Uma lição de vida

Hafiz, jovem pastor nómada apanhado pela guerra

Atualizado: 
19/01/2015 - 17:27
Tudo é possível, até ao último sopro. Hafiz, cinco meses depois, deixa o hospital e reassume a sua vida, seguindo pelo deserto do Sahara. Márcia, Enfermeira, desvenda uma lição de vida. Um ligeiro toque de mão e um olhar sumido que suplicam: Não desistas de mim!!

Era um sonho… um sonho de criança e durante muito tempo as portas permaneceram fechadas! Mas um dia o sonho tornou-se realidade…

Primeiro dia, a ansiedade e o nervosismo dominavam-me… novas línguas, novas culturas, novos profissionais,… um turbilhão de emoções e de sentimos brotavam do meu ser!

Sábado, 8h00 da manhã, entro no bloco operatório, um odor intenso paira no ar, olho e vejo um paciente consciente, com dificuldade respiratória, num estado clínico crítico e com um penso completamente repassado. A minha essência leva-me a agir e tento transmitir calma. Já na maca cirúrgica abro o penso e deparo-me com uma lobectomia traumática infetada, com 3 dias de evolução!

Durante a cirurgia tento perceber a história do paciente. O paciente é um jovem pastor nómada de nome Hafiz que foi capturado nas teias da guerra e que viajou durante 3 dias com um amigo à procura de ajuda!

 

São 13h00, Hafiz acorda, está consciente mas não tem autonomia respiratória, precisa de cuidados intensivos! Não temos ventilador! Não temos recobro! Não temos Sangue! Não temos profissionais com competências! Às 17h00 temos que abandonar o hospital-regras de segurança! Que fazemos!?!? Enquanto se toma uma decisão fico duas horas com o reanimador manual! Incentivo o doente a respirar mas ele não tem forças, está exausto e o estado clínico geral é muito frágil! Ele apercebe-se que algo se passa! Num dos meus muitos incentivos o paciente pega na minha mão olha-me nos olhos e o seu silêncio diz-me Tudo. Não desistas de mim!! Nunca irei esquecer este momento, a sua expressão e a sua atitude. Deu-me tanta energia e força que ainda hoje a utilizo nos momentos mais frágeis. Ao longe ouvia “ …. não podemos fazer mais nada… já não está nas nossas mãos…”  Mas a minha consciência dizia para pelo menos tentarmos, não desistirmos antes do final da batalha! Adotei uma atitude mais ativa e comecei a fazer pressão na equipa cirúrgica para incentivarmos os nossos superiores a tomarem uma decisão mais viável tendo em conta as circunstâncias. A decisão tomada era inédita – Hafiz passaria a noite no bloco operatório com um enfermeiro nacional e com a reanimação manual! Uma unidade se sangue seria doada por um membro da equipa. Expliquei ao enfermeiro nacional todos os cuidados de enfermagem a prestar e todos os sinais de alerta mas, as indicações não se enquadravam na dura realidade porque não tínhamos NADA!

 

São quase 17h00, temos que abandonar o hospital mas o coração da equipa fica no hospital e partimos com uma grande angústia. Peço ao enfermeiro nacional para explicar a Hafiz a situação… compreende, dou-lhe a mão e saio com um sentimento de impotência, Inshalá!

Durante a noite o anestesista e eu damos indicações pelo telefone e rezamos…  passo a noite com insónia e relembro aquele momento inesquecível! Planeio, imagino e improviso os meus cuidados, não é fácil, falta mais do que há! Mas desistir não consta do meu vocabulário!

Às 7h30 da manhã partimos expectantes para o hospital… Hafiz tinha resistido, tinha mais capacidade respiratória, mas o seu estado geral era muito frágil. Pego-lhe na mão, falo com ele mas apenas me abre os olhos… Tínhamos mais pacientes e não podíamos deixar o Hafiz no bloco operatório – colocamo-lo na enfermaria. Tudo era novo para mim, podíamos denominar de enfermaria porque tinha camas! Todo o resto que possam imaginar era pura ilusão! Colocamos o Hafiz numa cama, em colchão de plástico, sem lençóis e com o concentrador de oxigénio portátil que era tudo o que tínhamos! Improvisei tudo o que possam imaginar para lhe prestar os cuidados mínimos de sobrevivência.

Um dia mais passou e Hafiz continuava connosco, cada pequeno sinal positivo era uma grande vitória para mim, os meus colegas chamavam-me maluca, mas eu sentia-me cada vez mais confiante. Éramos dois a lutar e com o passar dos dias comecei a sentir que esta luta já era também do anestesista, o cirurgião continuava negativista e realista. Márcia, Hafiz não está na Europa! Não temos recursos humanos, não temos recursos materiais! Não desafies a Lei da Natureza! Mas eu continuava na minha ilusão e não iria desistir.

Todos os dias ia ao Bloco operatório para penso cirúrgico e era sujeito a anestesia/sedação. Anasarca, hipovolémia, hipoxia, anemia, sépsis, fístulas, oclusão intestinal… o Hafiz resistia e a equipa cantava Inshalá!

Hafiz, muçulmano, todos os dias me oferecia um sorriso largo e sincero que era retribuído e que me dava ânimo para continuar porque existiam mais “Hafiz”.

 

Durante três meses o Hafiz realizou pensos cirúrgicos diários no bloco operatório e foi sujeito a quinze atos cirúrgicos. A evolução era lenta mas progressiva e com o tempo toda a equipa se rendeu às evidências e passou a considerá-lo como uma lição de vida, de que tudo é possível. Quando sentiu forças começou a dar suporte emocional aos outros pacientes.

Partiu ao final de 5 meses, em direção ao deserto do Sahara – Chade, com um sorriso rasgado nos lábios e com o objetivo de tudo recomeçar, porque a guerra lhe tinha tirado toda a família e os todos os pertences.

Hoje quando estou com os meus colegas em situações limite, relembramos esta lição de vida que nos dá forças para continuar a lutar nesta nossa “guerra”.

Sei que o trabalho que fiz foi apenas um pequenino grão de areia neste mar de desigualdades, mas levo a certeza, que para a minha vida foi um oceano de sensações e emoções. Foi e será sempre a minha inspiração e “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. OBRIGADA.

Márcia Martins, Enfermeira no Chade, 2014

Nota Biográfica

Márcia Martins, 36 anos, nasceu em Cantanhede. Licenciou-se em Enfermagem e posteriormente tirou a pós graduação de Urgência/Emergência de Gestão de Economia da Saúde. Exerceu Enfermagem no Centro hospitalar de Coimbra durante 11 anos, nos serviços de cirurgia e de urgência. Foi sócia de uma clínica médica sediada no Sabugal e com filiais em Águeda e Coimbra e tesoureira/vogal da casa do pessoal do Centro Hospitalar de Coimbra. Desde cedo se interessou pelo voluntariado tendo prestado serviços na Cruz Vermelha Portuguesa de Coimbra. Atualmente trabalha para o Comité Internacional da Cruz Vermelha prestando cuidados de enfermagem a pacientes de guerra. Esteve no Chade e na República Democrática do Congo. E no futuro? Sudão do Sul? Líbano? África Central?

Autor: 
Márcia Martins - Enfermeira
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.