António Vaz Carneiro

"Ter medicamentos baratos daria cabo de negócios de milhões"

Médico à frente do recém inaugurado ramo português da Cochrane diz que foi uma surpresa a forma como o SNS resistiu à troika.

Portugal integra há 20 anos a Cochrane Colaboration, organização mundial de referência na selecção e síntese de estudos científicos em medicina e parceira da Organização Mundial de Saúde. Esta semana ganhou um novo lugar de destaque: o país passa a ser um braço da organização e tem como objectivo promover uma viragem do uso de informação sobre saúde nos países de expressão portuguesa. António Vaz Carneiro, médico e professor na Faculdade de Medicina de Lisboa, à frente do Centro de Estudos de Medicina Baseada em Evidência, coordena o projecto. Em entrevista ao jornal i, conta como a crise tornou a discussão da eficácia mais premente. E ajuda a explicar temas que saltaram para opinião pública, como o braço de ferro por preços razoáveis para a nova medicação da hepatite C.

Em 20 anos, persiste um desfasamento entre o que a ciência sabe e os cuidados de saúde prestados à população?
Há uma explosão da informação e é muito difícil geri-la. Isto sempre foi verdade e mais ou menos desfasamento implica uma boa capacidade de selecção e análise dos resultados, que foi o que a Cochrane trouxe de novo. Organizações como esta procuram olhar para os resultados publicados e sintetizar o que se sabe, sobretudo sobre medicamentos. Analisam os diferentes estudos, vêem o que é robusto e comparável e traçam uma fotografia da intervenção: quando deve ser usada, em que doentes, com que efeitos adversos.

Os médicos guiam-se por essas revisões?
Cada vez mais. O objectivo é que sejam usadas em normas de orientação clínica ou em avaliações como as que são feitas no Infarmed. Estamos a falar de análises em que seleccionamos os trabalhos com resultados confiáveis para oferecer informação rigorosa que possa ser aproveitada pelos decisores, sejam médicos, gestores ou doentes.

Há muitos resultados deitados fora? Existe a ideia de que as farmacêuticas só publicam os resultados que lhes interessam...
Até há pouco tempo pode dizer-se que era verdade. A indústria farmacêutica é responsável por 95% dos ensaios clínicos e sendo os principais patrocinadores por vezes os resultados que não conviessem não eram publicados. Isso hoje não é possível porque todos os ensaios a nível mundial têm de ser registados e ter resultados públicos com critérios bem definidos, para evitar a publicação selectiva.

Mas ainda existe uma disputa legal sobre o que tem de ser público.
Há sempre uma tensão entre a divulgação e os direitos de propriedade. Quando um laboratório está a desenvolver uma molécula para o cancro do cólon há outros cinco ou seis a fazer o mesmo e se divulgam toda a informação perdem competitividade. É uma tensão legítima mas acredito que vai esbater-se porque é possível divulgar informação agregada que não comprometa direitos de propriedade. E é crucial para a população, para que possa confirmar se os benefícios clínicos o são de facto ou se são mais modestos.

Notam um empolamento dos resultados?
Pode haver essa tentação mas quem gastou 500 milhões de euros num ensaio clínico, que é quanto custam, tem um risco financeiro colossal. O pesadelo absoluto da indústria é quando desenvolvem um medicamento durante 15 anos, passam todos as fases de ensaios e escrutínios de reguladores e passados três meses de venda o produto é retirado do mercado porque surge algum problema de segurança e todo o investimento vai por água abaixo. Esse receio obriga a rigor na informação.

Esse tipo de situações são raras, não?
Até há pouco tempo, em cada dez medicamentos introduzidos no mercado só se pagavam quatro. A indústria farmacêutica é muito lucrativa mas é fabulosa nos riscos que corre. Não conheço mais nenhuma que reserve 20% dos seus proveitos para investir em desenvolvimento. Se isso implica algum marketing, há progressos notórios e temos cada vez medicamentos mais potentes, seguros e para mais doenças. Um exemplo claro são os novos medicamentos para a hepatite C. É a primeira vez na história que curamos uma infecção viral. É extraordinário. Não conseguimos curar a sida, o herpes ou a hepatite b mas hoje finalmente temos uma cura para 90% dos casos de hepatite C.

Os 50 mil euros pedidos por um tratamento de três meses não são excessivos?
Qualquer medicamento passa por uma fase de ensaios clínicos, em que se verificam os seus benefícios e riscos. Depois há uma avaliação económica, em que se compara com alternativas e se estuda a vantagem e o contexto societal. Vai ver- -se o que se gasta com medicação e outros custos indirectos, como transplantes que não se fazem, ambulâncias ou mesmo absentismo. Aí conclui-se que o medicamento é custo-eficaz. Ser ou não muito dinheiro depende doutro problema. Pode-se concluir que um medicamento é custo eficaz, mas se eu sou o hospital e não tenho dinheiro para pagar 80 milhões de euros e dar o remédio a todos os doentes, como é que eu vou comprar?

É nesse ponto que se encontra a comparticipação destes remédios no SNS?
É claro para todos que é custo-eficaz e está-se a tentar baixar o preço. O problema aqui é mais complexo. Portugal é referência para os preços no Brasil e na Turquia. Sabe qual é o preço num dos países que tem mais hepatite C, o Egipto? 700 euros. De 50 mil passa para 700. Chato. Alguma vez vamos ter o medicamento a 700 euros? Nunca. Porque o nosso preço é referência para um mercado que vale 200 milhões e outro que vale 120 milhões. Nunca vamos ter preços baratos porque isso dá cabo do negócio.

Como se muda isto?
É lei europeia. Se saíssemos do circuito íamos ter problemas maiores como a entrada desenfreada de contrafacção. É uma realidade com que temos de lidar representando 0,1% do mercado mundial de medicamentos e estando no espaço europeu. Resolve-se com negociação, com transparência e um cuidado extremo naquilo que se aprova, garantindo que de facto se investe em tratamentos que são custo-eficazes e que a população deseja.

Qual é a validade das revisões sistemáticas da Cochrane que podem ser usadas nessas análises?
Num campo em que a investigação é muito activa, pode ser dois ou três anos. Noutros pode manter-se cinco anos. Mas permanecemos atentos e se surge algum resultado que possa alterar o panorama geral avança-se para uma nova revisão em que se começa tudo do zero.

Os médicos acompanham esse ritmo de renovação da evidência clínica?
Sim, sobretudo os mais novos. Há dez anos concluímos que abaixo dos 45 anos, a maioria socorria-se tecnologias de informação na prática clínica.

Perde-se alguma coisa no instinto do médico quando passa a socorrer-se de mais informação?
Não. A informação serve sempre de apoio à decisão. A prática médica é um tripé: os médicos pesam a evidência de que dispõe, a sua experiência e os desejos dos doentes. Quando uma pessoa diz que está cansada pode haver 85 causas. Pode estar deprimida, ter uma doença reumatológica, estar anémica, ter corrido 10 km no dia anterior. O primeiro diagnóstico é cognitivo e exclui uma série de situações com base na conversa. Depois, pede-se um teste e prescreve-se uma terapêutica. E aí é que a informação ajuda a seleccionar o exame ou terapia mais indicada. O desafio é sempre integrar a informação no acto clínico. Ainda não se descobriu uma maneira de tratar um doente que não comece por ouvi-lo. Além disso disso, os nossos doentes na maior parte das vezes são tão complicados que não são estudados.

Tendência a agravar com o envelhecimento?
Sim. Ninguém estuda um doente com cinco patologias. O exercício clínico é sempre um exercício de especulação e tende a sê-lo mais no futuro. Quando eu era jovem um homem velho tinha 75 anos. A idade média dos doentes internados hoje em Santa Maria é de 86 anos. É brutal.

A ciência e a indústria não o estuda porque não é lucrativo?
É mais porque é muito difícil analisar e interpretar os resultados de uma intervenção quando há diferentes patologias em simultâneo. Mesmo numa única doença, a incerteza é grande. Podemos ter sintomas frequentes em doenças frequentes mas também em doenças raras. E sintomas raros em doenças frequentes. Uma dor de cabeça pode ser muita coisa, um aspecto muscular ou um cancro. O que é certo é que toda a incerteza só tem a ganhar com mais informação.

Além de incerteza, estas revisões ajudam a reduzir gastos nos sistemas de saúde?
Ajuda a racionalizar-se. Alguma evidência não vai poupar dinheiro pois pode concluir-se que a melhor opção de tratamento é a mais cara. Ajuda certamente a gastar melhor. Agora nesta discussão em torno da racionalização a ciência é apenas uma das variáveis. É preciso pesar os recursos disponíveis e a vontade das pessoas. O que defendemos é que dados científicos sólidos devem ser um auxiliar da decisão.

Este foi um debate iniciado nos últimos anos no sector da saúde. Tem havido seriedade da discussão?
Na maior parte das vezes creio que sim agora estamos a falar de algo muito difícil de resolver. A minha posição enquanto é médico é simples: eu quero tratar toda a gente com tudo. Não há recursos? Então temos de arranjar o um sistema que leve a decisões assentes em evidência e participadas por todos. Primeiro a ciência e os especialistas têm de definir o que é um tratamento eficaz.

O que é?
Teríamos de definir critérios claros. Por exemplo no cancro do cólon, se a mortalidade é de 16%, poder-se-ia definir como eficaz um tratamento que a reduz para 14%. Se falamos de uma doença incurável como diabetes, seria eficaz algo que aumentasse em dez pontos a qualidade de vida. Faríamos isto para as 100 doenças que representam mais gastos e com esta base poder-se-ia definir o que é aprovado e não é. O passo seguinte seria falar com os políticos e cidadãos para que tomassem decisões. É difícil mas na Alemanha, uma inquérito revelou que a maioria considera que só se deve pagar tratamentos do cancro que prolonguem a vida um ano. Isto quando os novos medicamentos aumentam seis semanas a três meses com custos de 40 mil euros por doente. Se isto é verdade, estamos aprovar medicamentos que as pessoas acham que não se justifica. Temos de envolver os cidadãos nas tomadas de decisão e criar um sistema que possam dar o seu feedback sabendo que são temas difíceis de comunicar.

Se fizer a pergunta como na Alemanha é claro.
Sim, mas há outras subtilezas como aceitar-se que, na fase final, um não é um não. Quer se queira quer não estamos a falar de racionamento. Vamos ter terapias que funcionam mas que não vamos dar porque a sociedade opta por aplicar o dinheiro em terapias que funcionam muito. Tem de haver um trabalho claro feito por especialistas e depois de a sociedade aceitar decidir que, se é não, é não. Depois não se pode dizer que tem uma tia ou filho que precisava. Agora isto é um debate incontornável. Os custos da medicina são exponenciais, para mais quando a tendência é os laboratórios focarem-se mais em doenças raras e problemas como Alzheimer. Isto ao mesmo tempo que algumas áreas negligenciadas como vacinas e antibióticos, menos lucrativos, deviam passar a ter um maior investimento do Estado sob pena de ficarmos sem respostas.

Sendo um negócio lucrativo, não devia exigir-se mais à indústria nesses campos?
Pode dar-se vantagens do ponto de vista fiscal mas é preciso ter a noção de que a indústria vive numa posição insustentável. Estes são produtos com um enorme risco, ou porque a maioria dos estudos falham ou porque o risco de um pedido de indemnização por efeito adverso é maior. Os laboratórios demoram 15 anos a produzir um medicamento mas a cada três meses têm de dar informação a Wall Street se não os accionistas piram-se. É esquizofrénico.

Contribuiu para a demonização do sector?
Pressionados até por este contexto, os laboratórios têm uma enorme culpa nisso. Durante anos serviram-se de truques para influenciar os prescritores, o que nem sempre é fraude mas dar uma luz positiva a algo que não é assim tão positivo. Isto além de casos de corrupção directa dos médicos. Julgo que se a indústria teve culpa na sua demonização, hoje está a passar-se para o extremo oposto em que todas as relações com a indústria são conflito de interesse.

Vê o debate do racionamento a reemergir a curto prazo?
Na minha perspectiva não há alternativa. Todos os dias temos de racionar coisas que não são discutidas e deviam ser. Não damos o medicamento A mas damos o B. Como é que decidimos quem é que internamos nos cuidados intensivos? Claro que tentamos ter uma abordagem rigorosa de avaliar quem vai beneficiar mais e até hoje não houve decisões que de facto pusessem em causa os cuidados. Mas precisamos de baias e limites societais. Tudo isto é difícil de compreender quando a maioria das pessoas não percebe a importância da ciência na saúde ou não tem formação científica.

Perceber que é preciso racionar na saúde quando se tapam buracos em bancos como o BPN pode ser outra dificuldade...
Não resolveria: o dinheiro do BPN gastava-se num ano. Os médicos adoram a sua liberdade e são os principais defensores dos doentes. Desesperamos quando acontecem coisas que nos ultrapassam. Dito isto, para já o sistema aguentou-se. Qualquer sistema que tivesse levado a pancada que levámos nos nos últimos três anos ter-se-ia desagregado muto mais. Quase não temos deterioração de indicadores, não aumentou a mortalidade e as taxas de internamento.

Mas houve degradação dos tempos de resposta, nomeadamente cirurgias do cancro.
Tivemos uma alteração ligeira mas está a recuperar. Para quem cortou 500 milhões de euros no financiamento durante três anos isto pode ter duas interpretações: afinal havia 500 milhões de desperdício? A segunda, positiva, é que apesar de tudo se mantiveram os cuidados e houve uma resiliência enorme dos profissionais. Claro que houve impactos, implicaria sempre sangue, suor e lágrimas. Agora o que digo é que esperava coisas gravíssimas e foi um sucesso estrondoso. Houve problemas mas poucos quando esperava que a tuberculose disparasse, houvesse mais problemas infecciosos entre as crianças.

Esperava isso porquê?
Quando desnatamos e tiramos recursos aos tratamentos as pessoas morrem. Há consequências.

Se o lado positivo é não ter acontecido em grande escala, tem outro que é que podia ter acontecido.

Sou a primeira pessoa a dizer que o dinheiro, sendo pouco, deve ir para as coisas que funcionam. É o caso do sistemas de saúde. Temos um sistema bem montado e que funciona bastante bem. Se tem uma doença com o nível de gravidade 1 vai para um sítio, gravidade 2 vai para outro. Um juiz olha de manhã para assuntos fiscais e à tarde para pedofilia. É como eu ser oftalmologista de manhã e reumatologista à tarde. Temos de conseguir definir prioridades e perguntar as pessoas: faltam recursos, privatizam-se os tribunais? Querem saber ler melhor ou morrer menos? É um exemplo provocador mas a questão é que tendo um bolo limitado para distribuir, parece-me claro que a saúde tinha de ter muito mais do que os outro lados. Felizmente o sistema aguentou-se com um muito bom nível.

Houve sempre uma aura em torno de Paulo Macedo. Esbateu-se nos últimos tempos?
Quem está nisto há muitos anos sabe que é uma questão de tempo. É o ministério mais difícil.

Faltou capacidade reformista?
Isso foi um problema transversal e há o sentimento de oportunidade perdida. Mas a verdade é que também ninguém nos explicou o que é que a reforma do Estado implicaria em termos sociais. Posso fechar centros de saúde e hospitais, mas o que significaria ter mais 50 mil pessoas no desemprego?

Mas o SNS precisa de uma reforma?
Penso que sim. Há hospitais que podem ser repensados mas creio que a ideia de base é que hoje as coisas funcionam bem, por isso qualquer alteração requer cuidado. Precisamos de estudar mais as intervenções. Perceber qual o impacto de ter farmacêuticos a visitar idosos na adesão terapêutica, o impacto de ter equipas diferenciadas nos cuidados intensivos, de ter normas clínicas bem implementadas. A maior parte daquilo que fazemos não tem evidência mas quando a temos ou podemos ter porque é que não a usamos?

Porquê?
Porque não existe essa cultura. Começa nos decisores que não têm muitas vezes uma noção clara da importância da ciência na medicina e chega aos doentes, que por vezes não querem debater o que se passa com eles.

O que adia por exemplo mais estratégias de prevenção?
Sim, se bem que muito da medicina preventiva tem efeitos mais modestos do que se pensa. Dito isto é melhor não fumar e fazer exercício, mas nunca eliminará a doença. A par da informação, uma maior cultura de comunicação de risco é muito importante. Num único dia de Verão em que uma adolescente vai para a praia das 8h às 20h apanha mais radiação do que uma vida a usar telemóvel, ainda que a OMS pelo princípio de precaução o classifique como pesticida. A informação tem de ser mais clara.

Têm planos para isso nesta nova fase de colaboração com a Cochrane?
Sim. Além de resumos em português sobre as revisões sistemáticas talvez fosse importante um comentário semanal de algumas notícias que envolvam saúde.

Por exemplo a reacção vagal de Cavaco Silva no 10 de Junho?
É um exemplo mas sou de opinião que em situações dessas deveria haver boletins clínicos com informação clara à população.

A questão da transparência e da eficácia tornaram-se mais prementes na crise?
Julgo que fez acima de tudo que se compreendesse que as decisões mais difíceis num contexto de recursos limitados necessitam de uma base importante de informação para serem fundamentadas e aceites. Esperamos na saúde contribuir para que haja cada vez mais informação de boa qualidade para apontar as melhores decisões. 

Fonte: 
iOnline
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico e/ou Farmacêutico.
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