A Cátia

Enfermeira na Arábia Saudita...

Atualizado: 
16/05/2019 - 13:15
Antes de mais, é preciso salientar que vou tentar ser neutra, não sendo possível evitar, pela pessoa que sou, que sejam acrescentados alguns apontamentos pessoais... Mas, e ainda assim, tentarei apenas relatar os factos reais, a minha vivência, isenta de mim... Importante a reter- Cátia, Enfermeira de vocação, 37 anos, chegada aqui com uma experiência profissional de 15 anos, e a trabalhar no serviço de Urgência... Por onde começar? Onde terminar?
Enfermagem arábia saudita

O Hospital...

Senti medo? Muito...Até pânico senti... É Mágico? Demais...É Bizarro? No mínimo estranho...É confuso? Desnorteante... Porquê todos estes sentimentos? 

Leiam o texto que se segue de coração aberto, sem medos, sem juízos de valor...tentem apenas entrar de coração dentro do cenário que vos vou descrever...

O Hospital... Imenso, enorme em todos os sentidos...dizem os americanos que é considerado o maior e melhor 4º centro de trauma do mundo...é verdade? Se dizem...não sendo isso relevante para mim...Tecnologia de ponta, acesso a todos os exames auxiliares de diagnóstico...algumas técnicas das quais, desconhecia que existiam...na realidade estamos a falar de um hospital com a dimensão de Santa Maria ou os Hospitais da Universidade de Coimbra...1000 camas...a diferença? Aqui na Arábia Saudita, tudo é majestoso... fazem tudo em grande escala... corredores imensos e largos (sendo um hospital militar, tem que estar preparado, em caso de algum ato terrorista ou seja pelo que for, preparado para permitir a entrada de tanques militares), para além disso, também neste aspeto, se começa logo a sentir a diferença cultural... Muito dinheiro, tudo tem que ser majestoso... salas enormes... para terem uma ideia, são usados carros de golf para circular dentro do hospital. Por exemplo a equipa de reanimação intra-hospitalar usa um carro de golf para se deslocar rapidamente para o doente, onde quer que esteja - é sempre longe...

O sistema orgânico e funcional? Todo ele baseado no sistema Americano mas, obviamente ajustado ao país e à cultura...

Ok, deixemos agora o hospital no geral, e vamos para o "mundo" profissional da Cátia... Serviço de urgência...

 

A cultura e a religião

Esperem! Seria desastroso e de difícil entendimento, se não vos falar de alguns aspetos culturais... SIM TEMOS QUE PERCEBER E RESPEITAR A CULTURA, de outra forma não conseguirás trabalhar...até podes não aceitar alguns aspetos culturais - problema teu! Mas tens que respeitar...

Nota bem, tudo o que vos disser daqui para a frente em relação à cultura e religião é porque tem implicações diretas na minha prática como enfermeira.

Estamos num país 100% islâmico...e profundamente religioso... à religião acrescentam-se algumas regras específicas deste país que o tornam, de todos os países muçulmanos, sem sombra para dúvida, o mais restrito e fechado... Apenas por curiosidade, este é o único país no mundo que não tem uma igreja... Existem mesquitas em todo o lado, por lei. Onde quer que estejas localizado, tem que existir uma mesquita com uma distância máxima de 200 metros.

Mesquitas essas que não sendo muçulmano não podes entrar.

Mas já descobri, ainda que não seja de conhecimento de muitos, um espaço, autorizado pelo rei, onde se praticam celebrações cristãs... Eu já assisti... É um imenso pavilhão, desprovido de quaisquer sinais religiosos, sem imagens, sem cruzes, apenas um espaço amplo, onde nesse dia encontras, europeus, sul-africanos, americanos, canadianos, australianos... e onde se vive uma atmosfera de grande Amor, entrega e muita emoção... todos eles cristãos, não importa se católico ou de outra qualquer religião.

Não há cinema, música, bares ou discotecas... é proibido... Não podes estar a cantar ou dançar ou apenas a tocar guitarra num qualquer parque da cidade, em público quero eu dizer... Recordo que tenho um amigo turco, engenheiro, que ao fim de duas semanas de cá estar foi preso porque estava a tocar guitarra num qualquer parque/jardim da cidade.

A religião é o condutor deste país... A religião está em tudo, na política, nas leis, no modo de viver e estar... em tudo mesmo... e por isso eu como enfermeira tive que entender a cultura e religião - de outra forma não levaria a cabo, nem um único turno...

Para vos fazer pensar em como a religião tem peso em absoluto, comecem logo pela bandeira... na bandeira do país está escrito... "Não existe Deus, mas Alla, e Maomé é o seu profeta."

Segundo o Islão, existem 5 pilares fundamentais, que todos os sauditas irão cumprir... Forçados?  Não me parece...

Os 5 pilares são:

  • tem que se assumir como islâmicos e ter Fé,
  • tem que ir, pelo menos uma vez na vida, a Meca,
  • tem que rezar pelo menos 5 vezes ao dia,
  • tem que praticar a caridade,
  • tem que cumprir o ramadão...

 

Ok, agora em traços gerais, alguns aspetos culturais, mas de que precisam de ter conhecimento, para chegarmos ao meu "mundo" profissional...

Só vos posso prometer, que no final tudo fará e terá o seu sentido...

Então, as mulheres na arábia saudita, não podem conduzir, nem sequer uma bicicleta...

Todas as mulheres têm que andar com lenço a tapar o cabelo, e usar abaya - túnica preta que as cobre totalmente não deixando qualquer pista da silhueta da mulher... E mais, todas elas usam burca... até podem andar com a cara destapada - mas em paralelismo com o nosso país - uma mulher sem burca, com a cara destapada, é o mesmo que uma mulher em Portugal com um decote abusivo e uma minissaia extra curta - fiz-me entender? Aqui as mulheres casam cedo... É raro encontrar uma mulher com 30 anos que não seja casada e já com três, quatro filhos...e, então aí, a maior parte delas depois de casarem para além da abaya, lenço, burca, ainda usam um véu que lhes tapa os olhos, e já não é tão comum, mas sim acontece, também usarem luvas... Atenção, que é sempre, sempre, tudo preto...

Quando é que começam a usar abaya? Quando passam a ser menstruadas... mas há aquelas, que à semelhança de qualquer criança por esse mundo fora, querem imitar as mães, e então facilmente vês meninas de 6 anos com abaya e lencinho - e felizes que elas andam!...

As ocidentais, como é o meu caso, para sairmos à rua tem que ser, e sempre, com abaya, e convém andar com o lenço na carteira, para o caso de seres abordada por algum Mutawa ("polícia religiosa", na realidade não tem poder policial, mas para a população são mais que polícias - são pessoas muito envolvidas no Islão, que estudaram numa escola religiosa...bom, para facilitar a compreensão, são mais ou menos como os nossos padres, mas têm aqui um poder imenso. Devo acrescentar que já fui várias vezes abordada por eles e sempre foram delicados - apenas me pedem para tapar o cabelo).

O álcool é proibido, considerado crime... o porco é proibido, claro que nem sequer é comercializado...

 

 

Execução da pena de morte em praça pública e anunciada na TV

Existe a pena de morte, em praça pública... às sextas feiras... normalmente é anunciada na televisão árabe com um dia de antecedência ou um dia depois, que vai ser executada determinada pessoa e a razão... Pena de morte é praticada em casos de rapto, violação, assassínio, pedofilía... E para casos de roubo, a pena é a amputação da mão...atenção que tudo isto é sujeito a rigorosa investigação, e no caso de roubo, se foi por exemplo comida e que se prove que a pessoa é muito pobre, talvez seja perdoada... E na praça, para o caso de apenas amputação, está prontamente uma ambulância para transportar a vítima para o hospital mais próximo...

Aqui vive-se um absoluto patriarcado... a ponto de que o homem, seja pai, irmão ou marido, é o responsável pela mulher, sendo que, se ela quiser sair do país para uma viajem de férias, o marido tem de dar permissão...

Aqui tudo muda a uma velocidade galopante... tens por exemplo um pai que é analfabeto e o filho já estudou na América e é médico... A própria cidade cresce a uma velocidade desnorteante... Convido-vos a ver uma fotografia de Riade há 30 anos atrás e comparem com uma atual...

 

A Mulher, a Família

Porque falar desta mudança? As mulheres até há poucos anos não trabalhavam... ou seja, o papel da mulher nesta sociedade era casar, ter filhos e cuidar da família...

As famílias são muito numerosas e acrescenta-se o facto de um homem poder casar com quatro mulheres, mas atenção, "... não há cá confusões - todas vivem em casas diferentes, se não andavam sempre em conflitos"... dizia-me um doente 64 anos, na semana passada, com 22 filhos...

Hoje algumas mulheres, principalmente aquelas que estudaram no estrangeiro, já começam a trabalhar, mas na generalidade não são respeitadas pela sociedade... o que pode pôr em causa a capacidade dela para casar... Sim, por aqui mistura-se outro aspeto relevante... ainda hoje, e é hoje de que falo, os casamentos aqui são "arranjados"... ou seja, a mãe do rapaz é que escolhe a mulher para o filho... Pode ser por exemplo num casamento, em que os homens e mulheres não tem contacto visual, e então aí elas tiram as abayas, lenços burcas e estão altamente produzidas para tentarem conquistar a mãe de um qualquer rapaz casadoiro... Pois... são poucas as mães que concordam que a mulher do filho trabalhe... Portanto, ou não casam, ou algumas delas deixarão de trabalhar para casar e ter filhos... A mãe também pode escolher uma prima, por exemplo, e isso aqui é muito comum, escolherem noivas com ligação familiar. O que vos posso adiantar desde já, e isto, dando um saltinho ao hospital, existem muitas doenças estranhas e totalmente desconhecidas para nós, e pessoas com malformações incríveis - tudo ligado à consanguinidade.

Outro aspeto muito importante a salientar, é o facto de que desde que se começa na escola, as meninas e os meninos são separados - espaços geográficos diferentes! E desde então nunca mais as meninas vão conviver com os meninos... Apenas em casa se vive um ambiente relaxado e com a "nossa" normalidade... ou seja a mãe, e meninas ou mulheres, não se tapam para os irmãos e pai, e podem conviver...

 

Restaurantes com entradas e espaços distintos para homens famílias e mulheres

Nos restaurantes existe uma entrada e espaço apenas para homens, e outra entrada e espaço para famílias e mulheres. O mesmo acontece no zoo, museus... Existem dias para os homens e dias para famílias e mulheres...

Se tiverem convidados em casa, as mulheres estão sempre retiradas, normalmente na cozinha a preparar iguarias para os convidados, e se vêm à sala trazer a comida, obviamente que vêm totalmente tapadas, e nunca confraternizam...

Não podes andar na rua acompanhada com o sexo oposto, apenas podes andar na rua com o teu marido, pai, irmão ou filho... Portanto, aqui faz parte da nossa documentação que trazes na carteira o certificado de casamento.

A maioridade? Parece que é aos 18 anos... mas, lá está, a religião e costumes sobrepõem-se muitas vezes às leis... Outro dia tinha um doente de 14 anos, que ele próprio tinha vindo de carro... Se algum polícia o vir? Não haverá problema, pois é homem... e que homem!... tão emancipado que é!... Que orgulho tem aquela família de ter um elemento de 14 anos que já é um Homem...

Outro facto muito importante, e para mim o mais delicioso, terno, romântico, de profundo Amor... O conceito FAMÍLIA. Aqui ninguém põe o idoso no lar... Toda a gente, cuida do pai, avô, tio, irmão... em casa. E o respeito? Imenso... Todos se respeitam mutuamente, amam e cuidam... Não há doentes sozinhos no hospital... todos eles tem o acompanhante do filho, do neto, da sobrinha... Estão lá 24h sobre 24h e são eles que querem prestar cuidados de higiene, alimentares, e acompanhar... Quantos cuidadores estão? Normalmente, e no mínimo dois... E durante as 24 horas chegam mais e mais elementos da família... Os netinhos pequeninos chegam felizes para visitar o avô, beijam-lhe a mão, e estão ali, permanecem, querem eles também cuidar e prestar cuidados diretos...

Agora imaginem só...estão três mulheres a acompanhar o doente... a esposa e duas filhas... se chega um homem, que não é irmão ou tio... apenas amigo, primo distante... as mulheres têm que se retirar, enquanto aquele homem está presente... Só quando ele sai, então elas voltam a entrar.

 

Os rituais da morte

A MORTE? Bom aqui esta área já é mais delicada... geralmente eles aceitam com aparente serenidade a morte do seu ente querido... porquê? Óbvio, eles são profundamente religiosos e acreditam que Alla assim decidiu e quis, e que agora ele está no "paraíso" junto a Alla... É sempre assim? Claro que não...ainda que sejam "treinados" assim, são pessoas que sentem, que tem coração...e muitas vezes, naquele momento, vês faces de angústia, medo, desespero, um olhar de profunda tristeza e dor, com choro...

O corpo é preparado por nós, como o preparamos em Portugal, mas com uma grande diferença!...Não o lavamos...apenas retiramos o excesso de fluidos...Pois o corpo é levado para a morgue e dali segue para uma mesquita...não uma qualquer, uma mesquita com pessoas preparadas para o fazer... Fazer o que? Lavar, purificar o corpo... É limpo, é perfumado com um pó com uma essência especial... é envolvido por um manto branco, e aí sim está preparado para a celebração... Aí as mulheres também estão presentes... colocam o corpo com a cabeça virada para Meca. Entre Meca e os restantes, é onde está o corpo... Celebram, rezam... Depois? Bom, a partir daí as mulheres vão para casa (defendem que o ato de sepultar no cemitério é doloroso demais para uma mulher conseguir suportar, e então elas são protegidas desta forma - não assistem à sepultura)... O corpo vai para o cemitério... a cremação é proibida, e o corpo é sepultado sem caixão. Todos os corpos são sepultados com a cabeça virada para Meca, e desprovidos de qualquer campa, fotos, inscrições, flores... apenas é coberto com terra, e colocada uma pedra na parte da cabeça... seja o rei, seja a pessoa mais pobre do reino... as sepulturas são todas iguais. O que eles dizem é que no final, SOMOS TODOS IGUAIS... E não é verdade?

 

Vamos agora, e finalmente, para o "mundo" da Cátia enfermeira...

Conseguem já perceber com o que descrevi para trás que não é fácil trabalhar por aqui, no início... mas a acrescentar à obrigatoriedade de me adaptar ao doente e seus costumes, tive também que me ajustar aos meus colegas... Assim sendo, e pelo que descrevi anteriormente, torna-se fácil de perceber que as enfermeiras sauditas são ainda em número muito reduzido. A escola de enfermagem com os moldes da nossa escola, com estrutura, investigação e bases científicas, apenas existe há cerca de 10 anos, e ainda assim, dizem-me que nos primeiros anos quase não tinham alunas...

Isso obrigou obviamente a recrutar enfermeiros de fora... Só para terem conhecimento, existem neste hospital cerca de 55 diferentes nacionalidades de enfermeiros... agora imaginem, também tens que te adaptar a 55 maneiras diferentes de estar, de sentir, de viver...

Complexo? Que acham?

Vamos lá à prática... hoje vou trabalhar e vocês vão comigo! Saio do meu luxuoso compound - imaginem uma pequena aldeia, cercada por altos muros, com câmaras de vigilância por todo o lado, e rodeada de militares devidamente aprovisionados de metralhadora e afins... Sempre que entras no compound de carro... passas por duas barreiras... a primeira das quais tem um elemento que inspeciona o carro - vê a mala, abre o capô, vai com um espelho inspecionar o veículo por baixo (acho que já vi esta cena em algum filme!). Depois cá dentro vivemos em vivendas totalmente equipadas, enormes (claro está!), onde o meu apartamento caberia, seguramente, numa das salas que tenho... Temos supermercado, ginásio, cortes de ténis, restaurante, SPA, squash, piscina interior, três piscinas exteriores... E aqui, só para ocidentais, podemos vestir e agir como ocidentais que somos. Tudo gratuito! - Cá tenho na ideia que é para nos motivar a suportar todas as contrariedades deste país!

La vamos nós de autocarro (o autocarro é estritamente só para nós funcionários e gratuito. Aqui na Arabia Saudita não existem transportes públicos)...15 minutos... se páras no semáforo... o que é raro, pois aqui não se respeitam as regras de trânsito... podes facilmente ver o carro parado ao teu lado com uma família a olhar para ti com ar surpreendido... Meu Deus, aquele autocarro vai cheio de mulheres e homens misturados, com fardas, o que lhes expõem os braços, estetoscópio ao pescoço, e cabelos descobertos... E então imagino que a conversa dentro do carro seja, dentro de muitas hipóteses válidas...:"Oh mãe que gente estranha é aquela?"

Chego ao hospital... vá agora desde a porta do hospital até ao meu serviço são 12 minutos a andar bem - pronto assumo, tive azar, a paragem dos nossos autocarros, é do lado oposto do meu serviço...

 

As línguas que podemos falar no hospital é o inglês e árabe... e Cristiano Ronaldo!

De árabe já vou sabendo umas coisas, aprendo com os doentes... raro é o doente que fala inglês. Tens um tradutor permanente para te auxiliar, mas anda sempre não sei bem onde, e por vezes se a tua doente é mulher e queres fazer perguntas mais delicadas, não chamo o tradutor - ela não vai falar com ele! O que importa é que já consigo comunicar com ele, e saber o suficiente para fazer a avaliação física do doente e garantir o discurso para manter as suas necessidades humanas básicas... Claro que ajuda-me o facto de aplicar muita linguagem gestual, que imagino, quem esteja a ver de fora, parecerá uma peça teatral... e eles entendem e esforçam-se por entender... E aqui muito me ajuda o nosso Cristiano Ronaldo, amado por estas bandas, e quando digo que sou portuguesa, eles imediatamente sorriem e já fica cortada uma primeira barreira (Obrigada Cristiano Ronaldo!).

A privacidade aqui é ouro... então todas as unidades tem cortinas a toda à volta. E seja em que circunstâncias for, as cortinas estão sempre fechadas... a não ser em situações de reanimação... Eu tenho sempre e apenas dois doentes, mas não pensem que paro... o grau de exigência aqui é muito elevado, e além do mais tudo leva mais tempo  a ser feito.... já vão entender porquê!

 

Tapetes para as rezas no hospital

Cada unidade, é tão importante como o monitor, oxigénio, aspirador...tem o Corão e uma caixa com areia especial para eles limparem as mãos, e face antes da reza... Também faz parte da nossa sala de stock, tapetes para eles rezarem... mas normalmente, a família e doente já vêm sempre providos do seu tapete....

Continuando...tenho dois doentes, um homem e uma mulher... sim, se estavam a pensar que não podia ter doentes homens, isso não é verdade... Mas, se bem que se tiver que algaliar o homem, já tenho que descobrir um enfermeiro homem para o fazer... Da mesma forma que o enfermeiro homem tenha que colocar os elétrodos numa doente mulher, já terá que ser uma enfermeira a fazê-lo...

Os meus doentes têm acompanhantes... eles querem fazer tudo... limpar, lavar, alimentar e até posicionar... Ofereço a minha ajuda mas normalmente eles recusam... não por não confiarem em mim, mas porque fazem questão de serem eles a tratar do seu ente querido...

Normalmente, o doente homem, tem acompanhantes homens, os filhos, pois não é muito desejável que aquele doente homem esteja a ser limpo pela filha mulher... mas também acontece! Como temos sempre acompanhantes, da mesma forma como pedimos dieta para o doente, também se pede para o acompanhante, mas apenas uma, pois supostamente só deverá estar um acompanhante, mas eles são tantos e querem estar, que chegas a um ponto que, simplesmente permites... e eu, da minha parte, não me importo nada.... Acho delicioso!

Ainda em relação à comida, muitas vezes eles nem comem a comida que pedi para o acompanhante pois todos eles (como demonstração de poder de consumo) trazem a comida de casa, e aí estão eles com carpete no chão, cafeteiras com café e chá, e tâmaras (estas nunca faltam) - comem tâmaras a toda a hora... É cultural e tem também algum significado religioso... Talvez assim se justifique que cerca de 85% dos meus doentes sejam de base diabéticos...e depois as panelas com arroz, borrego, galinha... e mais vos digo, se não fosse estar a escrever para uma revista científica, diria: " e pronto está o estenderete montado"...

Estão a acompanhar? Tem que ser rápidos...eu sei, é muita informação!

 

Acompanhantes comem sentados no chão enquanto doente é tratado

Ora bem, ponto da situação... temos o homem com dois acompanhantes homens, no chão a comer... o doente esta monitorizado com uma qualquer perfusão, oxigénio... orientado e colaborante... começo a por o meu árabe em prática... Cumprimento, identifico-me e peço desculpa por falar pouco árabe, mas sou nova aqui... normalmente eles são simpáticos, mas este doente, apesar de ser um doce, fica um bocadinho retraído pois sou mulher... Lá tenho, e porque são homens, de arranjar maneira de dizer que sou portuguesa. Falo no Cristiano Ronaldo, e pronto já quebrei a primeira barreira... depois com o doente homem pouco ou nada lhe toco, e tudo com muito cuidado. Peço autorização para ver a temperatura...e assim sigo em frente - tenho 12 horas pela frente para conquistar a confiança deles - É difícil? Nada... somos portugueses, marcamos a diferença pela nossa natural simpatia, delicadeza e educação e muita, muita sabedoria... sim porque aqui, não há nada que faças, o simples dar um comprimido, que a família não te pergunte o que estás a dar e o porquê (começam agora a perceber porque tudo leva um pouco mais tempo?).

A mulher, a outra doente... acabou de chegar, na realidade é uma jovem tem 18 anos, vem com a mãe, e duas irmãs... ela acabou de chegar ainda vai haver muita gente a entrar e a sair daquele cubículo... portanto elas se mantêm completamente tapadas... vem a técnica de ECG - sorte a minha é mulher, não tenho que estar com ela... Vem o médico para reavaliar... é homem... aí já tenho que entrar no cubículo, avisar que está o médico do lado de fora, confirmar que estão tapadas e esperar por sinal verde para ele entrar... mando-o entrar, tenho que estar sempre presente, não posso sair em circunstância alguma! Entretanto já falei com ela, identifiquei-me, e coloquei-a monitorizada com algumas dificuldades pois tenho que, por baixo daquelas roupas todas, descobrir com muita delicadeza se estou a colocar os elétrodos no sítio certo... até então apenas confirmei o nome dela pela pulseira... Não faço ideia de como ela é, e não consigo retirar qualquer informação observando a doente... Tenho que vos confessar! Este foi o meu maior obstáculo... Desde a minha escola de enfermagem, e pela minha carreira sempre me ensinaram - "não olhes tanto para o monitor, olha para o doente, olha com olhar clínico... ele tem muito para te dizer"... Subitamente, e ao fim de tantos anos, nada mais me resta, senão olhar para o monitor...

 

Interrompe-se tratamento enquanto rezam. Setas indicam Meca e macas alinham-se

O médico pede para extrair sangue... preparo tudo e vou fazê-lo, mas quando entro no cubículo e ao fundo da maca tenho a mãe no tapete a rezar, virada para Meca... Não devo interromper - é uma falta de respeito! Então tenho que aguardar que ela acabe de rezar para poder tirar sangue à doente... São 20, 30 minutos... se for algum procedimento mais urgente, lá tenho que ir, mas sempre em silêncio, e tenho que passar por detrás da pessoa que está a rezar - a pessoa está em conexão a Meca como todos os outros, em união, não posso "cortar" essa ligação... Naquele momento apenas desejo que a pessoa a rezar me tenha reservado um espacinho para que possa passar por detrás...

Pois, é a hora da reza, e em todo o hospital, assim como em toda a cidade se ouve em uníssono a reza... e o meu doente também quer rezar, mas não se pode levantar... está com as tensões elevadíssimas - tem dinitrato em perfusão, tento explicar, mas nada a fazer... se logisticamente não for possível, há que parar perfusões, até retirar o doente do monitor, para se criarem condições para virar a maca para Meca... Nas enfermarias, existe em todos os quartos umas sinalizações - uma seta - que indica a direção de Meca.

Bom, passaram duas horas.. já todos os exames foram feitos à minha doente mulher, e ela vai ficar pelo menos nas próximas 24 horas... agora já não há tanta gente a entrar e sair.

Elas começam a ficar mais desinibidas e como confiam em mim, sabem que cada vez que alguém quiser entrar eu vou avisar... então já retiram a burca e o véu... e comunicamos, e rimos muito... elas ficam deliciadas comigo, com a nossa natural espontaneidade e estou tão exposta! Sou-lhes um ser tão estranho mas amigável... não resistem... lá me pedem para uma selfie... e garanto-vos que neste momento já terei umas boas dezenas de selfies por aí espalhadas...

Em jeito de agradecimento, estão sempre a oferecer-me comida, chá, café, tâmaras... e eu aceito! Aceito, como com elas e agradeço muito! Seria uma tremenda falta de respeito recusar algo que nos ofereçam - é mesmo ofensivo! (Fico encantada e com o meu coração cheio, o único detalhe é que não gosto de tâmaras nem do café deles, o que me obriga a comer, degustar, deglutir e sempre com um sorriso franco, nunca dando a entender o meu sacrifício!)

Aqui, quem faz a gestão das camas a nível hospitalar e seus internamentos são os enfermeiros... Ou seja, existe uma equipa de enfermeiros que a sua função é ver quantas camas, e em que enfermarias, estão livres, e decidem se o doente reúne ou não condições para ir para a enfermaria...

Eis que me dizem que a minha doente mulher vai para uma enfermaria... Preparo tudo e quando chego lá, o quarto era duplo... tinha lá outra doente mulher, mas cujo acompanhante era homem - e pela situação particular daquela doente, ele tinha autorização para permanecer... A mãe, acompanhante da minha doente imediatamente disse que não podia ficar naquele quarto, ainda que tivesse cortinas o que lhes garantia toda a privacidade, mas ela recusou em definitivo. Ok, temos um problema...o que se faz aqui? Dá-se extrema importância aos apelos do doente e da família... e nada do que eles pedem será recusado, ou pelo menos reúnem-se todos os esforços nesse sentido... Aqui existe um elemento que é o gestor de problemas dos doentes... Ele é imediatamente chamado, bem como a enfermeira supervisora do hospital, envolve-se ainda o enfermeiro que faz a gestão das camas, num esforço conjunto para respeitar a doente e família e solucionar o problema... Após 35 minutos de conversações, conseguiram arranjar uma outra cama disponível numa outra enfermaria, e desta vez apenas e só mulheres...

Aqui, e a propósito do respeito e envolvimento das famílias, quando há um doente que pelo seu estado se põe a hipótese de não reanimação, para além de terem que ser três médicos a decidir em conjunto, ainda se chama a família, se não estiver presente, ou se apenas estiver uma filha, chamam-se familiares homens e a situação é explicada em pormenor no sentido de eles entenderem que pela situação clínica tudo se fará ao doente, mas em caso de paragem, não se faz uma reanimação... Se a família decidir não aceitar, por norma o doente continua a ser um doente para reanimar.

Outro aspeto muito interessante é, se a família não está satisfeita com o tratamento, ou que lhe digam que naquela situação em particular já nada mais podem fazer, mas tiverem, imaginem, na Alemanha um médico que depois de analisar a situação, lhes diga que tem tratamento para oferecer ao doente, então o rei paga todas as despesas de hospital, viagens, e alojamento para os acompanhantes! Fantástico não? Acreditam? Acreditem que é verdade!

 

Se o problema é ginecológico e não há médica a doente não é observada

Quando chego ao serviço já tenho outra doente admitida... a doente tem um qualquer problema ginecológico... o médico chega e é homem... o marido recusa de imediato que a sua esposa seja observada por um homem. Aqui, nem se levanta um problema, pois o médico aceita com serenidade e compreende... e então tentam a todo o custo encontrar uma médica no hospital disponível para observar a doente... se isso não for possível, a doente pura e simplesmente não é observada e vai embora... Já me aconteceu assistir a um momento desesperante de uma mulher em franco trabalho de parto, já num período de iminente expulsão e o marido pura e simplesmente não autorizava o médico homem a aproximar-se da mulher, mais uma vez, não se entram em discussões, mas o desespero para encontrar uma médica já era enorme... estavam duas vidas em perigo... mas sim, conseguiram encontrar uma colega disponível não sei bem onde, e em 15 minutos ela estava lá e correu tudo bem... nem quero imaginar outro cenário!

Aqui se consegue perceber e demarcar bem o patriarcado sempre presente... se tens doente o homem e a mulher, e se é o que precisa, por exemplo de uma transfusão de sangue, têm que assinar um consentimento, mas só um homem o pode fazer... ou seja, se o doente não estiver capaz de consentir e assinar, terá que ser o pai, irmão, tio, sobrinho, filho... mas nunca uma mulher!

 

O ramadão

Estando eu prestes a terminar este dia, não posso deixar de escrever alguns aspetos ligados ao Ramadão... muito haveria para descrever sobre o ramadão, mas desta vez ficamos por aqui...

O ramadão, o que é? É uma altura do ano, e tem a ver com o calendário que eles usam, e com as luas... em que durante um mês os muçulmanos têm que praticar jejum... E porquê? Explicaram-me eles, que é uma altura nobre de reflexão, sacrifício, de purificação da alma... Passando tu pelo jejum de tantas horas consegues dar mais valor aos que nada têm para comer! A partir da primeira reza da manhã, que vai variando, mas será cerca das 4:00 da manha, já não comem, nem bebem, nem fumam... até ao pôr-do-sol, que será na ultima reza do dia, por volta das 18:30... Estão isentos de fazer jejum os idosos, os doentes, as grávidas, as mulheres menstruadas... mas ainda assim, ainda que totalmente contraindicado, temos por vezes doentes, na maioria idosos que insistem em fazer o jejum... O problema poderia ser grande... mas aqui isso não se encara como um problema e então todo o hospital assume uma orgânica diferente... ou seja, respeita o jejum do doente, o pequeno almoço é pedido para as 18:30 e assim se começa o dia... o almoço vem às 2:00 da manhã e depois as 3:30 tem uma refeição ligeira... E a medicação? A que é oral tem que ser toda invertida... Durante o dia o hospital fica muito calmo, menos acompanhantes pois eles optam por ficar sossegados a dormir, para não gastar muita energia e suportarem o jejum... Quando começa a chegar a hora de quebrar o jejum é a alegria total... À porta do hospital as pessoas preparam comida, o próprio hospital põe nas entradas caixas com garrafas de água e comida. A caminho do hospital oferecem-nos caixas de comida... É uma alegria contagiante, e também um momento de partilha, entrega e solidariedade pelo próximo...

Assim sendo, nós ocidentais não temos que jejuar, mas por respeito aos muçulmanos, e por lei... Não podemos beber água, comer, nem sequer mascar uma pastilha elástica em público...

Pois, também eu tive possibilidade de passar pela experiencia do ramadão... Até sou capaz de passar 12 horas do turno sem tocar na garrafa de água que tenho comigo... Mas no ramadão estava sempre cheia de sede. O psicológico a funcionar! Houve um dia que tinha tanta, tanta sede, e ainda faltavam duas horas para a minha pausa, que fui à casa de banho, olhei em volta, não vi ninguém, e comecei a beber água do lavatório (que apesar de potável ninguém a consome pelo seu mau sabor), e com as mãos debaixo da torneira, comecei a beber água como se estivesse no meio do deserto (que por acaso até estou! Feliz coincidência!) a caminhar há horas, e encontrasse um lago num oásis. Nunca uma água me soube tão bem! Mas fui logo apanhada, teriam passado talvez cinco segundos quando entra uma muçulmana na casa de banho... Olhámos uma para a outra, não sabia se rir ou outra coisa qualquer. Ela olhou para mim com olhar terno, e sem uma única palavra, disse-me com todas as letras: "Vai lá, eu não digo a ninguém e compreendo-te"... Correu bem!

E assim se passaram as minhas/nossas 12 horas. Vamos para casa... estou cansada... fisicamente sim, mas mais psicologicamente, com tanta informação, gestão de conflitos interiores, turbilhão de sentimentos. No final tudo acaba bem... E já agora e porque até temos à noite aquelas temperaturas dos nossos antigos verões, vamos relaxar para a piscina...

Enfermeira Cátia

Este artigo foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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Autor: 
Enfermeira Cátia
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.
Foto: 
Enfermeira Cátia