100 mil celíacos em Portugal

85% dos doentes celíacos não sabe que tem a doença

Atualizado: 
28/03/2017 - 16:11
O que era antes considerada uma doença pediátrica é agora percebida como uma doença que atinge todas as faixas etárias. Em Portugal, a Doença Celíaca afeta entre 70 a 100 mil pessoas, no entanto, apenas uma pequena parte conhece o seu diagnóstico. Sem cura, tem como único tratamento o cumprimento rigoroso de uma dieta isenta de glúten para o resto da vida. Celíaca há quase 10 anos, Vanessa Domingos recorda que os seus sintomas foram “atípicos” e que o seu caso até “não foi dos mais difíceis de diagnosticar”.

A doença celíaca é uma doença auto-imune que ocorre em indivíduos com predisposição genética causada pela permanente sensibilidade ao glúten. Caracteriza-se pelo desenvolvimento de uma reacção imunológica do organismo contra o próprio intestino delgado, levando ao aparecimento de lesões na mucosa.

“O glúten é o fator primordial na indução da doença celíaca (DC) e é composto por prolaminas e glutaminas – principais constituintes do trigo, centeio e cevada. Esse glutén desencadeia, no intestino delgado, uma resposta inflamatória mediada pelo sistema imunitário, originando a progressiva destruição da mucosa, que se traduz na atrofia das vilosidades intestinais”, começa por explicar Rita Jorge, nutricionista da Associação Portuguesa de Celíacos, adiantando que, como consequência, este orgão perde a capacidade para absorver os nutrientes.

Apresentando uma grande variedade de sintomas e sinais, a doença celíaca pode afetar qualquer pessoa, em qualquer idade, “desde que o glúten já tenha sido introduzido na alimentação”, e atingir vários sistemas de órgãos.

“As manifestações da DC são habitualmente divididas em dois grupos: os doentes com sintomas clássicos (frequentes nas crianças) que apresentam casos de diarreia, flatulência, distensão abdominal, cólicas, emagrecimento, desnutrição ou atraso no crescimento; e os doentes com sintomas atípicos”, explica a especialista.

Neste último grupo, os doentes, geralmente adultos, apresentam sintomas extra-intestinais. Anemia, osteoporose, dermatite herpetiforme, estomatite aftosa recorrente, alterações hepáticas ou neurológicas ou aborto espontâneo são alguns dos sintomas referenciados.

Sem cura conhecida, o seu diagnóstico nem sempre é fácil. “Em Portugal, aponta-se que existam entre 10 a 15 mil pessoas diagnosticadas com doença celíaca. Estima-se, no entanto, que o número de celíacos efetivo, ao nível nacional, se situe entre os 70 e os 100 mil”, refere Rita Jorge admitindo que cerca de 85% dos doentes tem doença mas não sabe.

“A DC apresenta, como já referi, uma grande variedade de sintomas e sinais, podendo atingir o organismo afetando vários sistemas de órgãos ou, por vezes, manifestando-se com sintomas muito ligeiros. E é esse o maior entrave ao diagnóstico”, justifica.

De acordo com a nutricionista, o diagnóstico deve ser apoiado na história clínica (sinais e sintomas) do doente, em análises sanguíneas específicas (testes serologicos), endoscopia digestiva alta com biópsia do duodeno e teste genético. “Este último surje como teste de exclusão de doença”, explica Rita Jorge.

As neoplasias do tubo digestivo são a consequência mais grave da doença não tratada. “Enquanto um celíaco tratado – que cumpre uma dieta isenta de glúten – apresenta uma esperança média de vida igual à de um cidadão comum, aquele que não sabe que é portador da DC, além de muitas vezes sofrer de sintomatologia variada que afeta negativamente a sua qualidade de vida, reduz drasticamente esse indicador, estando muito mais exposto, por exemplo, a desenvolver algumas formas de cancro”, adianta a nutricionista da Associação Portuguesa de Celíacos advertindo, deste modo, para a importância do diagnóstico precoce.

“Quanto mais precoce for o diagnóstico, melhor é o prognóstico para o resto da vida e, por isso, é fundamental investirmos na divulgação da doença celíaca e dos sintomas que a ela estão associados e que, frequentemente, são subtis e transpõem largamente o âmbito gastrointestinal”, afirma.

Dieta Isenta de Glúten é o único tratamento conhecido

Atualmente, o único tratamento disponível consiste numa dieta isenta de glúten, praticada para o resto da vida. “Apenas a eliminação desta proteína da alimentação permite que o intestino regenere por completo da lesão e o organismo recupere”, afirma Rita jorge.

Trigo, centeio e cevada devem ser excluídos da dieta alimentar e substituídos por outros alimentos isentos de glutén. “Estamos a falar de todos os alimentos que na sua composição tenham um dos quatro cereais ou seus derivados, como o pão, produtos de confeitaria e pastelaria, bolachas e biscoitos, massas alimentícias, iogurtes com cereais, farinheira e alheira, sopas de pacote, cerveja, panados, salgados, delícias do mar e variantes, pizza, lasanha, canelones, raviolis, e ingredientes como o amido dos cereais proibidos, amido, amido modificado, proteína vegetal, fibras alimentares, aditivos do grupo dos E-14xx, malte e xarope de malte, extrato de malte, e cereais”,  específica a nutricionista.

Por outro lado, existem alimentos que podem conter glúten, “disfarçadamente, na sua composição através do processamento industrial”, pelo que é fundamental ler a sempre a informação presente nos rótulos.

Cuidados a ter

De acordo com Rita Jorge, existem alguns cuidados a ter, não só na escolha dos alimentos mas também na sua conservação e confeção.

“Os produtos sem glutén devem ser guardados em local específico e bem identificado, preferencialmente nas prateleiras superiores”, começa por especificar.

No caso das famílias que optam por preparar refeições com e sem glúten, os alimentos isentos de glutén devem ser preparados em primeiro lugar. “Nunca partilhe utensílios que estiveram em contato com alimentos com glúten”, acrescenta.

No caso das crianças celíacas, estas devem ser ensinadas, desde muito cedo a fazerem as escolhas adequadas e quais os cuidados a ter para evitar a contaminação cruzada.

“Para o celíaco a migalha conta. A ingestão de qualquer quantidade de glúten por mínima que seja é prejudicial para o celíaco (mesmo que não sejam visíveis e sentidos os sintomas de imediato), favorecendo o aparecimento de lesões na mucosa intestinal”, justifica a nutricionista.

Fora de casa, e caso não esteja num estabelecimento de restauração certificado – apto a fornecer refeições sem glúten em total segurança – deve optar pelo consumo de alimentos cozidos, grelhados ou saladas sem adição de molhos.

“Deve ainda questionar o chef de cozinha quando tem alguma dúvida relativa a algum prato ou alergénio”, aconselha.

“O principal receio era comer fora de casa”

Vanessa Domingos tinha 18 anos quando, há cerca de 10, lhe foi diagnosticada a doença celíaca. “Os meus sintomas foram atípicos. Perdi peso e sentia-me cansada, com falta de forças. Também ficava sempre muito cheia quando acabava de comer, o que me levava a fazer intervalos longos entre refeições ou a comer menos, o que por sua vez agravou a perda de peso”, recorda.

Ao fim de alguns meses, consultou o médico que sugeriu a realização de uma endoscopia com biopsia para diagnosticar o problema. “Tive bastante sorte com a médica gastroenterologista que me fez a endoscopia pois, devido ao achatamento das vilosidades intestinais, suspeitou logo que eu fosse celíaca”, afirma a jovem.

Sem saber o que significava a doença, aquando o diagnóstico, Vanessa sentiu-se sobretudo frustrada perante a necessidade de ter de planear todas as refeições antes de sair de casa. “Senti que limitava a minha espontaneidade. No entanto, foi um alívio ter um nome para dar às coisas. Saber o que tinha foi a primeira ferramenta para melhorar”, afiança.

O seu principal receio prendia-se com as refeições feitas fora de casa. “Pouco depois do diagnóstico entrei para a faculdade e tive de me adaptar a levar comigo quase todas as refeições do dia”, recorda Vanessa que passou de ter de explicar às pessoas mais próximas em que consiste a doença celíaca. “É importante que as pessoas compreendam o que podemos e não comer”, afirma.

Depois de adaptar a sua alimentação, Vanessa demorou cerca de um ano a recuperar o seu peso habitual. “Penso que por os meus sintomas serem atípicos, os resultados também demoraram um pouco mais”, explica.

Apesar da sua principal dificuldade continuar a ser comer fora de casa, Vanessa conseguiu, com a ajuda da Associação Portuguesa de Celíacos (APC), dissipar as suas principais dúvidas e por isso aconselha outros doentes a pedir ajuda. “Não existe outra entidade no país que tenha tantos conhecimentos sobre a doença celíaca e que possa ajudar da mesma forma um recém-diagnosticado”, afiança.

“Fazer parte de uma associação de pares é comprovadamente um dos fatores primordiais na promoção da qualidade de vida e saúde mental de quem é confrontado com uma doença de longa duração e que obriga ao cumprimento continuado e rigoroso de uma terapêutica”, esclarece Rita Jorge.

Para além de disponibilizar informação de qualidade sobre a doença, a Associação Portuguesa da Celíacos fornece “dicas práticas sobre como os portadores de DC e seus familiares poderão atuar, em casa e no exterior, no sentido de garantir o cumprimento da dieta”.

Providencia ainda encontros, programas de formação ou workshops, entre outras iniciativas, com o objectivo de ensinar os doentes a conviver com a doença e partilhar experiências.

“Além disso, a APC também desenvolve parcerias com diversas empresas, quer no ramo alimentar, quer de outros serviços, no sentido de facilitar cada vez mais a vida dos portatores de doença celíaca”, acrescenta a nutricionista admitindo que foi pelo trabalho de sensibilização desta associação também junto do poder legislativo que “se conseguiu que os portadores de DC pudessem beneficiar de isenções fiscais na aquisição de produtos específicos isentos de glúten”.

“O celíaco pode deduzir no IRS as despesas com produtos isentos de glúten, desde que o IVA seja taxado a 6% e que tenha uma declaração médica comprovativa da doença celíaca”, refere Vanessa Domingos aplaudindo o esforço da associação.

“Nos últimos 10 anos, nota-se uma evolução enorme na sensibilização para a doença, na oferta de produtos, no número de estabelecimentos certificados para a confeção de produtos sem glúten, no interesse dos profissionais de saúde, mesmo na cobertura mediática, e nada disso seria possível sem o trabalho da APC”, conclui. 

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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