenda – «Problemas Éticos na Enfermagem Médico-Cirúrgica», in Brunner/Suddarth Tratado de Enfermagem Médico-Cirúrgica, vol. I, tradução de Fernando Diniz MUNDIM, Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1994.
VIEIRA, Margarida – «Composição das Comissões de Ética – o Enfermeiro», in Comissões de Ética: das bases teóricas à actividade quotidiana, coordenação de Maria do Céu Patrão Neves, [s. n.], Coimbra, 2002.

Susana Cristina Silvestre Alexandre, Enfermeira Graduada no Serviço de Consultas Externas e Unidade de Tratamento de Dor da ULS da Guarda E.P.E. – Hospital Sousa Martins