Projeto prevê resultados estéticos das cirurgias do cancro da mama

Projeto Cinderella recebe cinco milhões de euros da Comissão Europeia

Um projeto destinado a otimizar, de forma personalizada, a previsão dos resultados das cirurgias reconstrutivas em doentes com cancro da mama – de forma a melhorar a satisfação destas mulheres em relação à sua imagem corporal após a cirurgia –, vai receber cinco milhões de euros do Programa Horizonte Saúde 2021 da Comissão Europeia. O financiamento deste esforço multicêntrico e internacional, coordenado pela Unidade da Mama da Fundação Champalimaud, em Lisboa, foi, esta semana (dia 23 de maio), formalizado pela assinatura de um acordo entre a Fundação Champalimaud e a Comissão Europeia. Os fundos serão disponibilizados ao longo dos quatro anos da duração do projeto, que oficialmente terá início no próximo dia 1 de junho.

Uma mulher a quem retiraram a totalidade de uma mama, deixando-a para sempre com uma enorme cicatriz a atravessar-lhe metade do peito, poderá considerar-se muito satisfeita com o resultado… se esta era a sua única opção, pois obviamente o que mais conta para ela é ver-se livre da doença. Já uma outra, submetida a uma cirurgia do cancro da mama mais avançada – ou seja, igualmente bem-sucedida em termos clínicos, mas também mais conservadora e reconstrutiva –, poderá ficar insatisfeita com o seu aspeto apesar de os resultados estéticos da sua cirurgia serem impecáveis. De cada vez que ela olha para o seu reflexo no espelho, acha-se horrível, adicionando mais sofrimento ao sofrimento devido à própria doença. Pode parecer paradoxal, mas casos extremos como estes existem mesmo.

Agora, um projeto, batizado Cinderella, vai receber cinco milhões de euros da Comissão Europeia ao longo dos próximos quatro anos para, precisamente, assegurar que a avaliação estética dos resultados das cirurgias mamárias deixe de poder ser tão subjetiva e irrealista como nos dois exemplos referidos. As condições estão dadas para isso se tornar uma realidade, acredita Maria João Cardoso, coordenadora deste projeto da Fundação Champalimaud, melhorando radicalmente a satisfação – e a relação com o seu corpo – das mulheres submetidas a cirurgias mamárias.

Há umas décadas, pecava-se por precaução removendo a totalidade da mama afetada, a chamada mastectomia, desde então os avanços em oncologia mamária alteraram radicalmente o tratamento cirúrgico do cancro da mama. “Há 20 anos”, salienta Maria João Cardoso, que é cirurgiã coordenadora da Unidade da Mama da Fundação Champalimaud, em Lisboa, “estabeleceu-se que remover a mama toda ou fazer uma ressecção local do tumor, seguida de radioterapia – a chamada cirurgia conservadora – conduziam ao mesmo resultado em termos de sobrevivência.”

A partir daí, deixou de ser necessário, numa grande maioria dos casos, remover a mama toda – e tornou-se possível introduzir, mais recentemente, elementos de cirurgia plástica para criar uma “cirurgia oncoplástica”. Nomeadamente, começou-se a introduzir tecido da própria doente para preencher os defeitos causados pela remoção do tumor em caso de mamas mais pequenas, em que o defeito seria muito visível, ou a fazer a redução da mama saudável para compensar a assimetria de volume em mamas de maior volume.

Para Maria João Cardoso, os aspetos estéticos da cirurgia oncológica da mama já não podiam ser ignorados. A saúde psicológica e a qualidade de vida das doentes estavam em causa e importava tê-los em conta. Estava na altura de falar de beleza às doentes.

De facto, hoje não há razão para que quem sobrevive ao cancro da mama não possa também, com conhecimento de causa, optar pela cirurgia que melhor irá preservar – e até melhorar – a sua imagem corporal.

Mas acontece que cada uma dessas abordagens pode dar resultados de maior ou menor qualidade estética conforme a doente tratada. Portanto, ao mesmo tempo, a possibilidade de escolher entre uma panóplia de cirurgias tornou essa escolha mais difícil.

Porquê? “Porque ainda não existem quaisquer critérios objetivos para prever os resultados estéticos de cada tipo de cirurgia em cada doente”, diz Maria João Cardoso. “A escolha acaba por ficar nas mãos do cirurgião e ser imposta à doente que, face ao número de opções cirúrgicas possíveis, fica indecisa e muitas vezes baralhada sobre qual o tipo de cirurgia que irá dar os melhores resultados estéticos no seu caso.”

Primeiras incursões algorítmicas

Há anos que Maria João Cardoso se esforça por objetivar essas opiniões estéticas subjetivas (não só as das doentes, mas também, muitas vezes, as dos médicos), que podem ser tão díspares como as dos exemplos iniciais. A sua ideia é automatizar totalmente o processo de previsão dos resultados estéticos das cirurgias do cancro da mama e mostrar às doentes os prováveis resultados antes da cirurgia – de forma virtual –, facilitando assim a sua escolha. Maria João Cardoso acredita firmemente que isso é possível – e que não só permitirá que os resultados sejam de facto os melhores possíveis, mas também que as previsões sejam o mais realistas possível, para evitar gerar expectativas demasiado baixas ou elevadas nas doentes.

A simples evocação da palavra “virtual” diz-nos que a solução do problema passa (como era de esperar) por uma abordagem digital, computadorizada, capaz de medir automaticamente as características físicas de cada doente e de fornecer uma resposta igualmente automática. Maria João Cardoso – e Jaime Cardoso, do INESC TEC do Porto –, já desenvolveram para isso um software, o BCCT.core, que faz uma parte do trabalho e que tem sido melhorado ao longo de vários anos.

“O algoritmo do BCCT.core foi aprendendo, a partir de cerca de 200 fotografias (de face) do torso de doentes após cirurgias ao cancro da mama, a classificar automaticamente a qualidade estética dos resultados”, diz Maria João Cardoso. “No início, só havia fotografias de mulheres brancas e foi também preciso aumentar a diversidade das fotos.” Na sua versão mais recente, acessível na web, o BCCT.core consegue distinguir, em 99% dos casos, os resultados realmente maus dos realmente bons, com a mesma precisão que um grupo de peritos humanos. Nos casos intermédios, a avaliação automática da qualidade estética torna-se, porém, menos precisa.

Como as fotos de pós-cirurgia, por si só, não permitem fazer previsões, a equipa de Maria João Cardoso começou a fotografar as doentes com cancro da mama antes e depois das cirurgias, e a colocá-las numa base de dados, devidamente anonimizadas. “Construímos assim, a partir de 2013, uma plataforma de imagens.” Também recolheram outros dados das doentes, como a idade, a altura ou o tamanho da copa do soutien, necessários para o software elaborar o seu “veredito”.

Mesmo assim, o BCCT.core, atualmente utilizado na Unidade da Mama da Fundação Champalimaud e em cerca de 300 centros no mundo inteiro, implica um procedimento moroso. É preciso tirar as fotografias manualmente, inserir os dados adicionais, e a seguir, a doente precisa de ter uma reunião com uma enfermeira para ficar com uma ideia realista do que irá acontecer. Mais precisamente, para cada tipo de cirurgia, a enfermeira começa por procurar, na base de dados, um resultado “excelente” num caso com as características físicas o mais parecidas possível com as da doente e mostra-lhe a imagem.

Mas a doente também tem de perceber que as coisas nem sempre correm como esperado. Daí que, “para balizar a expectativa criada, também seja necessário convencer a doente a olhar para um caso menos bom”, diz Maria João Cardoso. Uma aprendizagem que nem sempre é fácil, mas que permite à doente fazer uma escolha informada do tipo de cirurgia a que deseja ser submetida. É um avanço substancial em relação aos procedimentos anteriores, como retocar fotografias para dar uma ideia do resultado, ou “até o médico fazer uns desenhos numa folha de papel”, nas palavras de Maria João Cardoso.

Diga-se ainda, que, após a cirurgia – imediatamente após a cicatrização e seis meses e um ano depois de terminado o tratamento –, as doentes recebem questionários que permitem avaliar a sua satisfação com os resultados estéticos obtidos.

Vem aí a inteligência artificial avançada

Para conseguir categorizar os resultados das cirurgias (como bons, maus, etc.), o BCCT.core recorre a alguma inteligência artificial (IA), embora “primitiva”. Mas devido aos mais recentes avanços da IA, e em particular aos algoritmos ditos de “aprendizagem profunda”, com a sua capacidade aumentada de reconhecimento de formas, a ideia mais ambiciosa de Maria João Cardoso vai poder finalmente ser posta à prova da experiência. O projeto internacional Cinderella, que é a fase mais recente deste longo esforço, está agora prestes a avançar graças ao financiamento europeu que irá receber.

O projeto Cinderella consiste essencialmente em passar para uma plataforma de saúde existente na web, a CANKADO (também disponível em app Android ou Apple) toda a informação sobre os diferentes tipos de cirurgias possíveis e todos os questionários de qualidade. A CANKADO irá articular-se com o repositório de imagens e o algoritmo de IA. Após a criação desta estrutura online será conduzido um grande ensaio clínico destinado a comparar o nível de satisfação estética das doentes cuja escolha do tipo de cirurgia integra IA avançada com o das doentes que utilizam o procedimento “convencional”. E para isso, as doentes submetidas a cirurgias mamárias nos cinco centros participantes – a Fundação Champalimaud, o Hospital San Raffaele em Milão, o Hospital Universitário de Heidelberg, o Hospital Universitário de Gdansk e o Centro Médico Sheba Tel Hashomer, perto de Telavive – serão previamente divididas aleatoriamente em dois grupos, cada um dos quais utilizará um desses dois procedimentos.

As diferenças entre os dois procedimentos de escolha são várias. “Por um lado”, diz Jaime Cardoso, “o novo algoritmo de AI avançada a ser desenvolvido pelo INESC TEC permitirá fazer uma previsão dos resultados da cirurgia só com base nas fotografias (antes e depois da cirurgia), evitando a recolha (manual) de dados adicionais.”

Por outro, ao contrário das doentes do grupo de “controlo”, que continuarão a receber as explicações sobre as cirurgias falando com uma enfermeira, as doentes do grupo “experimental” irão receber esse “treino” através da CANKADO.

Para o “treino” ser autónomo, será acrescentado à aplicação um módulo contendo uma série de pequenos vídeos acerca das cirurgias, que serão produzidos no primeiro ano do projecto. Uma enfermeira explicará às doentes, no início, como funciona a app, e, em princípio, “se o que está na app responder às dúvidas da doente, serão poupados importantes recursos” diz Maria João Cardoso.

No grupo de controlo, as doentes poderão ver fotos se quiserem, mas estas serão aleatórias e apenas corresponderão a um exemplo de uma cirurgia semelhante. Mas para as que terão acesso à app, as fotografias serão escolhidas pelo BCCT.core e o algoritmo de inteligência artificial avançada, e serão apresentadas à doente no ecrã do dispositivo móvel, automatizando o processo. “O algoritmo de AI adaptará ainda as imagens selecionadas aos traços físicos da doente para que esta se sinta ainda mais refletida nas previsões apresentadas”, explica Jaime Cardoso.

Este tipo de abordagem muda de forma profunda a maneira de encarar a escolha da cirurgia, faz notar Maria João Cardoso. É que, em vez de ser baseada numa reunião com o cirurgião e com uma enfermeira, as doentes com acesso à app poderão mostrar as previsões mais realistas para cada cirurgia aos seus próximos e discutir com eles a melhor opção. Isso permite um maior empoderamento não apenas das doentes, mas, se elas assim o desejarem, de outras pessoas por elas escolhidas.

Pink, o robô fotógrafo

Mas faltava automatizar a captação das fotografias – mais um processo manual que demora tempo e consome recursos humanos. Maria João Cardoso resolveu o problema procurando uma empresa que desenvolvesse para o efeito um robô médico. “O robô chama-se Pink, e o protótipo está a ser construído pela empresa checa PhotoRobot, utilizando equipamento fotográfico da Canon”, diz Maria João Cardoso. A doente coloca-se à frente de um fundo iluminado e o robô tira as fotografias nas posições necessárias. E até será possível obter fotos em três dimensões, algo que poderá ser útil nas aplicações de realidade aumentada a ser desenvolvidas na Unidade da Mama, como é exemplo o Breast4.0 (https://fchampalimaud.org/pt-pt/news/tecnologia-de-realidade-aumentada-e-modelos3d-personalizados-da-mama-utilizados-pela-primeira), salienta a médica e cientista. A data em que foram tiradas será automaticamente registada pelo robô juntamente com as fotografias.

“O primeiro robô, que irá para a Fundação Champalimaud, deverá estar instalado no nosso laboratório digital dentro de uns meses”, acrescenta.

Hoje em dia, quase ninguém tira fotografias nem faz previsões, desta maneira personalizada e automática, dos resultados estéticos das cirurgias da mama – por falta de tempo e de recursos. Mas se o projeto Cinderella mostrar que este procedimento automatizado funciona, resultando num maior grau de satisfação das mulheres, esse será um grande primeiro passo no sentido de permitir que as mulheres que vão ser operadas a um cancro da mama façam uma escolha realmente informada e personalizada da sua cirurgia, aumentando as suas hipóteses de gostar do que veem no espelho.

Fonte: 
JLM&A Consultores
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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