Um crime público… uma responsabilidade de todos

O papel dos enfermeiros perante a Mutilação Genital Feminina

Atualizado: 
21/04/2014 - 15:13
A Mutilação Genital Feminina é um crime público em Portugal e o profissional de saúde deve estar alerta para o identificar, encarar e denunciar. Os Enfermeiros, que nos cuidados de saúde primários são os profissionais que melhor conhecem a realidade das comunidades em que trabalham e acompanham 24 horas por dia os utentes internados, assumem um papel importante na sinalização dos casos.
Mutilação Genital Feminina

No nosso país, em janeiro iniciou-se um estudo para conhecer a prevalência desta prática. Em fevereiro a Assembleia da República aprovou projetos-lei que tipificam como crime público a Mutilação Genital Feminina, o que faz com que o processo avance independentemente da vontade da vítima e obriga entidades policiais e funcionários públicos a denunciá-lo.

 

Anualmente entre 100 a 140 milhões de raparigas e mulheres, em todo o mundo, são vítimas desta prática. No espaço europeu são 500 mil por ano. Em Portugal sabe-se que o problema existe, mas desconhece-se a sua dimensão.

Embora se assuma que as sociedades estejam cada vez mais informadas e esclarecidas, continuam a persistir no seio de algumas comunidades certas práticas culturais e religiosas que são um exemplo claro da violação dos Direitos Humanos. A Mutilação Genital Feminina (MGF) é uma dessas práticas.

A MGF acontece quando se procede à remoção parcial ou total dos órgãos genitais femininos, ou quando são provocadas lesões nos mesmos, por razões não médicas. A sua realização é de tal forma nociva que provoca danos irreparáveis para a saúde física, psicológica e sexual, podendo, nalguns casos, provocar mesmo a morte.

Entre as complicações imediatas mais frequentes destacam-se os traumatismos da uretra, as infeções urinárias, as hemorragias e outras infeções onde se inclui o HIV. Ao nível das complicações crónicas pode ocorrer a formação de quelóides, áreas de fibrose e estreitamento vaginal provocando dor e úlceras de repetição por traumatismo durante as relações sexuais. Nos casos mais graves o estreitamento vaginal pode provocar obstrução ao fluxo menstrual e a impossibilidade de penetração vaginal. As alterações obstétricas podem ainda provocar obstrução ao parto e consequente sofrimento fetal. Ao nível das alterações psicológicas existem referências de stress pós traumático, depressão e perda de memória.

“Proteger a honra da família” é argumento para a Mutilação Genital Feminina
Entre os motivos para a sua realização, e segundo as comunidades em que é praticada, encontram-se argumentos como ajudar a preservar a virgindade da mulher até ao casamento, proteger a honra da família, reduzir o desejo sexual da mulher tornando-a “menos promíscua”, aumentar a higiene e estética, ser benéfica para a saúde e aumentar a fertilidade, entre muitas outras. Em todas elas se denota uma clara falta de conhecimentos no que diz respeito às questões da saúde física e reprodutiva das mulheres.

A Mutilação Genital Feminina insere-se ainda dentro das discriminações de género, já que se encontra profundamente enraizada nas culturas onde as desigualdades e assimetrias de poder entre homens e mulheres são mais notórias, impedindo estas de usufruir plenamente dos seus direitos.

Segundo a Organização Mundial de Saúde entre 100 a 140 milhões de meninas, raparigas e mulheres em todo o mundo já terão sido submetidas a MGF. Todos os anos cerca de 3 milhões continuam a estar em risco de sofrer alguma forma deste tipo de mutilação.

500 mil mulheres vítimas desta prática no espaço europeu
Por sua vez, ao nível do espaço europeu estima-se que sejam cerca de 500 mil mulheres a sofrer as consequências desta prática, e que 180 mil raparigas se encontrem em risco de ser alvo da mesma.

No nosso país não existem dados estatísticas, o que não permite identificar um número de casos. Em janeiro deste ano avançou-se com um estudo que vai permitir conhecer a prevalência da mesma. No entanto, sabe-se que há em Portugal mulheres a necessitaram de cuidados de saúde por terem sofrido mutilação nos seus países de origem.

Portugal não pode, neste sentido, afastar-se desta questão. É considerado um país de risco neste domínio. Alguns dos elementos das comunidades migrantes a residir no País, e que são oriundos de países onde a MGF existe, poderão estar a continuar com esta prática, tanto em Portugal como enviando menores aos países de origem.

Felizmente esta questão não está a passar ao lado, nem da sociedade civil, nem de quem tem o poder de decisão política. Desde 2009 que Portugal tem vindo a assumir formalmente um compromisso político específico relativamente à erradicação da sua prática, por via da implementação de um Programa de Ação para a Eliminação da Mutilação Genital Feminina. Também algumas organizações não-governamentais, como a Amnistia Internacional, têm acompanhado de perto este problema.

O respeito para com uma cultura diferente não pode de forma alguma justificar a aceitação deste tipo de práticas, tornando-se necessário avançar no sentido de terminar com as mesmas. Assim, é fundamental trabalhar com as comunidades onde a MGF ainda acontece, e capacitar os seus elementos para que estes interiorizem a necessidade de desenvolver formas de a combater. É essencial que se faça um trabalho constante de sensibilização e de prevenção.

Assembleia da República aprovou em fevereiro leis de agravamento penal
Um dos últimos avanços nesta questão passou pela aprovação, a 28 de fevereiro, em Assembleia da República, dos projetos de lei que têm em vista a alteração do Código Penal. Esses projetos preconizam a alteração da moldura penal do crime de MGF, e a sua inclusão no âmbito dos crimes de ofensa à integridade física qualificada.

Estes projetos de alteração à lei pretendem colmatar uma lacuna que existia na legislação em vigor, e que tinha como consequência que este tipo de crime raramente chegasse a tribunal. Até este ano a MGF enquadrava-se nos crimes de ofensa à integridade física grave, o que levava a que, não sendo considerado um crime público e ficando dependente de queixa às autoridades pelas próprias vítimas ou famílias, estas muito excecionalmente o faziam. Com o novo enquadramento legal é considerada um crime público e passa a ser possível atuar judicialmente sem que exista obrigatoriamente queixa por parte da vítima ou família.

Enfermeiros em situação privilegiada para sinalizar casos
E os enfermeiros, qual o seu papel nesta questão? Estes têm uma posição privilegiada nas equipas de saúde. Nos cuidados de saúde primários são aqueles que conhecem de mais perto a realidade das comunidades em que trabalham. Estes deslocam-se em múltiplas visitas domiciliárias que, afastadas do contexto físico dos Centros de Saúde e das Unidades de Saúde Familiar, lhes permitem conhecer in loco o espaço familiar, possibilitando fazer uma avaliação mais aprofundada das famílias.

Por sua vez, também os enfermeiros que trabalham no meio hospitalar são de entre todos os profissionais de saúde os que conhecem de mais perto a pessoa internada. São estes que passam 24 horas por dia junto dela.

Mas, para que os sinais de alerta sejam entendidos como tal, é necessário que também os profissionais de saúde conheçam e estejam despertos para esta realidade. Só assim poderão ser tomadas as medidas necessárias, quer relacionadas com o encaminhamento para o tratamento de lesões, quer relacionadas com a capacitação destas meninas e mulheres para rejeitarem a MGF e qualquer outra forma de violência sobre elas, quer relacionadas com o encaminhamento judicial do crime para as autoridades competentes. Também aqui ainda existe muito trabalho a fazer.

Neste sentido, estar consciente de que esta situação continua a existir é um dever de todos, e denunciar a sua ocorrência é uma responsabilidade de todos.

Bibliografia
Declaração Universal dos Direitos Humanos. [em linha]. [Consult. em 15 fevereiro de 2014]. Disponível em http://dre.pt/util/pdfs/files/dudh.pdf
II Programa de Ação para a Eliminação da Mutilação Genital Feminina. [em linha]. [Consult. em 15 fevereiro de 2014]. Disponível em http://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2013/12/II_Programa_Accao_Mutilacao_Genital_Feminina.pdf
Resolução do Parlamento Europeu sobre as mutilações genitais femininas (2001/2035(INI)). [em linha]. [Consult. em 15 fevereiro de 2014]. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2002:077E:0126:0133:PT:PDF

Nota: Este artigo foi escrito pelos autores ao abrigo do novo acordo ortográfico

Enfermeira Rita Gonçalves

Autor: 
Rita Gonçalves
Nota: 
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