Entrevista | Dra. Luísa Pereira, Internista e Paliativista

Doenças Raras: a importância da sensibilização, da educação e da formação de médicos e doentes

Atualizado: 
12/04/2024 - 11:31
"A falta de sensibilização, educação e formação sobre as doenças raras contribui significativamente para o seu pouco reconhecimento e consequentemente para uma abordagem e tratamento, muitas vezes desadequados", refere a Coordenadora do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e da Unidade de Cuidados Paliativos Agudos e da Unidade de Doenças Raras do Hospital CUF Tejo, Luísa Pereira, em entrevista ao Atlas da Saúde, alertando para a importância de se realizarem campanhas de sensibilização, proporcionar formação médica especializada, estabelecer redes de apoio e investir em investigação. "Ter um doente bem informado oferece várias vantagens no processo de diagnóstico e na gestão da sua doença", sublinha ainda.

Embora atinjam um número pequeno de pessoas, as Doenças Raras têm, habitualmente, um impacto devastador na vida dos doentes e suas famílias, ainda assim, continuam a ser um tema pouco abordado. Na sua opinião por que motivo isto acontece? E que mudanças considera que deveriam ser feitas para mudar este cenário? 

A falta de sensibilização, educação e formação sobre as doenças raras contribui significativamente para o seu pouco reconhecimento e consequentemente para uma abordagem e tratamento, muitas vezes desadequados.  

Sendo doenças de baixa incidência, afetando individualmente um pequeno número de pessoas (apenas 5 em cada 10000), não recebem a mesma atenção que outras doenças mais comuns. Muitos profissionais de saúde não estão familiarizados com elas devido à falta de formação específica durante a sua formação académica, o que dificulta o diagnóstico preciso perante a variedade (e nalgumas situações, a complexidade) de sintomas, levando a atrasos no tratamento e na gestão adequada destas doenças. 

Para mudar este cenário, será crucial realizar campanhas de sensibilização, proporcionar formação médica especializada, estabelecer redes de apoio e investir em investigação.  

Essas medidas podem ajudar a aumentar a consciencialização, a melhorar o diagnóstico e o tratamento precoce, e fornecer melhor suporte para as pessoas que vivem com doenças raras e as suas famílias. 

Sendo a medicina interna, uma possível primeira porta de contacto com esta realidade, considera que os seus profissionais estão devidamente sensibilizados e/ou informados para as doenças raras, no geral? 

A medicina interna desempenha um papel crucial na avaliação, diagnóstico e gestão de uma variedade de condições médicas, incluindo doenças raras. No entanto, o conhecimento e a sensibilização sobre essas doenças entre os profissionais de medicina interna variam inevitavelmente. Apesar duma formação e experiência clínica diversificada, alguns médicos internistas terão menos conhecimentos e experiência prática com muitas destas condições, quer pela sua raridade, mas também pelo seu número e heterogeneidade. Relembremo-nos que já há mais de 7000 doenças raras descritas. Por outro lado, dada a rápida evolução do conhecimento na área das doenças raras, é muito difícil, que numa especialidade transversal como a medicina interna, que todos os médicos se mantenham atualizados em todas as áreas do conhecimento.  

Portanto, e não obstante que muitos médicos internistas estejam bem informados e sensibilizados para as doenças raras, outros podem precisar de mais formação para melhor atender às necessidades dos seus doentes. Investir em programas de sensibilização, educação e formação contínua é importante para garantir que todos os profissionais estejam adequadamente preparados e despertos para esses diagnósticos e que saibam orientar ou então referenciar esses doentes para centros onde receberão a melhor abordagem e acesso aos tratamentos mais adequados. 

Partindo da questão anterior, quais os principais desafios no diagnóstico das doenças raras, na sua generalidade? 

Os principais desafios incluem desde logo a falta de conhecimento sobre essas condições, como já falamos. Muitas doenças raras têm uma base genética (mais de 70%), o que pode tornar o diagnóstico ainda mais complexo devido à sua heterogeneidade e à falta de completa compreensão fisiopatológica subjacente. 

Depois, as doenças raras podem apresentar uma ampla gama de sintomas que podem ser confundidos com os de outras doenças mais comuns. Além disso, os sintomas podem variar significativamente em doentes acometidos pela mesma doença. Para algumas doenças raras, podemos não ter ainda testes específicos disponíveis ou os testes existentes podem ser caros, invasivos ou inacessíveis para muitos doentes. Tudo isto torna a marcha diagnóstica mais desafiadora, levando a atrasos que em média rondam os 5 anos, adiando inevitavelmente o início do tratamento adequado. Por sua vez, estes atrasos significativos podem resultar em sofrimento adicional para os doentes e suas famílias, que se sentem muitas vezes isolados e desamparados, especialmente se não conseguirem encontrar profissionais de saúde que compreendam suas condições e necessidades específicas. 

Superar esses desafios requer assim uma abordagem multidisciplinar que inclui sensibilização e educação médica, desenvolvimento de testes de diagnóstico ainda mais acessíveis e apoio contínuo aos doentes e suas famílias, ao longo de todo o processo de diagnóstico e tratamento. Os centros de referência e redes nacionais e internacionais para estas doenças assumem igualmente um papel central para uma estratégia eficaz de resolução destes desafios. 

Que medidas, por exemplo, poderiam ajudar a aumentar o conhecimento dos médicos de medicina interna nesta área? E que entidades podem e/ou devem envolver-se neste processo? 

Para aumentar o conhecimento dos médicos de medicina interna – mas também de todos os outros profissionais de saúde -  sobre doenças raras, várias medidas poderiam ser implementadas: 

  • Integrar tópicos relacionados com doenças raras nos currículos de formação pré-graduada dos profissionais de saúde. Otimizar a oferta de formação pós graduada e formação continua; 
  • Desenvolver programas de formação médica continua específicos em doenças raras, abordando diagnóstico, gestão e tratamento, como por exemplo o programa de formação Rare Awareness, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, que oferece acesso a materiais educacionais atualizados, como manuais, folhetos clínicos, cursos online e webinars sobre doenças raras; 
  • Fomentar e fortalecer os canais de comunicação e colaboração entre médicos internistas e outros especialistas com interesse em doenças raras, facilitando consultas multidisciplinares e a partilha de conhecimentos, em centros de referência e/ou excelência e nas redes de doenças raras; 
  • Facilitar a criação e otimizar as redes de apoio já existentes entre profissionais de saúde, doentes, organizações de doentes e outros grupos de defesa de doenças raras, para discutir, partilhar informação e definir planos de implementação de melhores práticas.  

Será importante que entidades como as ordens profissionais, instituições de ensino superior, sociedades científicas, agências de saúde pública e organizações de doentes se envolvam ativamente neste processo de mudança.

No que diz respeito à literacia em saúde por parte da população, o que pode melhorar neste âmbito? 

Para melhorar a literacia em saúde da população sobre doenças raras, podem ser implementadas algumas medidas, como por exemplo: 

  • Desenvolver campanhas de sensibilização, como é exemplo o dia Mundial das Doenças Raras.  Criado pela European Organisation for Rare Diseases (EURORDIS) em 2008, é uma iniciativa para aumentar a consciencialização sobre estas doenças. Este dia pretende ser uma plataforma para dar voz aos doentes, promover a compreensão e a empatia na comunidade e impulsionar esforços para garantir o acesso equitativo a cuidados de saúde e tratamento. 
  • Introduzir conteúdos educativos sobre saúde e doenças raras nos currículos escolares para incentivar empatia e compreensão desde cedo. Vejamos o exemplo do ‘Informar sem Dramatizar’ (IsD), um programa desenhado pela RD-Portugal para desconstruir mitos e ampliar o conhecimento sobre as doenças raras junto das crianças do 1º ciclo.  
  • Fornecer materiais educacionais acessíveis, como folhetos e vídeos informativos, para ajudar a população a entender melhor estas doenças. 
  • Organizar eventos comunitários, como palestras e feiras de saúde, focados em doenças raras, para oferecer informações e apoio à comunidade. Convido todos os que tenham interesse a juntarem-se à Festa da Saúde organizada, habitualmente no mês de junho, pela Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e na qual o Núcleo de Estudos de Doenças Raras participa ativamente. 
  • Capacitar os doentes e as suas famílias com conhecimentos que lhes permitam tomar decisões informadas sobre a sua saúde, envolvendo-os ativamente no plano de cuidados e incentivando a procura por informações e apoio sempre que necessário. 
  • Facilitar a criação de redes de apoio entre doentes, familiares e profissionais de saúde para partilhar experiências e recursos. 

Todas estas medidas podem contribuir significativamente para melhorar a literacia em saúde da população em relação às doenças raras, promovendo uma maior consciencialização, compreensão e apoio para aqueles que vivem com doenças raras.

Qual a mais-valia de se ter um doente bem informado? Garante que o seu diagnóstico seja mais célere? 

Ter um doente bem informado oferece várias vantagens no processo de diagnóstico e na gestão da sua doença.  

Embora o diagnóstico preciso de doenças raras possa continuar a ser desafiador, termos à nossa frente um doente bem informado, facilita-nos a comunicação, podendo este descrever com maior precisão as suas queixas, os seus sintomas, ajudando-nos a fazer um caminho mais célere para um diagnóstico correto. Os doentes bem informados mantem muitas vezes registos detalhados do seu historial clínico, fornecendo informações valiosas à equipa que os segue. Estes doentes tendem também a estar mais preparados e a envolver-se mais na definição e nas tomadas de decisão referentes ao seu plano de cuidados individualizado, otimizando os ganhos das diferentes intervenções. 

A par dos desafios do diagnóstico, outro dos aspetos desafiadores na área das Doenças Raras é a existência de poucos tratamentos. O que condiciona o desenvolvimento e aprovação de novas terapêuticas? 

O desenvolvimento e a aprovação de novas terapêuticas para doenças raras enfrentam diversos desafios que se relacionam diretamente com as suas características “raras”, nomeadamente, a baixa incidência de cada doença pode limitar o retorno financeiro para empresas farmacêuticas, desencorajando o investimento em investigação e o desenvolvimento de novas terapias, cujo processo é longo, complexo e dispendioso.   

Por outro lado, a heterogeneidade das doenças raras, com uma grande variedade de causas, apresentações clínicas e padrões de progressão de doença, dificulta a identificação de alvos terapêuticos comuns e o desenvolvimento de tratamentos eficazes. A realização de ensaios clínicos para doenças raras pode ser complicada devido à dificuldade em recrutar participantes suficientes e à necessidade de endpoints de eficácia relevantes para uma população pequena e heterogénea. 

Os processos, regulatório e de aprovação, para novos tratamentos podem ser mais desafiadores para estas doenças, exigindo evidências robustas de eficácia e segurança apesar das limitações dos ensaios clínicos em populações pequenas. 

Para superar esses desafios, é assim necessário um esforço de colaboração entre governos, indústria farmacêutica, instituições académicas, organizações de doentes e as agências reguladoras. Isto inclui incentivos financeiros, apoio à investigação, simplificação dos processos regulatórios e promoção da colaboração e partilha de dados entre as diferentes partes interessadas, por exemplo através de registos transversais. 

Não obstante, como tem evoluído esta área nos últimos anos? 

Apesar de todos estes desafios, nos últimos anos, a área das doenças raras tem tido avanços significativos.  O aumento na colaboração e articulação entre os diferentes players, impulsionou o investimento e interesse crescentes, aproveitando avanços em biotecnologia, genómica e medicina personalizada, permitindo o desenvolvimento de tratamentos mais dirigidos e eficazes. É exemplo, a terapia genética, que emergiu como uma promissora abordagem terapêutica, oferecendo esperança para doenças anteriormente consideradas incuráveis. 

O crescimento da consciencialização pública e o patient advocacy liderado por organizações de doentes em todo o mundo, tem aumentando a visibilidade das doenças raras, permitindo progressos na melhoria do acesso a terapias inovadoras através da definição e implementação de programas de acesso precoce e políticas de reembolso mais flexíveis. 

Concomitantemente, tem havido uma adoção de abordagens mais flexíveis por parte das agências reguladoras para avaliar e aprovar tratamentos, reconhecendo a complexidade e desafios únicos das doenças raras. 

Apesar dos avanços, persistem ainda vários desafios no acesso a tratamentos e na garantia da qualidade de vida para todos os doentes com doenças raras. 

No âmbito desta temática, que mensagem gostaria de deixar? 

Gostaria de deixar uma mensagem de solidariedade, esperança e ação. 

Para todos aqueles que enfrentam diariamente as dificuldades associadas às doenças raras, quero dizer que vocês não estão sozinhos. Apesar dos desafios, a vossa resiliência e determinação são verdadeiramente inspiradoras. Lembrem-se de que são parte importante da comunidade global de saúde, e que as vossas vozes são essenciais à mudança. 

Aos profissionais de saúde, investigadores, legisladores e defensores dedicados a melhorar a compreensão, o diagnóstico e o tratamento das doenças raras, expresso a minha profunda gratidão. O vosso trabalho é fundamental e faz a diferença na vida de mais de 400 milhões de pessoas em todo o mundo. 

Para o público em geral, quero ressalvar a importância da empatia, da compaixão e da educação. Conhecer e compreender as doenças raras é essencial para prestar apoio às pessoas afetadas por estas doenças. Juntos, podemos fazer a diferença ao aumentar a consciencialização para as doenças raras em todo o mundo e sermos geradores de mudança ao reafirmarmos o nosso compromisso em trabalhar juntos por um futuro mais equitativo e melhor para todos. 

 
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Dra. Luísa Pereira