Opinião

Dormir bem para aprender mais e viver melhor

Atualizado: 
05/11/2020 - 11:09
Numa época em que as crianças e os adolescentes são alvo de inúmeras solicitações e se encontram mergulhados no mundo digital, o que lhes “tira o sono”, é necessário saber um pouco mais sobre esta importante função que é o sono e o seu papel na saúde, no bem estar, no crescimento e na aprendizagem. Para todas as crianças vai o meu desejo sincero de que sejam capazes de viver bem, crescer bem e aprender bem. Assim consigam dormir mais e melhor…

Dormir bem faz parte de uma vida saudável, não sendo possível ficar mais do que uns poucos dias sem dormir, sob pena de graves danos para a saúde física e mental e, em última análise, sob pena de morte por “esgotamento”. Por muito que queiramos, não podemos impedir a sensação de precisar de dormir, tal como, mais cedo ou mais tarde sentimos fome ou sede quando não comemos ou não bebemos.

Para termos saúde não nos basta respirar, comer e beber. Também precisamos de afecto, segurança, cultura, felicidade e exercício físico, mas a actividade a que dedicamos mais tempo ao longo de toda a nossa vida (ocupa em média 8 horas por dia, o que quer dizer um terço da nossa vida) é dormir. No entanto, e apesar de muitos estudos já efectuados sobre esta questão, ainda não se sabe ao certo porque temos necessidade de dormir, nem o que verdadeiramente provoca o sono e nos faz bocejar!

Tanto quanto se sabe, dormir é uma necessidade fisiológica de todos os animais, pelo menos dos mais “evoluídos”, embora os padrões do sono não sejam os mesmos em cada espécie: enquanto as baleias e os golfinhos dormem com “metade do cérebro” e com um olho aberto e o outro fechado, os peixes “dormem de olhos abertos”, porque não têm pálpebras, reduzindo a sua actividade, se possível em esconderijos ou encostados aos fundos e os ursos dormem como os outros mamíferos nos meses mais quentes e “hibernam” por longos períodos de tempo nos meses mais frios do ano.

No entanto, se dormir é necessário, também pode ser perigoso: enquanto se dorme, reduz-se a regulação térmica do organismo (o que facilita a hipotermia ou a hipertermia), diminui o controlo sobre a respiração (a língua cai para trás, os músculos da faringe relaxam-se, diminui o reflexo da tosse, acumula-se expectoração) e baixa o nível de alerta (menor capacidade de escapar dos predadores e de lidar com situações de risco).

A duração do sono varia de espécie para espécie e é influenciada pelos riscos de se correm quando se dorme. Cada espécie animal, consoante a sua vulnerabilidade, o meio ambiente em que vive, a disponibilidade de abrigo, o nível de protecção fornecido pelos progenitores e pelos restantes elementos do grupo (no caso de espécies gregárias), tem o seu esquema próprio, existindo animais que dormem até 18 a 20 horas por dia, como a cobra píton e o morcego e outros que não chegam a dormir 2 horas, como a girafa, passando pelo gato e pelo rato, com cerca de 12 horas diárias de sono e pelo chimpanzé, que quase chega a 10 horas.

Afinal, o que é dormir e o que é o sono?

Existem muitas respostas diferentes para esta questão, podendo dizer-se, de uma forma simplista, que “dormir é passar do estado de vigília (acordado) para o estado de sono”, pressupondo-se que estes dois estados são conscientes e que quem está a dormir não está inconsciente, como sucede durante as anestesias, em estado de coma ou após um traumatismo craniano grave.

O sono e a vigília fazem parte dos estados da consciência e alternam-se, periódica e regularmente, segundo ritmos biológicos adaptados ao ritmo solar, designados por ritmos circadianos, que também regulam a temperatura corporal, a produção de hormonas, a tensão arterial, o nível de alerta, a força muscular, a coordenação motora ou a capacidade de aprendizagem.

Em 2017, o Prémio Nobel em Fisiologia ou Medicina foi atribuído a três investigadores norte-americanos pelos seus estudos sobre o controle do ritmo circadiano: isolamento dos genes que codificam as proteínas PER, TIM e DBT (cujos níveis oscilam segundo um ciclo de 24 horas) e definição dos mecanismos da sua inter-regulação e da sua sincronização pela luz solar.

O sono, propriamente dito, pode ser definido como um período de repouso para o corpo e a mente, durante o qual a vontade e a consciência estão em inatividade parcial ou completa, havendo uma suspensão, temporária e variável, das actividades perceptivas, sensoriais e motoras.

O sono deve ter início sensivelmente à mesma hora, em cada período de 24 horas, e dele deve resultar uma sensação de restabelecimento da energia física, psíquica e intelectual. O número ideal de horas de sono é aquele que faz com que a pessoa acorde naturalmente, com a sensação de ter dormido o suficiente e com capacidade para cumprir as suas tarefas.

É possível “ficar a dever“ algumas horas de sono, por alguns dias, e depois compensá-las sem grandes prejuízos para a saúde, mas um grande défice de sono provoca alterações metabólicas e endócrinas que geram doenças, reduzem o desempenho cognitivo e aumentam o risco de acidentes. Neste caso, podemos mesmo adormecer por exaustão (durante uma noitada de estudo ou ao conduzir o automóvel por períodos longos, por vezes sob a forma de micro-sonos mas às vezes sob a forma de um “apagão”), mas esse processo não é fisiológico e não gera um sono natural.

As crianças pequenas têm tendência para o avanço de fase do sono (acordam cedo) e os adolescentes têm tendência para o atraso de fase do sono (adormecem tarde), o que complica a vida familiar, social e escolar e interfere com o rendimento intelectual e físico

Tal como em muitas outras espécies, também na espécie humana o número diário de horas de sono diminui com a idade, sendo os seguintes os seus valores médios:

  • Recém-nascido - 18 a 20 h (em blocos de 3 a 4 horas ao longo das 24 horas)
  • 1 mês - 16 a 18 h (em blocos de 3 a 4 horas ao longo das 24 horas)
  • 4 meses - 13 a 18 h (inclui duas sestas de 2 a 3 horas)      
  • 6 - 12 meses - 14 a 15 h (inclui duas sestas de 1 a 2 horas)
  • 12 – 24 meses - 12 a 14 h (inclui uma ou duas sestas de 1 a 2 horas)                               
  • 3 - 6 anos - 11 a 13 h (pode ou não incluir uma sesta de 1 a 2 horas)      
  • 6 – 12 anos - 10 a 11 h                     
  • Adolescência - 9 h                            
  • Idade adulta - 7 a 8 h                        
  • Terceira idade - 5 a 7 h

Durante os seis primeiros meses de vida, o bebé tem o sistema nervoso pouco maduro e necessita de dormir muito tempo e comer muitas vezes, pelo que os períodos de sono se intercalam com as mamadas e com pequenos períodos de vigília, de uma forma regular ao longo das 24 horas. Só a partir dos seis meses de idade é que o sono começa a ser influenciado pelo ciclo noite/dia e pelos hábitos familiares, passando a criança a dormir por períodos noturnos longos, sem necessidade de se alimentar.

É esta a melhor altura para criar na criança bons hábitos de sono, associando a hora de dormir a uma rotina securizadora (banho, chupeta, fraldinha, peluche…) e ensinando-a a distinguir o dia da noite.

A mecânica do sono

Para obter uma boa relação entre os benefícios e os perigos do sono, cada espécie desenvolveu uma “mecânica” própria do sono, com alternância de períodos de sono profundo, de sono leve e mesmo de pequenos despertares, o que permite que o sono cumpra as suas importantes funções biológicas sem comprometer demasiado a segurança.

Na espécie humana o sono decorre por ciclos, fases e estágios bem definidos, com diferentes níveis de profundidade.

Nos adultos, um período normal de 8 horas de sono é formado por 4 ou 5 ciclos de 90 a 120 minutos, cada um deles estruturado em duas fases - não REM ou lento e REM ou paradoxal - e cinco estágios (REM é o acrónimo de Rapid Eye Movement, que significa Movimentos Oculares Rápidos).

O sono não REM inclui o estágio 1 (adormecimento e sono muito leve, que dura entre 5 e 15 minutos e em que existe uma sensação de queda, há movimentos lentos dos olhos e movimentos corporais involuntários bruscos), o estágio 2 (sono leve, que dura entre 5 e 15 minutos e em que desce a temperatura corporal, baixa a frequência cardíaca e há movimentos lentos dos olhos) e os estágios 3 e 4 (sono profundo e muito profundo, que dura entre 10 e 30 minutos e em que há “recuperação” do corpo e há movimentos lentos dos olhos).

O sono REM inclui o estágio 5 (sono paradoxal, que dura cerca de 10 minutos no primeiro ciclo e mais tempo nos ciclos seguintes e em que ocorrem os sonhos, há actividade cerebral semelhante à da vigília, movimentos rápidos dos olhos e uma paragem quase total dos movimentos corporais). No final de cada fase REM inicia-se outro ciclo de sono não REM e por aí fora até ao despertar.

O tempo de sono não REM vai diminuindo ao longo da noite e o tempo de sono REM vai aumentando. Podem ocorrer vários episódios de micro-despertar, que não afectam a qualidade do sono. Em geral o sono não REM ocupa 75% do tempo de sono e o sono REM 25%.

O estado de sono é caracterizado por um padrão de ondas cerebrais típico, essencialmente diferente do padrão do estado de vigília e dos demais estados de consciência e que tem características próprias em cada um dos estágios do sono. Este facto permite, através de estudos electroencefalográficos (EEG), estudar pormenorizadamente o padrão de sono de cada pessoa e ajuda no estudo das insónias e da apneia de sono, entre outras perturbações do sono-vigília.


Falta de concentração e dificuldades na aprendizagem estão associadas a uma má qualidade do sono

As funções do sono

Dormimos para que:

  1. o nosso corpo recupere do cansaço, regenere os níveis energéticos, reorganize o sistema hormonal e reabilite o sistema imunitário;
  2. o nosso cérebro se “arrume”, isto é, selecione a informação a guardar, consolide a memória, forme a memória de longo prazo, reorganize as conexões neuronais e elimine os resíduos metabólicos tóxicos (durante o sono, as células cerebrais “encolhem” e aumentam o espaço entre si, o que facilita a eliminação de substâncias nocivas acumuladas durante a vigília).

Na realidade, enquanto dormimos:

  • desce a tensão arterial (aumenta no final da noite);
  • diminui a secreção de cortisol (aumenta no final da noite);
  • aumenta a secreção de hormona de crescimento (promoção da síntese proteica, do crescimento e da reparação tecidular);
  • diminui a produção de leptina e aumenta a de grelina (diminui a sensação de fome);
  • melhora a memória do sistema imunitário;
  • diminui a temperatura corporal;
  • diminui a actividade do aparelho digestivo (digestão, motilidade intestinal);
  • consolida-se a(s) memória(s);
  • faz-se o processamento afectivo, a recuperação emocional e a elaboração inconsciente da personalidade (associada aos sonhos, na fase REM).

Quando não se dorme o suficiente ou se dorme mal surgem problemas de vária ordem:

  • irritabilidade (birras, indisciplina, agressividade…);
  • comportamento hiperactivo;- ansiedade, depressão;
  • sonolência diurna;
  • falta de concentração e dificuldade de aprendizagem;
  • menor ritmo de crescimento;
  • debilidade do sistema imunitário;
  • maior risco de obesidade ou de anorexia nervosa.

O sono e a aprendizagem

A consolidação da(s) memória(a) passa pela selecção, organização e transferência de dados da memória de curto prazo, (guardados no hipocampo pela acetilcolina), para o neocortex, onde se transformam em memória de longo prazo.

O processo de esquecimento durante o sono é tão importante quanto o do armazenamento das informações. Sem esquecimento, o cérebro entraria em colapso, por absoluta incapacidade de armazenamento e de gestão de um volume exagerado de dados, a maior parte dos quais é absolutamente dispensável e não contribui em nada para o nosso desempenho e para a nossa felicidade.

A emoção é a chave de entrada das informações no neocórtex.
Os factos ocorridos durante estados emocionais fortes (agradáveis ou desagradáveis) são mais facilmente selecionados para se transformarem em memória de longo prazo. Se o estado emocional for excessivamente intenso, o efeito pode ser o oposto, e o facto é apagado da memória. Outro factor facilitador da formação da memória de longo prazo é a necessidade de preservar as informações obtidas durante o dia, como sucede com a matéria de estudo, com as obrigações laborais e com o agendamento de compromissos importantes, mas estes aspectos pressupõem a existência de um substrato afectivo ligado ao imperativo.

Alguns estudos têm mostrado que o processo de formação dos diversos tipos de memória não é simultâneo:

  • nos estágios 1 e 2 do sono não REM (sono mais leve) guardam-se as informações ligadas à aprendizagem dos movimentos (andar, falar, comer, escrever, tocar um instrumento musical, apertar parafusos, andar de bicicleta ou de patins, jogar ténis ou golf), que constituem a memória mecânica;
  • nos estágios 3 e 4 do sono não REM (sono mais profundo) guardam-se as informações ligadas ao conhecimento do nosso meio ambiente (localização das divisões da casa, percurso de casa para a escola, para o trabalho ou para a praia, esquema de um circuito de manutenção, arrumação da dispensa ou da biblioteca, organização das máquinas do ginásio), que constituem a memória espacial, sem a qual nos perderíamos e estaríamos sempre desorientados;
  • no sono REM guardam-se as informações ligadas ao conhecimento mais intelectual (científico, literário, cultural, filosófico, musical, social), aprendido nas escolas, locais de trabalho, espectáculos, conferências ou meios de comunicação social, que constituem a memória intelectual.

É muito importante compreender a organização temporal e a hierarquia destes três tipos de memória, porque é evidente que seria muito difícil explorar o mundo sem nos perdermos (memória espacial) antes de ter aprendido a andar e a executar uma enorme série de tarefas (memória mecânica), do mesmo modo que não seria fácil aprender uma língua ou matemática, conhecer os clássicos da literatura, declamar uma poesia ou saber de cor as letras das nossas canções favoritas sem ter assimilado devidamente as competências motoras e de orientação. Isto é: primeiro o corpo, depois o espaço e finalmente o intelecto.

Não se sabe se foi uma necessidade hierárquica que nos fez deixar para as fases finais do sono o processo de memorização intelectual ou se isto aconteceu por acaso. O certo é que, se queremos memorizar devidamente aquilo que aprendemos ao longo do dia, precisamos de tempo adequado de sono não REM (para consolidar as memórias mecânica e espacial) e de sono REM (para consolidar a memória intelectual). E isto só se consegue dormindo bem e por tempo suficiente. Quem dorme pouco e mal aprende pouco e mal…

Uma outra questão prende-se com o horário de adormecer e de acordar. O rendimento do dia seguinte não é o mesmo se nos deitarmos mais cedo ou mais tarde: se dormirmos 8 horas, das 22h às 6h, temos durante o tempo de vigília de 16 horas 3 “janelas favoráveis à aprendizagem” que perfazem 11 horas, mas se dormirmos apenas 5 horas, das 2h às 7h, ficamos 19 horas acordados, temos as mesmas 3 “janelas favoráveis à aprendizagem” mas estas apenas perfazem 9 horas.

Por outro lado, e salvo algumas excepções, fazer uma “noitada de estudo” ou “directa” na véspera de uma prova não é bom sistema: quando não se dorme bem, não se memoriza bem o que se estudou e, na hora da prova, o aluno vai estar sonolento e desatento, raciocina mal, comete mais erros e demora mais a responder.

As sestas

Dormir uma ou duas sestas de uma a três horas faz parte do padrão normal de sono das crianças pequenas (dos 4 a 6 meses até aos 3 a 5 anos), servindo estas sestas longas para consolidar a memória e a aprendizagem e para melhorar o comportamento e o rendimento escolar.

As crianças que se deitam tarde dependem muito das sestas para atingirem a sua quota normal de sono. Nesses casos, a sesta deverá ser permitida ou até encorajada, independentemente da idade.

As sestas curtas dos adultos (até 20 a 25 minutos) servem para relaxar, melhorar a digestão, baixar a pressão arterial, melhorar o rendimento intelectual e laboral e reduzir a sinistralidade.

As sestas longas dos adultos reduzem o tempo de sono noturno e fragmentam-no, retirando um ou dois ciclos de sono por noite, o que reduz muito o tempo útil de sono REM (este problema acentua-se muito na terceira idade, quando o sono já não é naturalmente muito longo e reparador).

Dormir bem (ou não…)

Para dormir bem é necessário:

  • ter um bom estado de saúde geral;
  • ter horas certas para dormir e acordar (mesmo ao fim de semana e nas férias);
  • criar rotinas relaxantes antes de dormir (ouvir música calma, beber um chá calmante ou leite morno, reduzir a intensidade da luz, ouvir uma história, fazer as orações, etc.);
  • criar um ambiente favorável ao sono: quarto escuro, silencioso e pouco aquecido, cama confortável, roupa leve e respirante ou mesmo dormir sem roupa;
  • comer pouco ao jantar;
  • não ingerir líquidos em grande quantidade antes de dormir;
  • fazer exercício físico regular (de preferência no início do dia);
  • estar exposto à luz solar durante o dia…

O que nos tira o sono (os principais inimigos do sono):

  • consumo de álcool, café, chá preto, chocolate, substâncias com histamina, tabaco, bebidas e drogas estimulantes… (+ no final do dia);
  • toma de medicamentos (diuréticos, hormonas esteroides e tiroideias, anti-epilépticos, alguns antidepressivos…);
  • não ter horas certas para dormir e para despertar/”noitadas”;
  • trabalho por turnos/viagens longas inter-fusos horários (jet lag)
  • dormir sestas > 30 minutos (válido para adultos)
  • ruído, luz intensa, muito calor ou frio;
  • comer muito antes de deitar;
  • preocupações, ansiedade, stress;
  • pesadelos (“sonhos maus”);
  • actividades excitantes: filmes, jogos, redes sociais… (+ no final do dia);
  • fazer exercício físico intenso (+ no final do dia)…
Autor: 
Dr. Viriato Horta - Medicina Geral e Familiar
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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