Artigo de Opinião

Os linfomas cutâneos carecem de abordagem multidisciplinar

Atualizado: 
04/03/2021 - 15:43
“Os linfomas cutâneos são doenças raras, que carecem de abordagem multidisciplinar, e os doentes com linfoma cutâneo devem ser observados por profissionais experientes na área, para que seja possível fazer o diagnóstico correto e instituir o tratamento adequado”.

A Consulta Multidisciplinar de Linfomas Cutâneos e Mastocitoses (CMLC) do Centro Hospitalar Universitário do Porto, que envolve os Serviços de Hematologia Clínica e de Dermatologia deste centro hospitalar, foi criada em 2003.

A Consulta funciona um dia por semana, às 5ªs feiras, no Edifício Dr. Luís de Carvalho do Hospital de Santo António, sede do CHUP, e está certificada desde 2005. Integrada na EuroBloodNet, a rede europeia de referência de doenças hematológicas raras, a CMLC é, desde o final de 2016, centro de referência europeu para os linfomas cutâneos e mastocitoses.

Atualmente conta com a colaboração de 3 médicas, a Prof. Doutora Margarida Lima, imunohemoterapeuta, uma das fundadoras da consulta e responsável pela mesma, a Dra. Renata Cabral, hematologista, e a Dra. Iolanda Fernandes, dermatologista. A sua atividade clínica desenvolve-se em colaboração com os restantes colegas dos Serviços de Hematologia Clínica e de Dermatologia, com os médicos e enfermeiros que prestam serviço no Hospital de Dia, e com os colegas de outros serviços do CHUP, que de alguma forma colaboram na prestação de cuidados de saúde aos utentes da Consulta.

O número de doentes foi aumentando ao longo dos anos, o que permitiu alargar progressivamente a experiência nesta área. Em 2019 e 2020 realizaram-se na CMLC entre 600 e 700 consultas por ano, das quais, também por ano, entre 40 e 50 foram primeiras consultas.

Há situações em que os doentes são referenciados diretamente à CMLC por colegas de dermatologia e de hematologia de outros hospitais, ou até mesmo pelos médicos de família. Noutros casos, os doentes são referenciados inicialmente à Dermatologia ou à Hematologia Clínica do CHUP, sendo os próprios dermatologistas e hematologistas a referenciar depois para a Consulta.

Os linfomas cutâneos são doenças raras, mas ainda assim muito diversos

Os linfomas primários cutâneos são, a seguir aos linfomas gastrointestinais, o tipo mais frequente de linfomas extraganglionares. Ainda assim são doenças raras, com uma incidência anual estimada em 1 caso por 100.000 habitantes. A idade média de apresentação é de aproximadamente 60 anos.

Como o próprio nome indica, os linfomas primários cutâneos manifestam-se inicialmente na pele, ainda que potencialmente, a curto, médio ou a longo prazo, outros órgãos possam ser afetados e as células de linfoma possam circular no sangue periférico. Felizmente essa não é a regra, e, na maioria dos casos, estes linfomas permanecem confinados à pele.

As lesões cutâneas podem ser de vários tipos, desde manchas ou placas, até tumores, que podem ulcerar, e podem atingir desde uma área limitada da pele a praticamente toda a superfície corporal.

O diagnóstico, que por norma exige uma ou mais biopsias das lesões cutâneas, é feito através de uma série de exames laboratoriais que se complementam para identificar e caraterizar as células linfóides envolvidas e para classificar o linfoma, nomeadamente a anatomia patológica, a citometria de fluxo, a citologia, a genética molecular e a citogenética.

A classificação dos linfomas cutâneos faz-se segundo o esquema proposto pela Organização Mundial de Saúde e pela EORTC, atualizado pela última vez em 2018. Entre 70 e 80% dos linfomas primários cutâneos têm origem nos linfócitos T e os restantes 20 a 30% têm origem nos linfócitos B.

De entre os linfomas cutâneos de células T, o mais frequente é a Micose Fungóide. Depois, há uma série de subtipos mais raros, algumas com comportamento mais agressivo, como, por exemplo, a Síndrome de Sézary e os linfomas cutâneos de células T gama/delta, e outras com comportamento clínico mais indolente, como, por exemplo, as doenças linfoproliferativas de células T CD4 de tamanho pequeno e médio, as doenças linfoproliferativas cutâneas de células T CD30+, como a Papulose Linfomatóide e os linfomas cutâneos de células grandes anaplásicas. A Síndrome de Sézary é uma forma muito particular de linfoma cutâneo de células T que se carateriza por eritrodermia generalizada e prurido, geralmente associados a adenopatias. O prurido é frequentemente muito intenso e resistente aos tratamentos convencionais, e pode ter um grande impacto na qualidade de vida dos doentes. As células de linfoma, denominadas células de Sézary, estão por definição presentes no sangue periférico. Embora durante muitos anos o Síndrome de Sézary tenha sido considerado em conjunto com a Micose Fungóide, sabe-se hoje que são entidades distintas.

Nos linfomas de células B, temos subtipos de células B pequenas, como o linfoma primário cutâneo de células B da zona marginal e o linfoma primário cutâneo folicular, e os linfomas de células B grandes, nos quais se distinguem pelo menos duas entidades com prognóstico distinto: o “tipo perna” e o tipo “não perna”.

Para o estadiamento dos linfomas cutâneos de células T de tipo Micose Fungóide ou Síndrome de Sézary é utilizada uma classificação TNM modificada proposta pela ISCL/EORTC (International Society for Cutaneous Lymphoma/European Organization for Research and Treatment of Cancer), que tem em consideração o tipo de lesão cutâneas (manchas ou placas, tumores e eritrodermia), a percentagem da superfície corporal atingida pelas mesmas, o envolvimento de gânglios linfáticos, o envolvimento de órgãos viscerais, e a presença ou não de células de linfoma no sangue periférico (TNMB, do inglês Tumor, Node, Metastasis, Blood). De acordo com este esquema, o estadio mais precoce é o estadio IA (mais precoce, com manchas ou placas em menos de 10% da superfície corporal, sem tumores cutâneos ou eritrodermia e sem envolvimento dos gânglios linfáticos, das vísceras ou do sangue periférico) e o estadio mais avançado é o estadio IVB (com envolvimento visceral). Para o estadiamento dos linfomas cutâneos de células B é usada um esquema distinto, também proposto pela ISCL/EORTC.

O prognóstico depende não só do tipo de linfoma, como do estadio em que se encontra quando é diagnosticado, daí a importância de classificar bem a doença e fazer o seu correto estadiamento. Por exemplo, um doente com Micose Fungóide em estadio precoce tem uma sobrevida igual à que terá uma pessoa que não tenha a doença. Mas se o estadio for avançado, pode ter um ou dois anos de vida.

A abordagem dos linfomas cutâneos deve ser multidisciplinar

A abordagem dos linfomas cutâneos deve ser multidisciplinar a diferentes níveis e por vários motivos.

No que respeita ao diagnóstico e classificação da doença, é importante a colaboração das várias especialidades. A escolha da melhor lesão para efetuar a biopsia é fundamental e esta deve ser efetuada por um dermatologista experiente. Por outro lado, para diagnosticar e classificar de forma precisa o linfoma, é necessário conjugar os resultados de várias técnicas, como a citologia, a histologia e a imunohistoquímica, a citometria de fluxo, a genética molecular e a citogenética, que são da responsabilidade de várias especialidades médicas, como a Anatomia Patológica, a Hematologia e a Patologia Clínica, uma realidade que difere de hospital para hospital. Para fazer o diagnóstico preciso é também necessário integrar os resultados no contexto clínico, fase em que os médicos responsáveis pelos doentes, geralmente dermatologistas ou hematologistas, têm um papel muito relevante.

Nas fases precoces, em que os tratamentos são mais dirigidos à pele, o contributo dos dermatologistas é muito relevante enquanto nos casos de doença avançada, em que é necessário recorrer a terapêuticas sistémicas, o hematologista tem um papel decisivo. Outras especialidades médicas podem dar um contributo importante em terapêuticas específicas. É o caso da radioterapia, em que radioncologistas têm um papel decisivo no que respeita à escolha da modalidade que melhor se adapta a cada caso e à sua execução.

Salientamos também o papel dos enfermeiros, quer na educação para a doença, sensibilizando os doentes para os cuidados a ter com a pele, quer no tratamento de feridas, já que quando a doença está numa fase avançada podem surgir tumores cutâneos que ulceram e infetam e que carecem de cuidados de penso efetuados por profissionais com conhecimentos e treino específicos.

A colaboração dos médicos de família é importante

Tal como acontece em outras patologias, os médicos de família assumem um papel relevante na abordagem dos linfomas cutâneos. Estes profissionais são importantes na referenciação aos cuidados hospitalares, quando há uma lesão suspeita de linfoma cutâneo. Por outro lado, nas fases mais precoces da doença, em que é necessário fazer apenas vigilância das lesões, se houver uma boa articulação entre os médicos hospitalares e os médicos de família, é possível reduzir o número de deslocações dos doentes aos hospitais. A colaboração dos médicos de família na vigilância e tratamento das patologias associadas que o doente apresenta é outro aspeto relevante, já que algumas podem interferir e ser afetadas pelos tratamentos instituídos (ex. hipertensão, diabetes, etc.). Nas fases avançadas em que é necessário prestar cuidados paliativos, a colaboração dos médicos e dos enfermeiros de família é igualmente indispensável, porque muitos doentes residem longe do hospital e a proximidade na prestação de cuidados é frequentemente indispensável.

São diversos os tratamentos indicados para os linfomas cutâneos

Apesar dos avanços ocorridos nos últimos anos, os linfomas cutâneos continuam a ser doenças incuráveis. No entanto, com uma gestão correta dos tratamentos disponíveis e com uma abordagem terapêutica personalizada, é geralmente possível controlar as manifestações da doença e contribuir de forma decisiva para a melhoria da qualidade de vida dos doentes.

Os tratamentos disponíveis para os linfomas cutâneos incluem, entre outros, fármacos aplicados na pele, diversas modalidades de fototerapia e de radioterapia, e terapias sistémicas, ou combinações destas. Estes são selecionados de acordo com o tipo de linfoma e o seu estadio, e de acordo com as caraterísticas do doente, seguindo as recomendações da EORTC e da ESMO, atualizadas pela última vez em 2017 e 2018, respetivamente.

Nas fases precoces, e porque a doença geralmente evolui de uma forma crónica, os tratamentos convencionais dirigidos à pele continuam a ter um papel determinante. Por exemplo, na Micose Fungoide, a aplicação tópica de corticoides, e no caso de lesões mais extensas, a fototerapia com radiações ultravioleta de banda estreita ou a fototerapia com radiações ultravioleta A combinada com psoralenos (PUVA), são geralmente bem-sucedidos.

Nos tratamentos sistémicos, usados para tratar formas mais avançadas, há a considerar agentes imunomoduladores, como o interferão alfa administrado por via subcutânea, e os retinóides sintéticos, como o bexaroteno administrado por via oral. Temos ainda diversos tipos de anticorpos monoclonais, como o rituximab (anti-CD20), para linfomas de células B, e o alemtuzumab (anti-CD52) ou o mogamulizumab (anti-CD194/CCR4), para linfomas de células T, e anticorpos monoclonais conjugados com fármacos, como o brentuximab vedotina, um anticorpo monoclonal anti-CD30, ligado de forma covalente a um agente anti-MMAE (monometil auristatina, um componente dos microtúbulos). Alguns destes anticorpos, como é o caso do mogamulizumab, embora aprovados nos Estados Unidos pela FDA (Food and Drug Administration), e na Europa, pela EMA (European Medicines Agency), para o tratamento de linfomas cutâneos de células T refratários a pelo menos um tratamento sistémico, não estão ainda aprovados em Portugal, e o acesso aos mesmos é limitado e só pode ser feito ao abrigo de programas específicos de acesso precoce. Podemos recorrer também a esquemas de monoquimioterapia (ex. metotrexato por via oral em baixa dose, pulsos de clorambucilo com prednisolona, gemcitabina, etc.) e de quimioterapia combinada (por exemplo CVP, CHOP e esquemas similares), cuja taxa de sucesso é limitada.

A orientação terapêutica, embora guiada pelas recomendações europeias, deve ser personalizada e adequada a cada caso, em função não só do tipo de linfoma e do seu estadio, mas também das caraterísticas de cada doente em particular, inserido no seu contexto familiar e social.

Autor: 
Dra. Margarida Lima - médica responsável pela Consulta Multidisciplinar de Linfomas Cutâneos e Mastocitoses do Centro Hospitalar Universitário do Porto
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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