Entrevista

«No futuro a caracterização molecular do cancro do ovário permitirá identificar mais alvos»

Atualizado: 
23/05/2018 - 17:46
Considerada uma das principais causas de morte por cancro entre as mulheres, o cancro do ovário é, em mais de metade dos casos, diagnosticado já numa fase avançada da doença, apresentando um prognóstico bastante reservado. Em entrevista ao Atlas da Saúde, a oncologista no Centro Hospitalar do Porto, Noémia Afonso afirma que “a investigação de novas formas de tratamento, nomeadamente no âmbito da imunoterapia, poderá vir a trazer novas opções de tratamento neste grupo de doentes”.

O que é o cancro do ovário e como se classifica? Quais os subtipos mais frequentes?

O cancro do ovário tem origem no ovário, que é o órgão reprodutivo feminino responsável pela produção de óvulos e também de hormonas como estrogénio e progesterona. O cancro desenvolve-se especificamente a partir de células em que ocorreram mutações que permitem o seu crescimento de forma descontrolada.

A maioria (85%-90%) dos cancros do ovário tem origem em células epiteliais, da camada exterior do ovário, e designam-se por carcinomas epiteliais. Estes podem ser de diferentes tipos, destacando-se: seroso, mucinoso, endometrioide, de células claras. Outros cancros do ovário, menos frequentes, têm origem em células germinativas - tumores de células germinativas (disgerminomas, tumores embrionários,…)­ - ou em células do estroma (tumores da granulosa, tumores de Sertoli-Leydig). Os pontos seguintes serão abordados especificamente para o cancro do ovário epitelial.

Qual a incidência do cancro do ovário e seu prognóstico?

O cancro do ovário é a 9ª neoplasia mais frequente na população europeia do sexo feminino. Frequentemente surge em estadios avançados – III e IV da FIGO, o que se explica por um lado por se tratar de doença de crescimento silencioso que só em fases avançadas causa sintomas, e também, por não estar previsto qualquer programa de rastreio. A sobrevivência 5 anos após o diagnóstico é cerca de 46% e aos 10 anos cerca de 35%. Assim, associa-se a um prognóstico ainda reservado, sendo a 5ª causa de morte por cancro no sexo feminino.

Quais os fatores de risco associados?

O risco para cancro do ovário aumenta com a idade, sendo raro o diagnóstico antes dos 40 anos. Factores como: endometriose, menarca precoce e/ou menopausa tardia, nuliparidade ou 1ª gravidez após os 30 anos, história de infertilidade, obesidade e uso de terapêutica hormonal de substituição, estão associados a maior predisposição para desenvolvimento de cancro do ovário. A história familiar de cancro, em particular de cancro do ovário e da mama, está associada a aumento do risco. Nos factores de risco hereditários, destaca-se a presença de mutações germinativas BRCA 1 ou BRCA 2, responsáveis por cerca de 10-15% dos cancros do ovário, e o Síndrome de Lynch.

Apesar de se tratar de uma doença frequentemente assintomática em estadios iniciais, a que sinais devemos estar atentos? Quais os principais sintomas?

A ocorrência de queixas como: dor pélvica, hemorragia vaginal anómala, distensão abdominal, náuseas, perda de apetite, emagrecimento involuntário, cansaço, alterações do funcionamento intestinal, queixas urinárias, podem, entre outros possíveis diagnósticos, ser indícios de neoplasia do ovário pelo que se aconselha avaliação e orientação médica.

Como é feito o seu diagnóstico? E qual a importância do diagnóstico precoce?

A suspeita de cancro do ovário justifica a orientação para consulta de especialidade de ginecologia para avaliação por exame ginecológico, em que pode ser identificada massa pélvica ou outra alteração. Entre os exames radiológicos utilizados para diagnóstico, destaca-se a ecografia pélvica transvaginal que permite avaliar a presença de tumefação ovárica suspeita. O doseamento do marcador tumoral CA125, se elevado, aumenta a suspeita de malignidade da neoformação ovárica. Outros exames radiológicos que podem apoiar o diagnóstico são - a RMN pélvica para caracterização da lesão, a TAC torácica e abdominopélvica (permite despistar a metastização à distância e caracterizar a lesão ovárica), a PET (tomografia de emissão de positrões) que permite o despiste de metastização à distância através de uma avaliação metabólica baseada na captação anómala de FDG pelas células do tumor.

A detecção em estadios precoces, em que é possível uma cirurgia citorreductora completa (em que é removido todo o tumor, não sendo identificável doença residual após a intervenção) associa-se a melhor prognóstico.

Os casos diagnosticados em fase inicial - estadio I -apresentam uma sobrevivência aos 5 anos de 95%, que desce em estadios mais avançados: estadio II - 78%, no estadio III - 65% e no estadio IV (com metastização à distância) - 35%.

Como se faz o estadiamento do cancro do ovário?

A avaliação clínica através do exame ginecológico realizado por ginecologista experiente, complementada por exames radiológicos como a TAC toraco-abdominal, a RMN pélvica e a PET, permite estabelecer o estadiamento do cancro do ovário. A identificação de lesões à distância, como metástases pulmonares ou hepáticas, estabelece o estadio IV. Em função da extensão local do tumor, nomeadamente o envolvimento de órgãos vizinhos e do peritoneu, é estabelecido o estadiamento I, II ou III, e definido o tratamento e permite uma estimativa do prognóstico. O estadiamento clínico-radiológico é importante para a decisão de tratamento, especificamente para avaliar as condições para cirurgia de citorredução, que tem por objetivo a remoção completa do tumor.

Qual o padrão atual do tratamento de primeira linha?

Com a exceção do estadio IV, em que são identificadas metástases à distância, a primeira opção de tratamento a considerar é a cirurgia. No cancro do ovário a cirurgia consiste numa abordagem de citorredução máxima, ou seja, na remoção completa de todos os locais de tumor com o objetivo de, no final da intervenção, não ser identificada “doença residual”. De facto, esta ausência de “doença residual” está associada a melhor prognóstico. Nos casos em que não seja possível este tipo de cirurgia quer pela irressecabilidade da doença, pela sua extensão e localização, quer por serem previsíveis significativas complicações inerentes a uma intervenção cirúrgica demasiado extensa, pode ser considerada a realização de quimioterapia como tratamento inicial – designada por quimioterapia neoadjuvante – devendo ser planeada a cirurgia após 3 ciclos deste tratamento.

Nos casos em que é realizada a cirurgia, inicialmente, é estabelecido o estadiamento patológico, identificado o tipo histológico do tumor e o seu grau de diferenciação, através da avaliação da peça cirúrgica por um médico especialista em Anatomia Patológica. De acordo com esta informação, e com a referência do cirurgião acerca da presença/ausência de doença residual após a cirurgia, é estabelecida a indicação para quimioterapia em função do risco de expectável recorrência. A todas as doentes em que é referida “doença residual” após a cirurgia, é proposta quimioterapia complementar. A grande maioria das doentes sem evidência de doença residual é, igualmente, considerada para tratamento com quimioterapia.

Apenas podem ser excluídas para quimioterapia as doentes com tumores “borderline” ou em estadios muito precoces (IA ou IB) em que o tumor está limitado a um ou aos dois ovários, não tendo sido identificado fora destes órgãos, desde que o seu tipo histológico seja de baixo grau (G1). 

A quimioterapia consiste no tratamento com 2 fármacos – carboplatina e paclitaxel – administrados de 3/3 semanas até um total de 6 ciclos de tratamento. Nos casos considerados de alto risco de recorrência, em particular os que apresentam doença residual após a cirurgia, pode ser considerada a associação de bevacizumab (anticorpo monoclonal anti VEGF, com ação anti-angiogénica, ou seja, destrói os vasos que irrigam o tumor), administrado durante a quimioterapia e após a sua conclusão como tratamento de manutenção.

Qual a abordagem terapêutica indicada para as fases mais avançadas?

As doentes em estadios IV ou em que há referência a doença residual após a cirurgia, estão associados à pior sobrevivência. Nestes casos é possível, para além da quimioterapia com carboplatina e paclitaxel, associar bevacizumab durante e após o término da quimioterapia até um máximo de 18 a 22 ciclos.

Os casos de recorrência de cancro do ovário são divididos em função do intervalo livre de tratamento, especificamente o tempo desde o término do último tratamento à base com platino. São considerados platino-refractários quando há recorrência ou progressão durante o tratamento, platino-resistentes quando a recorrência ocorre nos primeiros 6 meses após ter terminado o tratamento à base de platino e sensíveis ao platino se a recorrência ocorre pelo menos 6 meses após o término do tratamento. Os casos considerados platino-sensíveis podem ainda ser divididos em “parcialmente sensíveis” se a recorrência ocorre entre os 6 e os 12 meses e “sensíveis” se ocorre pelo menos 12 meses após terem completado o tratamento.

Nos carcinomas do ovário sensíveis, ou parcialmente sensíveis, está indicado o re-tratamento com esquema à base de platino e pode ser considerada a associação de bevacizumab ao tratamento com carboplatina e gemcitabina, em particular se a doente não foi tratada previamente com este fármaco.

Mais recentemente, e em particular para doentes com mutação BRCA germinativa ou somática, pode ser considerado o tratamento de manutenção com inibidor da PARP após resposta à quimioterapia à base de platino. Os inibidores da PARP – olaparib, niraparib e talozaparib – são fármacos de administração oral, que, apesar de terem apresentado maior eficácia em doentes com mutação BRCA, mostraram também ser eficazes na ausência desta mutação. Em particular, o niraparib foi aprovado para todas as doentes com cancro do ovário platino-sensível que apresentem resposta após re-tratamento à base do platino independentemente da mutação BRCA e o mesmo é esperado para o olaparib após uma aprovação inicial apenas para doentes com mutação.

Nas doentes resistentes ou refractárias ao platino está indicada a alteração do tratamento para monoterapia com doxorrubicina lipossomica peguilhada, paclitaxel semanal, topotecano. Nestes casos pode ser associado bevacizumab, o que demonstrou ser mais eficaz que a quimioterapia isolada.

Qual a relevância da imunoterapia no tratamento do cancro do ovário?

As doentes com cancro do ovário platino-resistente ou refractário apresentam prognóstico muito reservado. A investigação de novas formas de tratamento, nomeadamente no âmbito da imunoterapia, poderá vir a trazer novas opções de tratamento neste grupo de doentes, assim como opções mais eficazes para doentes platino-sensíveis. Cerca de 2% dos carcinomas do ovário apresenta instabilidade de microssatélites e para este pequeno subgrupo o tratamento com imunoterapia, com pembrolizumab, é já considerado.

Vários ensaios clínicos estão em curso, nomeadamente para avaliação da combinação de imunoterapia com quimioterapia, inibidor da PARP ou inibidor da VEGF.

Que outras terapias alvo estão em estudo para o tratamento desta doença?

São várias as terapêuticas alvo que estão a ser avaliadas no cancro do ovário, a maioria relacionadas com mutações associadas a deficiência da recombinação homóloga, como a mutação BRCA.

Que necessidade existe por responder em Portugal no tratamento do cancro ovário recorrente?

Em Portugal ainda não é realizada por rotina a pesquisa de mutação BRCA no carcinoma epitelial do ovário, que, para além de estar associada a maior sensibilidade ao tratamento com platino, é um potencial alvo para tratamento com inibidor da PARP. A pesquisa de mutação germinativa através da análise do sangue e, em caso desta ser negativa, a pesquisa de mutação somática no tumor, deve ser considerada para definir a estratégia terapêutica em particular no carcinoma do ovário platino-sensível recorrente. Para além da mutação BRCA outras alterações a nível do tumor podem associar-se a um estado BRCAness e podem também ser estudadas para eventual definição do tratamento.

A mutação germinativa levanta questões associadas a aumento do risco de cancro do ovário, e também de ouros tumores, pelo que a articulação com consulta de risco familiar de cancro deve ser reforçada em Portugal.

O que se pode esperar do futuro?

No futuro a caracterização molecular do cancro do ovário permitirá identificar mais alvos, contribuir para o desenvolvimento de novas terapêuticas e definir o tratamento de cancro do ovário de forma individualizada. O recurso a plataformas para caracterização do perfil genómico do tumor, através do tecido tumoral ou de biopsias líquidas, será a forma de identificar mutações específicas associadas a maior eficácia de determinados tratamentos, para inclusão em ensaio clínico ou para tratamento na prática clínica corrente.

Em matéria de prevenção, o que pode ser feito? Faz sentido a existência de um rastreio para o diagnóstico precoce?

A prevenção do cancro do ovário passa por reconhecer os fatores de risco evitáveis e reduzir a exposição. Apesar de não estar preconizado programa de rastreio populacional, a identificação de doentes de risco aumentado de forma a estabelecer programas de vigilância permite aumentar a probabilidade de diagnóstico em fase precoce que está associado a melhor sobrevivência. A forma de vigilância consiste no exame ginecológico, ecografia pélvica transvaginal e doseamento do marcador tumoral CA125 (que poderá contribuir para o diagnóstico diferencial entre lesão benigna e maligna).

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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