Entrevista | Dra. Inês Azevedo; Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP)

As terapêuticas moduladoras “vieram alterar radicalmente a qualidade de vida dos doentes” com Fibrose Quística

Atualizado: 
29/11/2022 - 11:55
A Fibrose Quística (FQ) é uma doença rara, genética e degenerativa e que afeta cerca de 80.000 pessoas em todo o mundo e cerca de 380 em Portugal. É uma doença progressiva e multissistémica que afeta os pulmões, fígado, trato gastrointestinal, seios perinasais, glândulas sudoríparas, pâncreas e sistema reprodutivo, sendo causada por uma proteína CFTR ausente ou alterada. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Inês Azevedo, Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria fala das principais manifestações clínicas e complicações da doença, revelando que, apesar de ainda não ter cura, com o desenvolvimento de novos medicamentos, os doentes hoje podem viver com mais qualidade.

Segundo o programa nacional de rastreio nascem, em Portugal, todos os anos, entre quatro a seis crianças com fibrose quística. Uma doença genética associada a problemas pulmonares e nutricionais pouco abordada, exceto quando surgem casos ou apelos através da comunicação social. Para começar, peço-lhe que caracterize esta patologia: de que se trata, como se transmite e a que sinais devemos estar atentos. 

A Fibrose Quística é uma doença crónica hereditária que ocorre quando existe transmissão por ambos os pais de mutações num gene responsável pela produção de uma proteína conhecida por CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Regulator). As pessoas com uma só mutação são consideradas portadoras e não têm a doença.

A doença pode afetar vários órgãos e sistemas, sobretudo os sistemas respiratório, digestivo e reprodutor. As manifestações clínicas que comprometem mais a vida dos doentes são as manifestações respiratórias, dado que existe propensão para colonização por bactérias e infeções respiratórias de repetição que, a longo prazo, vão provocando destruição progressiva do pulmão. Felizmente, com tratamentos adequados conseguimos diminuir em muita essa evolução. Numa grande maioria dos doentes existe ainda dificuldade de digestão de alimentos gordos, o que pode causar esteatorreia (fezes moles com gotículas de gordura), malabsorção de alimentos e de algumas vitaminas, com consequente atraso de crescimento e dificuldade de manter um índice de massa corporal adequado.

Desde o final de 2013, em Portugal, o rastreio da doença é efetuado no teste do pezinho, portanto a maioria dos doentes que chegam hoje à consulta pediátrica são recém-nascidos que ainda não têm quaisquer manifestações da doença. A FQ pode também ser diagnosticada na infância, juventude ou na idade adulta pelo aparecimento de sintomas sugestivos da doença, nomeadamente os que referi anteriormente. A diabetes associada à FQ e os problemas de fertilidade são manifestações mais tardias da doença.

Podemos falar de grupos de risco? 

A Fibrose Quística é uma doença hereditária por isso existe maior risco de ter a doença quando há casos conhecidos em familiares próximos.

Como é feito o diagnóstico da Fibrose Quística? É um diagnóstico rápido ou costuma passar algum tempo entre o início dos primeiros sintomas e a sua identificação?

Nos recém-nascidos a suspeita é levantada por alterações no teste do pezinho. O diagnóstico só será confirmado se existirem alterações da prova de suor ou se detectarem duas mutações para a doença. A prova de suor é um exame não doloroso em que é colhida uma amostra de suor após estimulação. Na FQ o suor apresenta um valor elevado de cloretos. Antes da introdução do rastreio no teste do pezinho, as manifestações clínicas iniciais podiam passar despercebidas; só a frequência e gravidade dos sintomas faziam levantar a suspeita diagnóstica e conduzir à realização de testes diagnósticos. Assim os casos eram diagnosticados mais tardiamente, numa fase avançada da doença, onde já existiam complicações. No entanto, ainda hoje são diagnosticados casos tardiamente, alguns mesmo em idade adulta, em doentes nascidos antes da introdução do rastreio universal no teste do pezinho e sobretudo em doentes com mutações menos graves em que não ocorre insuficiência pancreática nem afetação do crescimento.

Por falar em início de sintomas, a partir de que idade pode ser diagnosticada? 

A doença pode ser diagnosticada em qualquer idade desde o nascimento. Em situações excecionais, a doença pode  mesmo ser suspeitada ainda na vida intra-uterina e confirmada por estudo genético.

Existem fatores de agravamento da fibrose quística?

As infeções respiratórias são o principal fator de agravamento da doença. Devido à menor quantidade de proteína CFTR ou à sua disfunção, o muco fica muito espesso, favorecendo a colonização por bactérias e a inflamação crónica, com destruição progressiva do parênquima pulmonar. Felizmente com cuidados e tratamento multidisciplinar adequado e um bom cumprimento terapêutico, tem-se registado uma redução das complicações e melhoria franca da qualidade de vida dos doentes.

A fibrose quística tem cura? Em que consiste e com que finalidade é feito o seu tratamento? 

Atualmente e apesar dos esforços incessantes de investigação, ainda não se consegue curar a doença, o que só será possível se conseguirmos corrigir o defeito genético, tal como acontece já noutras doenças.

Nos centros de referência acompanhamos os doentes de forma multidisciplinar, com implementação de medidas preventivas e de tratamentos de suporte, com o uso de fármacos que promovem a saída de muco, antibióticos sistémicos ou inalados, enzimas pancreáticas, dieta hipercalórica, promoção de exercício e reabilitação respiratória. Estas medidas permitiram aumentar muito a esperança de vida dos doentes, mas é crucial a boa adesão dos doentes aos tratamentos.

Contudo, na última década, têm surgido avanços notáveis no tratamento da doença, pelo desenvolvimento de terapêuticas moduladoras que corrigem os defeitos na proteína CFTR ou potenciam a sua ação. Estes tratamentos são altamente eficazes e vieram alterar radicalmente a qualidade de vida dos doentes e aumentar a esperança média de vida. Infelizmente, estes tratamentos não funcionam em todos os casos, pois nalgumas mutações não existe produção de nenhuma proteína CFTR. São medicações dadas por via oral, que ao corrigir o defeito molecular, diminuem a disfunção dos órgãos, melhoram a função respiratória, diminuem o número e a gravidade de infeções, diminuem as hospitalizações, otimizam o estado nutricional e permitem normalizar a vida dos doentes. São resultados muito animadores.

 Sabendo que esta é uma patologia que compromete vários grupos sistémicos, quais as especialidades que acompanham estes doentes e qual a importância de equipas multidisciplinares? 

Desde há muitos anos que, através de equipas multidisciplinares, conseguimos melhorar a sobrevida dos doentes. As especialidades basilares são a pneumologia pediátrica e de adultos; existe depois um conjunto de elos essenciais, desde a nutrição, à enfermagem dedicada, farmacêuticos, fisioterapeutas, psicólogos e assistentes sociais. Mediante os casos pode haver necessidade de envolver outras especialidades como gastrenterologia, endocrinologia, infeciologia ou mesmo equipes de transplante. Ou seja, existe um grande número de profissionais envolvidos e por isso é que é tão importante esses doentes serem tratados em centros de referência.

Em Portugal, existem centros de referência para o diagnóstico e tratamento da fibrose quística? 

A partir do momento em que existe uma suspeita de diagnóstico, os doentes devem ser referenciados para os centros que são especializados no diagnóstico e tratamento da doença. Importa referir que o diagnóstico é rápido, depois do doente chegar a um centro de referência. O resultado da prova de suor é fornecido em muito pouco tempo, o diagnóstico genético das mutações mais frequentes também é conhecido em uma a duas semanas. Se for necessário fazer pesquisa de mutações mais raras podemos ter de um a dois meses, pois existem mais de duas mil mutações causadoras da doença. Em Portugal, temos dois centros de referência no Porto, um localizado no Centro Hospitalar Universitário de São João e outro no Centro Hospitalar do Porto; em Coimbra, temos acesso no Hospital Pediátrico e no Centro Hospitalar de Coimbra, e em Lisboa, temos centros no Hospital Santa Maria e o Hospital Dona Estefânia. Nas regiões autónomas também existem colegas dedicados a esta patologia.

Os cuidados de saúde primários estão, na sua opinião, preparados para referenciar estes doentes? Há informação suficiente junto destas equipas? 

Existe a necessidade de aumentar a consciencialização de todos os profissionais de saúde e não só dos que trabalham em cuidados de saúde primários para a existência desta doença, porque ocasionalmente ainda nos chegam casos com diagnósticos tardios. É importante porque é uma doença rara, e como todas as doenças raras, é mais difícil de ser reconhecida. Em pediatria e pneumologia, a maioria dos colegas contacta com a doença ao longo da sua formação, mas existe oportunidade de melhoria, porque o atraso no diagnóstico pode agravar a evolução da doença. Sempre que existem queixas sugestivas, os doentes devem ser referenciados aos centros de referência, onde existem meios adequados para o diagnóstico e seguimento dos doentes.

Após o diagnóstico, quais os cuidados a ter?

Logo nas primeiras consultas, os doentes são informados dos cuidados preventivos de infeções e a seguir regras de higiene estritas. Com a pandemia de Covid-19 houve maior divulgação das regras gerais de etiqueta respiratória, pelo que esta tarefa está mais facilitada. Por exemplo, anteriormente as crianças e adolescentes sentiam-se diferentes por lhes ser recomendado o uso de máscara em ambientes hospitalares, mas com a pandemia este hábito tornou-se comum e obrigatório para todos. 

Os cuidados de prevenção de infeções respiratórias incluem ainda a vacinação contra a gripe e a COVID-19. Os doentes são encorajados a entrar em contato com a equipe cuidadora quando ocorrem infeções, porque é necessário cobertura antibiótica adequada ou mesmo hospitalizações nas situações mais graves. Desde cedo promovemos a prática de exercício físico e a boa adesão a técnicas de fisioterapia para drenagem das secreções.  

A nível digestivo, quando existe insuficiência pancreática, é muito importante a boa adesão à terapêutica com enzimas pancreáticas e seguir uma dieta adequada que, nestes casos, se baseia numa dieta hipercalórica e com maior suprimento de sal, o que vai permitir a otimização do estado nutricional.

 Qual o prognóstico desta patologia e quais as complicações mais frequentemente associadas?

Com cuidados multidisciplinares integrados assistimos à melhoria significativa da qualidade de vida dos nossos doentes e felizmente o prognóstico tem vindo a melhorar ao longo dos anos, com aumento da sobrevida, que já ultrapassa os 50 anos em alguns casos. O diagnóstico precoce com a introdução do rastreio universal veio melhorar ainda mais o prognóstico, ao permitir implementar cuidados preventivos desde cedo e tratar atempadamente as complicações. As novas terapêuticas moduladoras estão a mudar radicalmente o panorama da doença.

De que forma esta patologia impacta a vida dos doentes e suas famílias?

O diagnóstico de uma doença crónica potencialmente grave tem enorme impacto nas pessoas. Atualmente, quando da suspeita diagnóstica, muitas pessoas vão pesquisar sobre a doença na internet e deparam-se com informações que nem sempre interpretam da forma mais adequada, pelo que é fundamental o apoio permanente de profissionais de saúde com conhecimentos profundos sobre a doença e os seus impactos. Felizmente, com diagnóstico precoce e com uma boa adesão aos tratamentos, conseguimos assegurar uma qualidade de vida muito boa. Mas claro que para além da ansiedade e  preocupações inerentes a uma doença crónica grave, o diagnóstico tem impacto na qualidade de vida dos doentes e das famílias, porque entre outros aspetos obriga a muito boa adesão aos tratamentos e a uma disciplina diária complexa e demorada: levantar-se mais cedo, fazer os tratamentos nebulizados, cumprir dietas quando por vezes existe desconforto abdominal; tomar vários comprimidos; fazer exercício quando se está cansado, deslocar-se a consultas e à fisioterapia...Tem também impacto económico, apesar da medicação ser gratuita, porque existem os custos indiretos, nomeadamente os resultantes da abstinência ao trabalho.

Que ideias chave devemos reter quanto a este tema? 

O diagnóstico precoce é fundamental para permitir adequar os tratamentos desde cedo e minorar os efeitos da doença. É muito importante o acompanhamento dos doentes em centros de referência, onde existe capacidade de apoio multidisciplinar, apoio que ao longo dos anos veio permitir melhorar a qualidade de vida dos doentes e aumentar a sobrevida. A boa adesão dos doentes às recomendações dos profissionais é também uma pedra basilar para o sucesso terapêutico. Por último, existe uma grande esperança com os novos tratamentos moduladores, que melhoraram muito a qualidade de vida dos nossos doentes e, acreditamos que a investigação incessante nos trará ainda novidades promissoras que poderão conduzir à cura da doença no futuro.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP)