Estudo

Como é que o coração vai parar ao lado esquerdo?

Cientistas descobriram dois mecanismos que ajudam a “arrumar” o coração no lugar certo. Os estudos podem ser úteis para evitar doenças causadas por erros no complexo processo de formação de um novo ser.

Duas equipas de investigadores desvendaram dois mecanismos, em dois momentos diferentes do desenvolvimento embrionário, que fazem com que o coração seja “arrumado” do lado esquerdo do corpo. As descobertas podem ser úteis para resolver possíveis erros que acabam por “empurrar” o coração para o lado errado, um “defeito” que está associado a algumas doenças. Os cientistas usaram o peixe-zebra como modelo animal.

Susana Lopes, investigadora do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (Cedoc) da Nova Medical School, coordenou o estudo publicado na revista internacional eLife onde é descrita a descoberta de uma proteína com um papel regulador no posicionamento correto dos órgãos nas etapas iniciais do desenvolvimento embrionário. O trabalho que coordenou foi desenvolvido durante dois anos por Bárbara Tavares e Raquel Jacinto, investigadoras do Cedoc, e focou-se nos embriões do peixe zebra que, tal como nós, tem órgãos organizados de forma assimétrica, escreve o jornal Público.

A equipa investigou o funcionamento de um órgão chamado “organizador do eixo esquerdo-direito” e percebeu que existe ali uma proteína que define o número de cílios (pequenas projeções das células que parecem pestanas) que se mexem e que estão imóveis. “O movimento de um número específico de cílios é necessário para iniciar o processo de assimetria que mais tarde leva à correta localização dos órgãos internos, como o coração à esquerda e o fígado à direita”, explica um comunicado sobre o estudo. Assim, é a proteína Her12 que determina quantos e quais os cílios móveis e imóveis, uma decisão que inicia o processo de arrumação. “É um dos primeiros eventos da assimetria e que inicia depois uma cascata de outros acontecimentos”, refere a investigadora ao PÚBLICO, que adianta ainda que, no corpo humano, este momento ocorre por volta das três semanas de gestação. Ou seja, o coração do embrião começa a ser levado para o lugar certo quando a maioria das mulheres ainda nem sabe que está grávida.

Porém, nem sempre tudo corre bem. “Quando existe um posicionamento errado destes órgãos, é sinal que podemos estar perante uma doença genética rara, designada por discinesia ciliar primária”, confirma Susana Lopes, explicando que esta doença está associada ao mau funcionamento destes cílios. Cerca de 50% das pessoas com esta doença têm o coração do lado direito e diversos problemas de saúde associados, sobretudo, respiratórios. Identificar a proteína reguladora que “decide” o número de cílios que se movem pode ajudar no desenvolvimento de terapias para corrigir este problema.

Antes disso, há muita coisa para esclarecer. “Vamos tentar perceber o que acontece depois da ação desta proteína. Esta proteína é inibidora de outras. Quais são as outras? Queremos tentar também perceber como é que esta informação se transmite para o passo seguinte e ainda esclarecer o que pode descoordenar este processo”. Porque, como se sabe, há pessoas que nascem como os órgãos todos do lado contrário (situs inversus) e outras ainda com tudo desarrumado como, por exemplo, o coração do lado certo mas o fígado do lado errado (heterotaxia). “O que descoordena isto?”, pergunta a investigadora.

Os primeiros dias, semanas e meses de desenvolvimento de um ser humano são feitos de uma sucessão de acontecimentos impressionantes (e muitos deles ainda desconhecidos) que nem sempre são um sucesso. Os erros podem acontecer em diferentes etapas. O que a equipa de Susana Lopes percebeu é que a quantidade de “pestanas” móveis das células é determinante para o sucesso de um dos primeiros passos do desenvolvimento embrionário. Uma outra equipa de investigadores espanhóis que publicou um artigo na revista Nature este mês estudou o momento seguinte que também está relacionado com a “arrumação” do coração no lugar certo. “É a mesma via que estudámos”, comenta Susana Lopes, adiantando que este outro trabalho também usou o mesmo modelo animal do peixe-zebra. “Enquanto o organizador do eixo esquerdo-direito existe no peixe zebra às 12-14 horas após a fertilização, o processo estudado pelos colegas espanhóis passa-se temporalmente a seguir incluindo os estadios que vão desde as 16-18 horas até às 48 horas pós fertilização”, explica, reconhecendo que os dois trabalhos se complementam.

Os investigadores do Instituto de Neurociências de Alicante descobriram um conjunto de genes que se ativam mais do lado direito (já era conhecida uma via de sinalização do lado esquerdo) e que fazem com que se crie um maior fluxo de células que “empurram” o coração para o lado esquerdo. A equipa fez experiências também noutros animais, galinhas e ratos, e confirmaram que se a função destes genes for anulada e, com isso, se eliminar o movimento das células até ao coração, este órgão permanece no centro do corpo nas três espécies estudadas.

“Enquanto o nosso trabalho se foca nos mecanismos mais iniciais e biofísicos da formação de assimetrias que começam com os fluxos gerados pelo correto número de cílios moveis, o deles é mais focado na formação do órgão propriamente dito”, esclarece Susana Lopes.

A misteriosa coreografia de sinais químicos, genes e pestanas de células que se movem, entre muitos outros participantes, neste espetáculo que é construir um organismo a partir de duas células, vai ficando mais clara. Estes dois estudos identificam dois importantes passos dessa dança.

Fonte: 
Público Online
Nota: 
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