Estudo

Crise na Venezuela desfez quase 20 anos de progressos na área da mortalidade infantil

A crise socioeconómica que afeta a Venezuela e o aumento da incidência de doenças infecciosas e parasitárias terão desfeito quase duas décadas de progressos alcançados naquele país na área da mortalidade infantil, indica um estudo internacional.

“Lamentavelmente, o país está a mostrar uma deterioração da sobrevivência infantil pela primeira vez. A Venezuela é o único país da América do Sul que voltou a níveis da mortalidade infantil dos anos 1990”, afirma Jenny Garcia, do Instituto Nacional de Estudos Demográficos da Universidade de Paris Panthéon-Sorbonne, uma das entidades que conduziu o estudo, publicado ontem no jornal The Lancet Global Health.

A investigação, que também foi conduzida por especialistas de institutos e universidades venezuelanos, apresenta-se como “o primeiro estudo” que tenta preencher a ausência de dados oficiais sobre esta matéria, uma vez que o governo venezuelano deixou de divulgar estatísticas de mortalidade em 2013.

“Este é o primeiro estudo que tenta preencher esta lacuna e tenta traçar um cenário da mortalidade infantil na Venezuela com base em dados hospitalares e censos da população posteriores a 2013”, referem os especialistas, recordando que, em 2016, a Assembleia Nacional da Venezuela (parlamento) declarou uma crise humanitária no país.

O estudo indica que as taxas de mortalidade infantil na Venezuela podem ter parado de regredir e começado a aumentar em 2009, ano em que o financiamento do sistema de saúde venezuelano começou a ser substancialmente reduzido. Na altura, a Venezuela era governada por Hugo Chávez, que liderou o país entre 1999 e 2013.

Os investidores estimam que, em 2016, a taxa de mortalidade infantil na Venezuela foi de 21,1 mortes por cada mil nados vivos, o que significa 1,4 vezes mais do que a taxa registada em 2008 (15,0 mortes por cada mil nados vivos).

Em Portugal, em 2016, a taxa de mortalidade infantil foi de 3,24 mortes por cada mil nados vivos (no ano passado foi de 3,28 mortes por cada mil nados vivos).

A análise publicada ontem reforça que o valor estimado para 2016 é equivalente à taxa de mortalidade infantil registada em finais da década de 1990 na Venezuela, com os especialistas a concluírem que os progressos alcançados pelo país ao longo dos últimos 18 anos nesta área podem estar perdidos.

“Na ausência de dados oficiais, as estimativas de mortalidade infantil da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Comissão Económica das Nações Unidas para a América Latina e Caraíbas (CEPAL) assumiram que a tendência histórica de queda tinha continuado nos últimos anos. No entanto, é improvável que tais estimativas representem com precisão os efeitos da recente deterioração nos padrões de vida e na prestação de cuidados de saúde”, salienta o documento.

No estudo, os investigadores recordam que, entre as décadas de 1950 e 2000, a Venezuela registou um declínio significativo nos níveis de mortalidade infantil, ao ter criado “políticas destinadas a proteger a população mais vulnerável”.

“Durante a segunda metade do século XX, a Venezuela sofreu um dos maiores declínios na mortalidade infantil na América Latina, de 108 por cada mil nados vivos em 1950 para 18,2 por cada mil nados vivos em 2000. Esse declínio na mortalidade infantil foi impulsionado pelo progresso económico, pelo aumento dos padrões de vida, pelo melhor saneamento, pelas campanhas de vacinação em massa, pela distribuição de antibióticos e pela eliminação de vetores transmissores de doenças”, menciona o documento.

Mas, “desde a crise, o estado nutricional (das pessoas) deteriorou-se, com 89,4% dos lares a declararem não ter dinheiro suficiente para comprar alimentos em 2017”, realçam os investigadores.

A investigação acrescenta que, desde 2007, os gastos governamentais com a saúde diminuíram, opção que resultou na diminuição de consultas médicas, no recuo da taxa de ocupação das camas hospitalares e em campanhas de vacinação inadequadas.

O estudo avança ainda que, em 2014, as despesas com serviços de saúde representavam 64% do total das despesas do orçamento das famílias, uma das maiores percentagens na América Latina.

Enquanto isso, frisam também os investigadores, “a escassez de medicamentos básicos, de utensílios cirúrgicos e das fórmulas de leite em pó para lactantes desencadearam aumentos de preços, tornando os serviços de saúde inacessíveis para a maioria dos venezuelanos”.

Ainda no documento, é referido que, desde 2016, a OMS tem relatado um aumento da incidência de doenças infecciosas e parasitárias “que tinham sido controladas ou erradicadas em décadas anteriores” no território venezuelano.

“Durante crises significativas, as causas mais comuns de morte são as mesmas daquelas relatadas nos países com as maiores taxas de mortalidade infantil: doenças diarreicas, infeções respiratórias agudas, sarampo, malária e desnutrição severa. Todos esses elementos estão presentes na Venezuela e certamente afetarão negativamente a mortalidade infantil futura”, sustenta Jenny Garcia.

Os investigadores deste estudo acautelam ainda que “correm o risco de produzir estimativas conservadoras”, ao presumirem que o registo de nascimentos e de mortes permaneceu no mesmo nível observado antes da crise, apesar da degradação dos serviços públicos.

A Venezuela enfrenta uma grave crise política, económica e social que levou 2,3 milhões de pessoas a fugir do país desde 2015, segundo dados da ONU.

Fonte: 
LUSA
Nota: 
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