Dependência
“As raízes comuns da dependência de uma série de substâncias e a alta prevalência de dependência múltipla indicam também que a dependência de substâncias deve ser considerada como um distúrbio mental complexo, com possível base no funcionamento do cérebro” (Relatório sobre a Saúde no Mundo 2001)
Do encontro repetido da pessoa com a substância aditiva em determinadas situações contextuais criticamente importantes, resultam alterações no funcionamento dos neurónios, dos circuitos nervosos da atividade metabólica, dos recetores e da expressão génica, desenvolvendo-se, frequentemente, a doença cerebral crónica - Adição a Substâncias Psicoativas (S.P.As).
Essa experiência e as outras que com ela coexistem são memorizadas em circuitos neuronais que adquirem um padrão de descarga particular.
A relação do indivíduo com a S.P.A. é realmente uma relação que modifica o design cerebral.
A dependência a S.P.A. (s) é resultado da interação complexa dos efeitos fisiológicos das drogas nas áreas do cérebro associadas à motivação, incentivo e recompensa, aprendizagem, respostas ao stress e humor (lugar das regulações biológicas para a sobrevivência).
A dependência, nos seus aspetos físico e psíquico (duas vertentes do mesmo estado) será, então, resultante da memorização e da sobre- regulação biológica e o que é memorizado não é só o estado fisiológico induzido pelo produto mas também o estado afetivo e os elementos do contexto do momento.
A adição a substâncias psicoativas é uma doença cerebral, mental, crónica, recidivante que desequilibra profundamente o individuo, reduzindo acentuadamente o seu potencial de saúde, para além de se revelar como problemática sistémica associada às conhecidas repercussões devastadoras nos equilíbrios familiar, social e de saúde pública.
Tratamento farmacológico dependência de opiáceos
“A qualidade do tratamento para a dependência de drogas é o resultado de uma combinação de fatores que incluem, entre outros, boa infraestrutura, um número suficiente de pessoal competente, uma atuação em equipa, tempo adequado dedicado a cada paciente, regras clínicas e legislação clara em relação às drogas, uma variedade de métodos de tratamento oferecidos, recursos disponíveis e gerenciamento de casos. Programas de tratamento de qualidade disponibilizam um serviço que é atraente e acolhedor para os pacientes em potencial.” (UNODC. Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas E crimes, 2009).
A farmacoterapia com opióides estabilizando a fisiologia dos doentes, diminui os riscos de doença social, física e mental.
Muitos estudos têm documentado, relativamente aos tratamentos com opióides de ação prolongada, como a Metadona e a buprenorfina/ Buprenorfina-Naloxona, segurança, eficácia e efectividade (QPCN)
O tratamento de manutenção com agonistas opióide de ação prolongada demonstrou ser eficaz na redução da incidência de infeções por VIH e Hepatite e a taxa de criminalidade, com melhoria da qualidade de vida (QPCN)
Por possuírem ação prolongada os tratamentos de manutenção com agonista opióides de ação prolongada (Metadona, Buprenorfina e Buprenorfina/naloxona) evitam flutuações pronunciadas na bioquímica dos recetores e as sensações subjetivas resultantes.
Extintas as flutuações, com o bloqueio total dos recetores opióides, atinge-se um estado de equilíbrio, e, portanto, a dose terapêutica.
Nota: O termo opiáceo refere-se à origem da substância; são aquelas que se extraem da papoila ou são produtos químicos derivados da morfina.
O termo opióide serve para designar as substancias endógenas ou exógenas que têm um efeito análogo à morfina- são ligandos dos receptores opióides e têm actividade intrínseca-
A prolongada ausência de uma experiência gratificante intensa pode contribuir para a extinção do comportamento condicionado, do comportamento aditivo.
Se utilizados sob orientação médica competente e com cumprimento rigoroso da prescrição, os opióides de ação prolongada podem, por si só, contribuir significativamente para o controlo da dependência opióide, garantido abstinência, conforto e prevenindo a recaída, por longos períodos de tempo.
A consecução destes objetivos terapêuticos depende de se ter atingido a dose terapêutica e requer decisivamente a utilização da via de administração adequada, numa toma/ dia (só excecionalmente se subdivide a dose) preferencialmente de manhã…. e de mudanças psicossociais.
A dose correta, Terapêutica, que corresponde ao bloqueio opióide e à estabilização fisiológica, é a necessária para facilitar a consecução dos objetivos terapêuticos, que na maioria dos pacientes, são:
- Eliminar os sintomas de abstinência
- Suprimir ou eliminar o desejo compulsivo/craving
- Eliminar o consumo de heroína e outras SPAs
- Evitar os efeitos secundários (por medicação excessiva ou insuficiente)
- Atingir sensação de conforto e sono satisfatório
(Grande parte dos pacientes consegue-o com, 8-24 mg por dia de buprenorfina ou Bup/Naloxona e com 60-120 mg por dia de Metadona numa só toma dia-QPCN)
A buprenorfina (opióde de ação parcial) é aprovada, em Portugal em Outubro de 2002, para o tratamento da dependência de opiáceos.
Há vantagens nos tratamentos com opióides parciais (Buprenorfina e Buprenorfina/Naloxona) relativamente aos totais (Metadona) como, o baixo grau de dependência, a menor toxicidade, a inibição da acção de outros agonistas (no consumo simultâneo não ocorre a euforia adicional, o que dissuade o seu consumo) e o efeito antidepressivo.
O tratamento abrangente combina Farmacoterapia e Tratamento psicossocial por longos períodos de tempo e esta condição melhora os resultados, diminui os riscos, estabiliza a fisiologia dos pacientes e ajuda a mudar comportamentos e respostas a estímulos para a recaída (QPCN).
Com a introdução em Portugal do fármaco buprenorfina/naloxona, comercializado com o nome Suboxone houve uma melhoria significativa no paradigma do tratamento do doente toxicodependente. O que resultou desta inovação foi a redução do mau uso da buprenorfina que se verificava cada vez mais entre os usuários de drogas ilícitas. A associação de naloxona, só atuante por via endovenosa, dissuade o mau uso/ desvio do Buprenorfina porque produz menos gratificação se injetada, precipita sintomas de abstinência se tiver havido consumo recente de agonista total e porque, também pelas anteriores razões, tem um valor de transação baixo no mercado negro.
Um trabalho de investigação realizado recentemente na Galiza, (Carrera.I., Sanchez.L., Pereiro.E., Flórez.G.,Conde.M.,Pino.C.,Serrana.M.,Casado.M.A.,Grupo TSO Galicia ,2014), que avaliou o grau de satisfação dos utentes em programa de substituição com metadona ou buprenorfina/naloxona, concluiu que os doentes medicados com buprenorfina/naloxana consideraram este o tratamento que melhor cumpria os objectivos a que se propunha.
Mitos e Preconceitos ligados ao tratamento de manutenção com opióides de ação prolongada
- A dose de opióide prescrita deve ser o mais baixa possível, para viciar menos
- A duração do tratamento pretende-se muito curta para acabar com a dependência
- A dose de Buprenorfina tem mais “efeito” quando repartida
- Heroína e substitutos são a mesma “droga”
1. É fundamental que o médico assuma a importância da dose terapêutica e partilhe esse conhecimento com o doente; o distúrbio aditivo alterou definitivamente o substrato neurológico comprometido e portanto o opióide prescrito não agrava esta situação; pelo contrário, estabilizará estas zonas que se adaptaram para funcionar com “mais quantidade de opióide”.
2. A duração do tratamento deverá ser aquela que representa um benefício para o doente e porque se trata de uma doença crónica recidivante, na maioria dos casos, obriga a um tratamento farmacológico de manutenção por períodos longos de tempo.
3. Acontece, sobretudo, se o indivíduo não experimentou conforto, não atingiu a dose terapêutica e vai tentando formas para atingir bem-estar; também pode ser opção do doente que quer manter as flutuações para continuar a experimentar o efeito sujectivo da recompensa opióide.
As tomas repartidas são causa muito frequente de desequilíbrio, emagrecimento, perturbações do sono, consumo de SPA (s) lícitas, prescritas ou não, e ilícitas, favorecendo a recaída.
4.Opióides são substâncias que atuam ligando-se aos recetores opióides; as diferenças entre eles são devidas não tanto a diferenças no seu efeito neuroquímico, que é sobretudo da farmacocinética apensa, mas por atributos sociais e mentais que se lhes associam.
A designação “tratamento de substituição” utiliza-se comumente na situação em que doentes dependentes de heroína são inscritos num programa de medicação com um agonista opióide. Na nossa opinião não é uma designação feliz pois induz e reforça alguns dos mitos e preconceitos associados a estes tratamentos que frequentemente comprometem o sucesso terapêutico.
“Uma das primeiras atitudes a valorizar para tratar a pessoa doente, com que se possa falar, é ajudá-la a compreender a sua doença e o que é o tratamento adequado à sua condição” (Patrício, L. 2013).
O tratamento da dependência opióide deve então ser abrangente, contínuo e há benefícios inequívocos no uso medicamentos opióides de ação prolongada, em tratamentos de manutenção, realçando as vantagens inerentes dos agonistas parciais em especial da Buprenorfina/naloxona.
Referências
Patrício, L. (2013). Aditologia - Prevenção e Intervenções,154. Ponta Delgada. Letras Lavadas
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Pratta,E.M.M.(2009).O Processo Saúde-Doença e a Dependência Química: Interfaces e e Evolução. Psicologia: teoria e Pesquisa, 25 (2), 203-211.
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UNODC. Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas E crimes (2009).Da coerção à coesão: Tratamento da dependência de drogas por meio de cuidados em saúde e não da punição, (9). Vienna, Áustria.
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Carrera.I., Sanchez.L., Pereiro.E., Flórez.G.,Conde.M.,Pino.C.,Serrana.M.,Casado.M.A.,Grupo TSO Galicia (2014). Estudio sobre la percepcion de los usuários de las Terapias de Substituición com Opiáceos en la Red Gallega de Drogodependencias-Una Perspectiva Cualitativa. XVI ornadas Nacionales de Patologia Dual. Valência.
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Teixeira, J. Marques. Factores Biológicos e Toxicodependência, Revisão de estudos no ãmbito da neurobiologia das drogas. Toxicodependências, Ano 4, nº3. (1998) Edição SPTT
Costa, A. Medicamentos e substituição opióide. Textos das Taipas, Politoxicodepências- Utilidade e Nocividade dos medicamentos, Interações: somáticas- psicológicas.sociais-culturais ( 2001) Edição CAT das Taipas
QPCN- http.//www.qpcn.eu/
Dra. Manuela Fraga, médica psiquiatra coordenadora da ET do CRI de Coimbra
Dra. Maria João Pinheiro, médica de clínica geral coordenadora da ET do CRI de Aveiro