O sonho de um viajante

Viajar com a Enfermagem

Atualizado: 
06/01/2015 - 15:37
Cheguei a África para cumprir o sonho pessoal de ser um viajante. Nunca pensei em ir para África para salvar pessoas ou salvar o mundo. Ser Enfermeiro é algo que viajou comigo.
Enfermeiros África

Nunca pensei em ir para África para salvar pessoas ou salvar o mundo. Ser Enfermeiro é algo que viajou comigo. A minha profissão ajudou-me a derrubar muitas barreiras, pois deixa-me de cara com o mais profundo do ser humano: saúde, vida ou morte... Cheguei a África para cumprir o sonho pessoal de ser um viajante. O meu amigo Fábio, que por lá tinha nascido, iniciou-me com a magia desse continente. Apresentou-me a R. Kapuscinski que me guiou em muitas histórias. Foi também lá que reencontrei a minha mulher…

Guiné Bissau, Novembro de 2005
Estávamos há 2 dias em Canchungo (zona rural do Noroeste da Guiné), onde a presença de casos de cólera na região tinha-nos obrigado a isolar uma área no hospital e a formar pessoal sanitário capaz de dar uma correta resposta à epidemia. Levávamos semanas a repetir o mesmo procedimento em diferentes localizações do norte da Guiné. Eram 22h00 e o Abdul (o nosso motorista) já tinha acabado de jantar e ido dormir. Eu decidi ficar com Marlene a beber uma cerveja. O Miguel entra no restaurante, aproxima-se de mim e diz que a Mãe dele está muito doente, e se podemos ir buscá-la. O Miguel trabalha connosco como Agente de IEC (Informação, Educação, Comunicação). Ele diz que ela “fica” numa aldeia muito perto e que alguém que chegou de lá lhe falou que ela estava com muito vómito e diarreia. Saltando as regras de segurança, em que o motorista é o único autorizado a conduzir, decido pegar no carro e sair com ele em busca da Mãe. Seguimos por uma picada no escuro da noite africana. Depois de duas horas começo a sentir incómodo e a pensar que devia ter acordado o Abdul para nos acompanhar. A cada vez que pergunto ao Miguel se falta muito ele diz: “é já ali”. Antevemos na estrada um aglomerado de pessoas que rodeiam um corpo. A Mãe do Miguel morreu no caminho quando se dirigia para o Hospital de Canchungo. A primeira visão de um cadáver de cólera dá-te a impressão de uma morte que já aconteceu há muito tempo. O corpo desidratado adquire contornos de múmia.

Luanda, Angola, Maio de 2006
Outra vez a Cólera (doença intestinal aguda, provocada por uma bactéria (Vibrio cholerae). Os principais sintomas são vómitos e diarreia aquosa aguda (tipo água de arroz), provocando a morte por desidratação. O tratamento é muito simples e consiste na reidratação (oral ou IV, dependendo do estado de desidratação) dos pacientes com solução salina. O grande problema surge com a falta de infraestruturas de saúde, a existência de rede de águas contaminadas e o difícil acesso a água potável, ausência de sistemas de saneamento, e o desconhecimento da doença por parte da população, que acode tarde aos centros de saúde, muitas vezes em estado de desidratação severa…

A Angola das mil riquezas e ostentações e a sua Capital sofria um dos maiores surtos de cólera da sua história. Os primeiros casos foram detetados no mês de Fevereiro no bairro da Boavista. Estávamos em Maio e os Médicos Sem Fronteiras (MSF) tinha instalado 5 Centros de Tratamento de Cólera (CTC) em Luanda. A Incidência era de 500 casos novos cada dia. Na minha chegada ao projeto disseram-me que seria o responsável pelas atividades do CTC do Bairro da Boavista. Este centro tinha uma equipa de 25 Enfermeiros, 2 Médicos, 20 auxiliares e mais 20 trabalhadores não sanitários (pessoal IEC, Logística e Cozinha). Tinha de organizar os turnos, formar o pessoal, e supervisionar a qualidade das atividades. Recebíamos nesta fase entre 150 a 200 casos novos ao dia, muito dos quais com desidratação severa. Uma das grandes dificuldades que encontrei nos primeiros dias foi a necessidade de instalar capacidade de atuação rápida nos casos de desidratação severa. Lembro-me que muitos enfermeiros tinham dificuldades na colocação de cateteres venosos, o que se complica nos casos de cólera devido à hipovolémia inerente à patologia, e de sobremaneira em crianças. Depois de semanas de frustração em que morreram vários pacientes, já tínhamos alguns “craques em encontrar veias”. Era com orgulho que me mostravam que todas as crianças tinham a sua perfusão de Lactato de Ringer (solução salina mais comum utilizada no tratamento de Cólera) já estavam salvas da “terrível” doença. No seu afã de perfundir mais e mais, algo de extraordinário acontece. Começo a encontrar crianças “redondas” com edemas na face e nos braços, sintoma nada característico de um quadro de Cólera. Seguinte passo: Revisão de protocolo de tratamento de cólera, cálculo de perfusão e prevenção de edema agudo de pulmão em crianças em tratamento de Cólera!!!....

Shamwana, RD Congo, 2014
“A Malária mata cada minuto uma criança em África”. Sempre ouvi esta frase mas nunca antes de chegar ao Congo tinha tido sentido para mim.

 A República Democrática do Congo tem uma área de 30 vezes a de Portugal, é considerado um dos países com mais recursos naturais do mundo e ocupa o penúltimo posto no Índice de Desenvolvimento Humano (só à frente do Níger). Foi propriedade privada do Rei Leopoldo II da Bélgica, que espoliou o país até 1908 e durante 20 anos provocou a morte de 8 milhões de Congoleses (na II guerra mundial morreram 6 milhões de Judeus). O Congo consegue a independência da Colónia em 1960 e desde então diferentes interesses estrangeiros financiam diferentes grupos rebeldes que provocam instabilidade e violência. Os contínuos movimentos de refugiados internos traduzem uma população doente, arruinada, violentada.

Cheguei a Shamwana, no início de Janeiro de 2014. Quase todas as aldeias tinham sido queimadas e a população tinha fugido para os grandes centros populacionais onde conseguiam ter acesso a cuidados básicos de saúde. Médicos Sem Fronteiras suportava neste momento 1 hospital em Shamwana e 4 Centros de Saúde periféricos a Shamwana (o mais distante a 80 km), que estavam diariamente abarrotados de pacientes. A principal morbilidade era a Malária. Complicações como anemia severa, desidratação, convulsões, hipoglicémia, associadas à desnutrição crónica da população, traduziam uma alta mortalidade. A impossibilidade de transfusão sanguínea devido à ausência de banco de sangue nos Centros de Saúde obrigava a transferir os pacientes para Shamwana. As longas horas de caminho, a ausência de transportes, a insegurança da zona, contribuíam para que os pacientes chegassem muitas vezes “demasiado tarde”. Muitas vezes quando nos dirigíamos aos Centros de Saúde encontrávamos pelo caminho pais com os filhos às costas, com horas de marcha por caminhos enlodados. Acenavam-nos e parávamos os carros. Depois de uma avaliação inicial do estado da criança decidíamos dar meia volta e transportá-la ao hospital. Os pais suspiravam, pois sabiam que dessa vez era provável que o seu filho ganhasse a luta à Malaria…

 

Nota Biográfica
Pedro Cabeleira, Enfermeiro
Nascido a 26 de Dezembro de 1976, obteve a licenciatura em Enfermagem em 2001 e o Mestrado em Saúde Internacional e Medicina Tropical na Universidade Autónoma de Barcelona em 2008.
Trabalhou como enfermeiro em serviços de psiquiatria e ortopedia em Barcelona (Espanha), Milão e Pádua (Itália).
Entre 2000 e 2004 exerceu em serviços de cirurgia e unidade de cuidados intensivos no Hospital da Universidade de Coimbra e no Hospital de São João.
Foi Supervisor de Actividades Outreach em projeto de Atenção Primaria e Acesso á Saude a vítimas de conflito armado, na província do Katanga, RD Congo.
Gestor de Atividades Sanitárias em projeto de Atenção Primaria e Acesso á Saude a vítimas de conflito armado, na província de Nariño, Colombia.
Enfermeiro de Terreno em projeto de Emergência de desnutrição, em Liben, região Somali, Etiópia.
Gestor de Atividades Sanitárias em projeto de Atenção Primaria de Saúde nos distritos de Macomia, Ancuabe e Meluco, em Cabo Delgado Moçambique.
Enfermeiro de Terreno de "Prevenção, Diagnostico e tratamento de paludismo na comunidade Rural de Tekane", Rosso, Mauritânia.
Enfermeiro de Terreno de emergência de cólera em Angola.
Enfermeiro de Terreno em projeto de emergência de cólera em Guiné-Bissau.

Autor: 
Pedro Cabeleira - Enfermeiro
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.
Foto: 
Pedro Cabeleira