Entrevista

Dra. Clara Gomes: «É importante antecipar o diagnóstico de XLH através de rastreio familiar quando um dos progenitores tem a doença»

Atualizado: 
28/02/2022 - 11:08
Manifestando-se, habitualmente, no final do primeiro ano de vida, “quando a criança começa a fazer carga nos membros inferiores com o início da marcha”, o Raquitismo Hipofosfatémico ou XLH, é uma doença hereditária dominante ligada ao cromossoma X, que rapazes e raparigas que se traduz, quase sempre, em deformidade óssea. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Clara Gomes, especialista em Nefrologia Pediátrica do Hospital Pediátrico de Coimbra, alerta para os sinais de doença, lamentando que a própria classe médica não esteja desperta para o problema. “Continuam a chegar-nos crianças com 3-4 anos já com deformidades significativas, porque falhou o rastreio familiar da doença”, afirma.

Tratando-se de uma entidade clínica rara, e da qual quase nunca se houve falar, começo por lhe pedir que explique em que consiste o XLH ou Raquitismo Hipofosfatémico. O que está na génese desta doença?

Raquitismo define-se como deficiente mineralização da zona óssea onde ocorre o crescimento (placa de crescimento), sendo por isso exclusivo das crianças e adolescentes. Coexiste com mineralização deficiente da restante matriz óssea, designada de osteomalácia que também ocorre nos adultos.

A mineralização consiste na deposição de cristais de hidroxiapatite, constituídos por cálcio e fosfato, que conferem a rigidez ao osso. Para a mineralização adequada, é necessário que a concentração sanguínea do cálcio e do fosfato sejam normais. No raquitismo hipofosfatémico é o fosfato que está baixo (hipofosfatémia) e habitualmente devido a eliminação renal aumentada. O raquitismo hipofosfatémico ligado ao X (XLH) resulta de uma anomalia de um gene localizado no cromossoma X, o gene PHEX, que condiciona a elevação de uma hormona, o fator de crescimento dos fibroblastos 23 (FGF23). Esta hormona promove um aumento da eliminação urinária de fosfato e simultaneamente uma deficiente produção, a nível renal, da vitamina D ativa, o calcitriol. É uma doença hereditária dominante ligada ao cromossoma X, que afeta rapazes e raparigas. Os pais transmitem sempre a doença às filhas e nunca aos filhos, as mães podem transmitir a doença aos filhos e filhas com um risco de 50% em cada gestação. Em cerca de 20-30% dos casos a doença pode ocorrer por mutação que surge de novo, não havendo nestes casos história familiar.

Quais os principais sintomas e a partir de que idade é possível observar as primeiras manifestações da patologia? A que sinais devem estar os pais ou educadores atentos?

Os primeiros sintomas manifestam-se habitualmente no final do primeiro ano de vida, quando a criança começa a fazer carga nos membros inferiores com o início da marcha. Como o osso é mais “mole” surgem as deformidades ósseas típicas com arqueamento das coxas e das pernas. A marcha é alterada tipo bamboleante e a estatura é afetada pelos membros inferiores ficarem mais curtos. Ocorre frequentemente atraso na marcha. Por deficiente mineralização da dentina, podem haver defeitos no esmalte e surgir abcessos dentários espontâneos, sem evidência de cáries.

São estes sinais que devem ser valorizados pelos pais e educadores.

Podem ainda surgir alterações da conformação do crânio como bossas frontais, fusão precoce de suturas com craniossinostose e ainda associar-se a malformações do canal medular na junção com o crânio, a malformação tipo Chiari I.

No entanto, há casos que só são diagnosticados na idade adulta, pelo que se supõe que as deformações ósseas não sejam tão evidentes… O que explica estes casos? E quais a complicações frequentemente associadas a este diagnóstico?

A hipofosfatémia pode condicionar gravidade variável na apresentação clínica – nalguns doentes pode nem haver doença óssea, noutros as deformidades podem passar despercebidas e noutros serem muito graves. As deformidades dos membros inferiores, com encurvamento e afastamento dos joelhos (joelho varo) ou joelhos juntos e afastamento dos pés (joelho valgo), ocorrem também de forma fisiológica em crianças saudáveis e podem não ser devidamente valorizadas.

As complicações são as sequelas com deformidade dos membros inferiores, alteração da marcha, problemas a nível articular e dos ligamentos com manifestação de dor óssea na vida adulta, fraturas, a baixa estatura que não se recupera, abcessos dentários repetidos com anomalias da dentição e, no jovem adulto, surdez por esclerose dos ossículos do ouvido.

Como é feito o diagnóstico do XLH?

É importante antecipar o diagnóstico através de rastreio familiar quando um dos progenitores tem a doença.

A clínica pode sugerir o diagnóstico. Para o confirmar é necessária uma avaliação analítica de sangue e de urina. Um marcador de raquitismo é a elevação da fosfatase alcalina. A diminuição de fosfato sanguíneo (hipofosfatémia) com cálcio normal e a eliminação urinária aumentada de fosfato indicam a causa.

A radiologia pode confirmar sinais de raquitismo com as deformidades ósseas dos membros inferiores, alargamento e irregularidade das extremidades dos ossos longos.

Pode-se ainda dosear o FGF23 que está elevado.

O estudo genético com identificação da mutação no gene PHEX é importante, porque identifica o raquitismo como sendo ligado ao X (XLH) e nesta situação pode usar-se uma terapêutica específica.

De um modo geral, quais as principais complicações do Raquitismo Hipofosfatémico?

As complicações que decorrem da doença são as deformidades ósseas sobretudo dos membros inferiores, baixa estatura, rigidez articular, dor óssea, fadiga, anomalias da dentição e surdez.

Quais as especialidades médicas que acompanham estes casos?

Idealmente estes casos devem ser acompanhados por equipes multidisciplinares. Estas equipes devem incluir áreas de intervenção como a Nefrologia ou Endocrinologia, a Ortopedia, a Estomatologia, a Otorrinolaringologia e a Radiologia.

Quais os principais cuidados a ter após o diagnóstico? Quais os principais conselhos médicos?

É importante explicar á família um pouco da fisiopatologia da doença. Promover estilo de vida saudável com alimentação equilibrada, evitando o excesso ponderal é outro aspeto fundamental para atenuar a gravidade das deformidades ósseas. Deve-se aconselhar também uma boa higiene oral e promover vigilância regular pela Estomatologia.

Tendo em conta a sua experiência, por que é tão importante continuar a existir investigação e inovação nesta área? O que poderia melhorar?

Apesar de ser uma doença rara, perturba a qualidade de vida e o bem-estar físico e psicológico dos doentes e famílias. A dificuldade de mobilidade, as dores ósseas, a baixa estatura e as deformidades dos membros inferiores estão presentes diariamente na vida destes doentes.

A investigação no sentido de existir uma formulação de mais fácil administração ou com intervalo maior poderá ser um contributo.

Considera que a comunidade médica está suficientemente desperta para esta doença?

Infelizmente não. Continuam a chegar-nos crianças com 3-4 anos já com deformidades significativas, porque falhou o rastreio familiar da doença –

impõe-se excluir e precocemente a doença nas crianças cujos pais são portadores. Quando as crianças pequenas, no final do 1º ano, surgem com deformidades dos membros inferiores, embora podendo ser de causa fisiológica, se aquelas forem significativas e progressivas, uma simples análise ao sangue e urina, acessível em qualquer laboratório de análises clínicas, permite equacionar o diagnóstico e referenciar precocemente.

Embora seja mais difícil que o conhecimento a respeito das doenças raras chegue a cada vez mais pessoas, que mensagens essenciais gostaria de deixar no âmbito deste tema? (Não só para pais e cuidadores, mas também para a sociedade em geral)

  • O raquitismo é uma doença que continua a ocorrer nos nossos dias.
  • O raquitismo XLH embora sendo raro, é a forma de raquitismo hereditário mais frequente.
  • O rastreio familiar é essencial.
  • Numa criança pequena com consultas de vigilância de saúde regulares, as deformidades dos membros inferiores, o atraso na aquisição da marcha são os sinais que se devem valorizar.
  • A vigilância desta doença e complicações exige uma equipe multidisciplinar.
Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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