Doença crónica

Vivências de um homem com Fibromialgia

Atualizado: 
22/05/2019 - 15:14
Viver com Fibromialgia é um desafio diário pois a intensidade de sintomas variam de dia para dia ou até nas várias horas do mesmo dia, o que causa diversas interferências na nossa Vida em todos os contextos nos quais estamos inseridos, profissional, familiar, a vida de casal os relacionamentos com os amigos. É viver com a invisibilidade de uma doença que faz com que não sejamos, muitas vezes compreendidos, pois o que não se vê, não se compreende. Através deste texto e com a partilha do meu dia-a-dia com Fibromialgia quero sensibilizar o leitor para esta doença e para os desafios em viver com a mesma.
Viver com fibromialgia

Comecei a sentir dores no corpo todo desde muito cedo, quando ainda era criança, porém na altura as dores eram associadas a dores de crescimento, obrigando-me a lidar com dores que não sabia explicar, o que possivelmente pode ter criado uma certa tolerância à dor durante muitos anos. As dores continuaram durante toda a minha adolescência, quando fiz os meus primeiros exames médicos, porém estava “tudo bem”, sem quaisquer alterações físicas, sendo aconselhado a tomar um analgésico quando as dores fossem mais fortes ou até mesmo insuportáveis, porém ficou sempre uma pergunta por responder: “e o que faço se a dor é constante e no corpo todo? Tomo analgésicos de minuto a minuto?”.

Fui vivendo com dor, por vezes tão intensa que se tornava impossível fazer simples e banais movimentos e atividades, como segurar um copo de água, falar ao telefone, vestir-me pela manhã, estar algum tempo sentado sem que pudesse tomar algo que me retirasse as dores, sem poder e conseguir explicar o que sentia à família, amigos e professores, pois a dor é invisível e apenas eu sabia o que sentia. Uma dor que assumia diversas formas no meu corpo ora como queimadura constante, ora como se o meu corpo se estivesse a rasgar por dentro, porém mesmo tomando o analgésico, a dor não passava e eu ia “habituando-me” à sua presença, em silêncio, pois não a conseguia mostrar, explicar.

Com o passar dos anos, e quando iniciei a minha carreira profissional como enfermeiro num hospital pediátrico de Lisboa, a dor foi-se tornando cada vez mais forte a certos movimentos, como um mal-estar constante e tão intenso, sendo que nessa altura comecei a sentir uma fadiga muito mais severa, que eu associava ao ritmo dos meus dias, como enfermeiro a trabalhar por turnos, o que podia condicionar o meu descanso. O descanso começou a ser alternado, sem ritmo e rotina certas, aumentando a minha fadiga, a minha dor, o meu sofrimento, porém não sabia o porquê e, mesmo trabalhando na área da saúde, não encontrava nenhuma explicação para tal quadro clínico, sendo que me era sempre dito que era pela falta de descanso (porque eu não parava, porque fazia muitas atividades!) Mas mesmo descansado, nada melhorava e até piorava para meu descontentamento e minha surpresa.

Voltei a procurar ajuda médica, procurando uma especialidade médica para cada sintoma (a Fibromialgia manifesta-se por muitos outros sintomas diferentes, que são transversais a várias doenças), tendo sido consultado em oftalmologia (pelo cansaço visual, a secura dos olhos, a visão turva e hipersensibilidade à luz), em gastroenterologia devido a estranhas e dolorosas manifestações intestinais e digestivas, em ortopedia fazendo imensos exames por causa das dores que eu considerava ósseas, em psicologia pois comecei a pensar que estava a ficar um pouco louco e que só podia ser tudo da minha cabeça, dado que todos os exames feitos nas diversas especialidades estavam todos com valores normais e eu, a ficar cada vez pior, com mais dores e fadiga.

Fui continuando a minha demanda por uma explicação sem sucesso, até que comecei a ler diversas informações na Internet e recordei que ainda não tinha ido a um reumatologista, faltava essa especialidade e assim, por minha conta, fui ao reumatologista tendo passado por dois reumatologistas diferentes, com diferentes diagnósticos sem que houvesse certezas médicas e eu ainda a querer saber o que tinha, porque me sentia tão mal. Fui consultado por um novo reumatologista, que após ver todos os meus exames realizados nos últimos tempos e realizar o exame físico, diagnosticou-me Fibromialgia, em 2014, que apesar de ser uma doença crónica sem cura, levou-me a pensar que se ia tornar muito mais fácil, agora que sabia o que tinha e havia um nome que representava todos os sintomas, todo o sofrimento.

Fui medicado pelo reumatologista e comecei a ler sobre a doença e eis que, para meu descontentamento e surpresa, percebi que a Fibromialgia não tem uma causa conhecida e que por isso, estava a fazer medicação utilizada em outras doenças, pois não existia nenhum medicamento só para a Fibromialgia e percebi que, iria continuar a viver à procura de algo, para controlar todos os meus sintomas, para diminuir esta dor, este sofrimento.

Com este diagnóstico, e devido aos sintomas e à medicação que fazia, tive que reestruturar toda a minha Vida, pois não me sentia seguro e confortável em alguns contextos. Dadas as minhas novas limitações tive que deixar de fazer turnos no hospital, passando ao horário diurno, que por um lado não seria o mais adequado, pois teria que me levantar muito cedo, diminuindo as horas de descanso, mas tinha que trabalhar e não podia parar, independentemente do que sentia em cada dia, das dificuldades em tomar banho, em vestir, em diminuir a rigidez, em controlar o cansaço.

A nível familiar quando contei o diagnóstico tive que ensinar a minha família sobre a doença: o que era, como se manifestava, qual o prognóstico e como seria o meu dia-a-dia, ao viver com dor crónica, sendo que fui e sou apoiado por todos eles, que entendem as minhas mudanças de humor, as alterações de rotina à última da hora, as vezes que recuso ir a determinados eventos, não por não querer ir, mas por não conseguir. O apoio da minha família tem sido vital nesta nova fase da minha vida, porém há que salientar que o mesmo não se passa com outras pessoas, cujas famílias não compreendem o que sentem e como vivem, intitulando os seu familiar de preguiçoso, dizendo que o que ele quer é não fazer nada, que não se nota na sua cara que está mal. Este é o verdadeiro viver de muitas pessoas com Fibromialgia, que se sentem sozinhos, desprotegidos, incompreendidos, pela sua família, aquele núcleo que deveria ser o seu pilar, a sua base, o seu alicerce.

A nível social tive que fazer grandes alterações quer das rotinas quer dos planos com os amigos, pois já não vivia com o mesmo ritmo, já não suportava determinados ambientes, o que me levou a recusar imensos convites para sair, para alguma atividade que me obrigasse a determinados movimentos, que eu sabia que não me iriam fazer bem, que iria ficar com mais dores e por isso fui-me isolando de todas as pessoas, centrando-me na minha dor e recusando viver com medo de sofrer ainda mais do que sofria no meu dia-a-dia.

Alguns amigos compreendiam o meu sentir e continuavam a incentivar-me a sair, a espairecer, a divertir, pois só me iria fazer bem e iria desfocar-me da dor, apreciando os bons momentos da vida, sabendo que a dor iria continuar, mas deixava de ser o centro das atenções da minha Vida. Aos poucos fui saindo mais, mas controlando os ambientes para onde queria ir, pois já não conseguia fazer noitadas, não aguentava muito tempo em locais fechados com muita luz e com muito ruído, não aguentava estar sentado ou na mesma posição muito tempo. De realçar que grande parte dos doentes com Fibromialgia se isolam do resto do mundo, com medo de sofrer mais, medo de se sentirem incompreendidos, dando início a um ciclo vicioso de tristeza e dor.

Viver com Fibromialgia é mais do que precisar do apoio de quem nos rodeia, para que não nos sintamos sós, para podermos desabafar, sendo também preciso recuperar os nossos recursos interiores, capacitando-nos para viver com algo crónico da melhor forma possível, com a maior qualidade de vida. Já que a doença é crónica é preciso que o nosso viver não seja crónico, permitindo-nos sentir felizes em determinado momentos, aceitando a nossa tristeza em outros momentos, pois todas essas emoções fazem parte de nós. Temos que alterar a nossa forma de pensar, sentir e viver, adequando-nos, adaptando-nos à nova realidade da nossa Vida, para que o nosso sofrimento não seja ainda maior, para que possamos sentir algum conforto.

Nesse sentido, o primeiro passo que vivi foi uma fase muito parecida com o luto, pois tive que me despedir do Ricardo saudável que não sentia dores, que não se sentia desgastado, para que pudesse lidar comigo mesmo tal como sou e me sinto agora, sendo que foi um processo muito doloroso, aceitar que me tornei num doente crónico, cuja aceitação só foi alcançada passados dois anos de diagnóstico. Para viver este processo de aceitação pedi ajuda a nível psicológico e iniciei terapia semanal e acompanhamento psiquiátrico, para que me ajudassem a lidar com a dor, a não desistir, a reconhecer as minhas capacidades de superação, motivação, resiliência, para não me fosse destruindo pouco a pouco, como estava a fazer consciente e inconscientemente e foi-me diagnosticada depressão major, outro diagnóstico com um peso emocional tão grande. A depressão não foi e nem é causada pela Fibromialgia, mas pode estar lado a lado pela nossa incapacidade de lidar com a dor, de conseguirmos sentir emoções positivas e pela diminuição da nossa autoestima, do nosso amor-próprio e pela nossa desesperança.

Tive que aprender a reconhecer os meus limites, a adequar o meu ritmo de acordo com o que eu pudesse fazer e nos contextos onde podia fazer e que não dependiam de outrem, reconhecendo que o meu ritmo é mais lento e que se não o respeitar irei sentir mais dor, ficar mais cansado. Reconhecer e respeitar os limites é compreender que não posso executar as minhas tarefas da mesma forma e com a mesma intensidade, como por exemplo algo tão prático como a limpeza da casa, cozinhar, precisando adaptar essas atividades ao meu ritmo, sem me culpar por não conseguir fazer o que fazia antes do mesmo modo. Ao respeitar os meus limites compreendi que não sou nenhum inútil, como muitas vezes me senti, mas que só assim me poderei sentir melhor e mesmo nos dias em que tenho que abusar, sei que no dia seguinte irei estar pior, mas não me posso culpar por fazer o que fiz, porque queria fazer.

Deixei de me culpar das vezes que dizia que não às pessoas, por saber o que era melhor para mim, mesmo que não me compreendam e emanem os seus conselhos em prol do nosso bem-estar, mas só eu sei o que me causa bem ou mal-estar, por isso digo não as vezes que forem necessárias, pois o que é mais importante é eu estar bem comigo mesmo, controlando os sintomas, controlando a dor, sabendo que não é de todo um processo fácil e simples, mas que é possível ir vivendo esse processo ao nosso ritmo, sem culpas, sem críticas, sem juízos de valor sobre a nossa pessoa e como vivemos.

Viver com Fibromialgia é sentir dor a cada momento, em todo o nosso corpo, é sentir um cansaço tão grande que nos limita o viver. É viver com inúmeros sintomas que interferem com a forma como nos sentimos e nos relacionamos, é passar pela incompreensão alheia (família, amigos, profissionais de saúde, colegas de trabalho), que olham para a nossa expressão física e acham que está tudo bem connosco, pois a dor não se vê, os outros sintomas não se vêem e, por isso, acham que podemos estar a fingir, a exagerar, mas só eu sei, e só nós sabemos!, o que é viver com dor, o que é viver com Fibromialgia, o que é ser um doente crónico.

Por isso, caro leitor, se vive com Fibromialgia ou conhece alguém que viva com esta doença, procurem o apoio de uma associação de doentes, com quem possam desabafar, deixar de sentir sós ao conversar com quem vive com a mesma doença, que consegue entender o sofrimento de quem está do outro lado, pois é nesta partilha e ajuda-mútua que podemos encontrar um porto seguro, falar de tudo o que sentimos, sabendo que não vamos ser julgados, sabendo que alguém nos está a ouvir.

Em Portugal pode procurar a associação Myos – Associação Nacional contra a Fibromialgia e Síndrome de Fadiga Crónica, com sede em Lisboa e âmbito nacional, que tem serviço de apoio telefónico e presencial e que promove alguns grupos de apoio e diversas atividades: http://www.facebook.com/myos.portugal.

Não se esqueçam de sorrir, de tentar serem felizes, mesmo com dor, para que sejamos nós a controlar a nossa Vida e não a dor a controlar-nos a nós!

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Autor: 
Ricardo Fonseca - doente com Fibromialgia
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Ricardo Fonseca