Doenças Congénitas da Glicosilação

A minha irmã vive com a forma mais comum de CDG

Atualizado: 
29/12/2020 - 09:59
Em todo o mundo são conhecidos 150 tipos de Doenças Congénitas da Glicosilação, um grupo de patologias metabólicas, raras e hereditárias, cujas manifestações podem estar presentes desde o nascimento. Este é ainda um grupo heterogéneo, e por isso mesmo complexo, uma vez que pode atingir vários órgãos e sistemas. Liliana Ferreira vive com a forma mais comum de CDG e a família luta incessantemente para que esta tenha a melhor qualidade de vida possível.

Liliana nasceu em 1981 e logo a seguir ao parto foi possível perceber que algo não estava bem. “Era uma bebé “mole”, que não conseguia sustentar a própria cabeça e não atingiu os marcos do desenvolvimento comuns, como o gatinhar e o caminhar. Também tinha muitos vómitos e diarreia, estrabismo, distribuição anormal da gordura e mamilos invertidos”, começa por explica a irmã, Vanessa Ferreira.

À data, e muito pelo desconhecimento que existia sobre a doença, foi-lhe diagnosticada paralisia cerebral. Apenas 16 anos depois, “numa das suas numerosas idas às urgências do hospital, um neuropediatra olhou com mais atenção para o largo espectro dos sintomas” que apresentava e resolveu investigar mais profundamente sobre a sua condição.

“Durante a “peregrinação” incessante da busca do diagnóstico definitivo, a Liliana fez inúmeros exames médicos/genéticos, alguns deles invasivos, com riscos inaceitáveis e que hoje em dia sabemos terem sido desnecessários”, recorda Vanessa adiantando que em 1986 a família deslocou-se à Bélgica, “em busca do diagnóstico definitivo”. No entanto, revela Vanessa, as respostas teimavam não chega. "Nessa visita à Bélgica, realizaram outra "bateria" de exames, mas não obtivemos respostas... A "peregrinação" continuaria", comenta. 

“Obviamente, no seu conjunto tudo acarretou um enorme desgaste físico e psicológico à minha família”, reconhece Vanessa reforçando a importância de se falar sobre o tema. “Dar a conhecer as CDGs, junto da comunidade médica é fundamental para diminuir os anos de angústia, amargura, confusão, desespero durante esta “peregrinação” incessante da busca do diagnóstico definitivo!”.

Liliana, atualmente com 39 anos, vive com a forma mais comum de CDG (chamada PMM2-CDG) que afeta 1 em cada 20 mil pessoas. No momento do seu diagnóstico não havia registo, em Portugal, de nenhum outro caso.

“As CDG são doenças raras, crónicas, provocam incapacidades severas e afetam a expectativa de vida e as capacidades físicas e sensoriais das pessoas que vivem com CDG.   Por norma, atingem mais do que um órgão, com uma grande heterogeneidade entre si. No caso da Liliana, quase todos os órgãos estão atingidos”, revela explicando que desde cedo necessitou de cuidados permanentes o que deixou marcas no seio da família. “O medo do desconhecido invadiu os nossos pensamentos, escurecendo o nosso quotidiano e as nossas perspetivas de futuro. Foi-nos dito que não deveríamos pensar num futuro… pois havia poucas pessoas com CDG reportadas em fase adulta”, recorda. Por outro lado, e uma vez que a irmã necessitava de atenção constante, a sua condição deixou pouco espaço para “para cultivar os laços familiares e sociais”.

“Em 1996, a informação sobre a doença e tratamentos era escassa, e havia poucos profissionais que conhecessem CDG, em Portugal. Portanto, os serviços de saúde não responderam de forma imediata e adequada às necessidades de saúde que a Liliana tinha”, lamenta acrescentando que a falta de investigação e a ausência de informação sobre estas patologias se traduziram numa enorme frustração. “Também enfrentámos a falta de apoios económicos e sociais. Lembro-me que queríamos conhecer outras famílias com pessoas que sofressem da mesma doença, mas em 1996, existia apenas a página web da associação americana CDG (atualmente, CDG Care). Em 2009, tivemos a oportunidade de conhecer as primeiras famílias CDG graças a um encontro organizado pela associação espanhola CDG (AESCDG)”, comenta explicando que estes foram anos de isolamento para a família, sobretudo para a mãe que passou a dedicar-se em exclusivo à filha.

“Todos os sonhos da minha mãe, ficaram truncados. Além do desgaste físico, associado a poucas horas de sono, muitas horas no hospital, e sem poder descansar, há o desgaste psicológico. A vida profissional da minha mãe ficou de lado para poder acompanhar os seus filhos e o meu pai teve o grande peso de ser a única pessoa a trazer o sustento financeiro para a nossa casa, incluídas as terapias que eram e são essenciais, mas extremamente caras, o que foi e tem sido um grande peso a nível do orçamento”, revela.

Liliana precisa de cuidados de saúde de qualidade e recursos terapêuticos constantes, e apesar desta doença comprometer a sua autonomia, não deixa de ser, como diz a irmã Vanessa “uma fonte de alegria e de felicidade. Este aspeto é algo que caracteriza as crianças e adultos que vivem com CDG”.

Não há cura para o tipo específico que afeta Liliana. O tratamento apenas serve para controlo dos sintomas, embora seja ainda muito limitado. Em paralelo, realiza alguns tratamentos complementares inteiramente pagos pela família, como é o caso da Fisioterapia, Terapia da fala, Hipoterapia e Hidroterapia. “As terapias são essenciais, mas extremamente caras, o que tem sido um grande peso a nível do orçamento familiar. E quando necessário, consultamos especialidades médicas no âmbito do privado. Há, portanto, muitas despesas exorbitantes”, esclarece.

Por outro lado, explica que tem sido difícil receber cuidados de saúde coordenados. “A Liliana tem por ano 15-20 consultas. Isto traduz-se em dificuldades junto dos cuidadores informais, como é o caso da minha mãe, por exemplo, para conseguir ou manter um emprego. Sem cuidados adequadamente coordenados, as famílias que vivem com doenças raras têm necessidade de dedicar quantidades significativas de tempo e esforço, muitas vezes com grande sacrifício, para estar presentes em diferentes consultas de diferentes especialidades e às vezes em diferentes hospitais”, explica deixando o exemplo: “para atender às diferentes consultas relativas à condição da minha irmã, os meus pais gastam em média, três horas para preparar a Liliana, três horas de viagem e têm pelo menos duas ou três consultas por mês”.

Quanto aos cuidados diários, revela, contabilizam “doze transferências à casa de banho, e cuidados noturnos, como mudar fraldas de noite”.

Considerando ser de extrema importância sensibilizar para as Doenças Congénitas de Glicosilação, até porque grande parte da população nunca ouviu falar sequer delas, Vanessa Ferreira, realizou, este ano, uma caminhada pelo Algarve durante oito dias, tendo percorrido 135 quilómetros para chama a atenção para estas patologias. “Esta caminhada, denominada “Desafio CDG”, foi uma oportunidade que contribuiu para aumentar a sensibilização sobre as CDGs junto dos doentes, familiares, cuidadores, médicos, investigadores e da sociedade em geral. Nas redes sociais alcançamos no total 10 000 pessoas, e aumentámos substancialmente o número de seguidores nas redes socais em geral (para mais informação AQUI). Também angariámos fundos para a investigação levada a cabo pela Rede de Investigação Internacional para Famílias e Profissionais CDG (CDG & Allies - PPAIN). Várias associações CDG de todo o mundo uniram-se a nós, com demonstrações e mensagens genuínas de carinho e apoio.

Sensibilizar e investigar, atuam como agentes multiplicadores e são essenciais para o diagnóstico precoce e aumento de tratamentos mais eficazes”, afirma.

O que são as Doenças Congénitas da Glicolisação?

As Doenças Congénitas da Glicosilação (Congenital disorders of glycosylation  - CDG)) são doenças metabólicas, raras e hereditárias, sendo atualmente conhecidos cerca de 150 tipos diferentes.

São doenças complexas que, por norma, atingem mais do que um órgão, com uma grande heterogeneidade entre si. Não se sabe a real prevalência deste grupo de doenças, que está claramente subdiagnosticado, mas estima-se que na Europa é de 0,1-0,5/100.000, enquanto que em Portugal existem cerca de 90 doentes diagnosticados.

Como se manifestam?

As CDG englobam uma grande variedade de sinais e sintomas. Consequentemente, falamos de um grupo de doenças camaleónicas! E devemos suspeitar CDG, em qualquer criança com envolvimento de órgãos neurológicos ou multissistémicos inexplicáveis.

De uma forma geral, o atingimento neurológico é o mais frequente (por exemplo ataxia, alteração do tónus muscular, atraso do desenvolvimento, epilepsia ou subdesenvolvimento do cerebelo, o que pode causar problemas de equilíbrio e coordenação), mas pode não estar presente.

É também comum distribuição anormal de gordura, defeitos na coagulação do sangue que podem causar hemorragias ou coagulações anormais (defeitos de coagulação), sintomas gastrointestinais tais como vómitos e diarreia, anomalias oculares tais como olhos cruzados (estrabismo) e degeneração da retina.

Existe ainda um conjunto de manifestações clínicas sugestivas deste grupo de doenças, nomeadamente dismorfias faciais típicas, a presença de mamilos invertidos e a distribuição anormal da gordura corporal.

Existe ainda sintomas adicionais que incluem anomalias hepáticas, anomalias cardíacas tais como doença do músculo cardíaco (cardiomiopatia), episódios semelhantes a acidentes vasculares cerebrais, e perda excessiva de proteínas do tracto gastrointestinal (enteropatia por perda de proteínas), que podem causar inchaço devido à retenção de líquidos (edema). Os doentes também podem apresentar acumulação de fluidos em torno dos pulmões ou corações (derrames pleurais ou pericárdicos).

Cabe destacar, que a gravidade e prognóstico de sinais e sintomas variam muito, dependendo do tipo específico de CDG. Os sintomas específicos e a sua gravidade podem variar mesmo entre indivíduos com o mesmo tipo de CDG e mesmo entre membros da mesma família. Além disso, a maioria dos subtipos de CDG só foram relatados num número limitado de indivíduos, o que dificulta aos médicos o desenvolvimento de um quadro preciso dos sintomas e prognóstico associados.  

Como são diagnosticadas as CDG?

O diagnóstico dos defeitos congénitos da glicosilação é um desafio, dado a grande variabilidade de manifestações e a ausência de um exame diagnóstico global e único. Muitas vezes é utilizado um teste de rastreio, a focagem isoelétrica de transferrina, mas que apenas é positivo em cerca de metade dos casos. Assim, a suspeição clínica é fundamental, devendo ser equacionado como hipótese diagnóstica em qualquer quadro clínico inexplicado.

Qual o tratamento?

Atualmente apenas estão disponíveis tratamentos para alguns tipos de defeitos congénitos da glicosilação, que incluem a suplementação dietética (por exemplo galactose no PGM1-CDG e manose no MPI-CDG) ou a transplantação de órgãos (por exemplo transplante hepático no MPI-CDG), havendo, contudo, a expectativa de que a investigação em curso possa permitir desenvolver novas terapêuticas.

Nos restantes casos, existem tratamentos dirigidos ao controlo dos sintomas e prevenção, que permitem melhorar a qualidade de vida dos doentes e seus cuidadores. Para isso, é fundamental que os doentes sejam acompanhados por uma equipa multidisciplinar e num centro com experiência no seguimento destas doenças.

Cuidados Complementares

Para além dos cuidados médicos, é necessário um apoio personalizado e com recurso a terapias adequadas, de forma a garantir que seja atingido o potencial máximo de cada criança.

A integração na escola deve ser planeada e ajustada com um currículo individualizado e adaptada à realidade de cada criança.

No adulto, quando possível, deve ser apoiada e fomentada a integração a nível laboral, através de equipas multidisciplinares que além do apoio clínico nas diversas vertentes, garantam também o apoio social.

A formação e atualização das famílias e profissionais, através da organização de ações de formação e informação escrita sobre a doença é também de extrema importância.

O papel fundamental da Associação Portuguesa da Doenças Congénitas da Glicosilação e outras Doenças Metabólicas Raras

A Associação Portuguesa da Doenças Congénitas da Glicosilação e outras Doenças Metabólicas Raras (APCDG-DMR), é uma associação sem fins lucrativos que tem por objetivo promover ações que visem a melhoria da qualidade de vida das pessoas que vivem com CDG e seus familiares.

De acordo com Vanessa Ferreira esta associação tem vários eixos de atuação:

  1.  sensibilização da opinião pública e dos poderes públicos para os problemas relacionados com o diagnóstico, o tratamento, os cuidados médicos e integração social destas pessoas;
  2.  fomentar a investigação baseada nas necessidades e perspetivas das famílias, e em colaboração com especialistas – desta forma contribuímos para a produção de conhecimento sobre as doenças;
  3. incentivar a união da comunidade mediante uma presença online (por exemplo, através de websites e de meios de comunicação social) ou mediante a organização de eventos. Estas ações são plataformas ideais para a partilha de experiências e autoajuda entre famílias;
  4. facilitar recursos em linguagem acessível para ajudar as famílias a entenderem o diagnóstico e os passos a dar depois do diagnóstico.

“De forma geral, o nosso modelo de associação é único, pois temos um foco muito terapêutico, que permite contribuir para produção de conhecimento rápido na área das CDG, e que possa contribuir para futuros tratamentos e melhoria da qualidade de vida”, revela Vanessa.

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Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Vanessa Ferreira