Entrevista

Dor pediátrica: «as crianças sentem dor e guardam memória da dor»

Atualizado: 
19/06/2019 - 11:32
Tudo o que provoca dor num adulto, também provoca dor numa criança. No entanto, o diagnóstico da dor em idade pediátrica pode representar um enorme desafio. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Clara Abadesso, Coordenadora do grupo Dor na Criança e Adolescente na Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED), admite que ainda “há muito para fazer” apesar dos avanços sentidos nesta área nos últimos anos. Quando não tratada, a dor pode evoluir para um quadro crónico na idade adulta.

Considerada como 5º sinal vital, desde 2003, a dor como doença ou sintoma é um dos principais motivos de preocupação para os pais e, ainda hoje, representa um desafio para os profissionais de saúde. Neste sentido, desde que foi a implementado o Programa Nacional de Controlo da Dor, o que mudou em matéria de diagnóstico, tratamento ou controlo da dor na infância e o que pode ainda melhorar?

Melhorou significativamente a valorização da dor – a integração da sua avaliação no dia-a-dia, a melhoria das prescrições dos fármacos analgésicos em contexto hospitalar, a inclusão de intervenções não-farmacológicas. No entanto, a abordagem da dor ainda não é a ideal, porque a implementação das intervenções para a prevenção e tratamento da dor ainda é muito desigual, e ainda não são aplicadas de forma sistemática.  

Sobretudo nos últimos 30 anos tem expandido imenso o conhecimento científico acerca da dor graças a uma crescente investigação. Sabe-se mais sobre a neurobiologia da dor - como funcionam as vias da dor, como funciona o cérebro face à dor; sobre a natureza multifactorial da dor; das consequências a curto e longo prazo da dor inadequadamente tratada; formas de avaliar a dor através de escalas específicas; novos fármacos para o tratamento da dor; a importância e eficácia de intervenções não-farmacológicas para o alívio da dor; a importância do tratamento multidisciplinar na dor crónica, etc. Tudo isto é resultado de imensa investigação tanto nas ciências básicas, como na clínica.

Mas ainda há muito para fazer e que permite cada vez mais que a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da dor sejam mais eficazes, quando se introduz na prática clínica o que já se demonstrou na investigação científica.

Quais as principais causas da dor pediátrica? E qual a sua prevalência?

Se falarmos de dor aguda, consideramos a dor associada a algumas situações de doença aguda, a traumatismos, mas também a dor associada a procedimentos diagnósticos e terapêuticos que as crianças muitas vezes têm de realizar – ex. colheitas de sangue para análises, tratamentos e exames realizados no hospital. Até a dor associada ao procedimento da vacinação deve ser uma preocupação dos profissionais de saúde, porque existem medidas simples que permitem reduzir esta dor.

Quando falamos de dor crónica temos a dor que pode existir associada a uma doença crónica. Mas existe um outro tipo de situações que é mais prevalente, como as cefaleias, dor abdominal recorrente, dor músculo-esquelética localizada ou difusa. Nestas situações não existe lesão ou doença orgânica, mas existe dor que surge por alterações no sistema de sinalização da dor – como se o processamento do sistema nociceptivo estivesse alterado. É como se existisse uma alteração do “software” e não do “hardware”. Estas situações são agora recentemente designadas de doenças ou disfunções de dor primárias.

O que distingue a dor crónica da dor aguda?

A dor aguda é uma dor de curto prazo, que dura minutos, horas ou dias, sempre de duração inferior a 3 meses. Está associada a traumatismo, infeção, inflamação. A dor aguda tem uma função protetora do organismo porque pode ser um sinal de alerta de algum problema (alguma doença, inflamação, infeção), ou que nos pode “avisar” de alguma situação de perigo (ex. se pisamos um objeto cortante ou tocamos em algo a ferver – a dor que sentimos protege-nos porque nos afasta do perigo contra a integridade do corpo), ou pode funcionar para nos “dar um sinal” que temos de repousar (ex. depois de um traumatismo no pé devemos dar tempo para a recuperação dos tecidos que ficaram magoados, e não usar excessivamente aquela parte do corpo, na fase inicial da recuperação).

A dor crónica tem uma duração superior a 3 meses, ou estende-se para além do período esperado de cura, ou seja, a dor persiste para além do tempo normal de cicatrização tecidular, depois de desaparecer a lesão que a causou. Esta dor deixa de servir como sinal de alerta e de proteção do corpo. É como se a dor se transformasse num fenómeno independente e autónomo em relação à sua origem, deixando de ser um mero sintoma e passando a ser ela própria uma doença.

De que forma é possível medir a intensidade da dor na infância, sobretudo quando as crianças ainda não verbalizam o que sentem?

A investigação em dor pediátrica fez também evoluir a forma como podemos avaliar a dor, mesmo em crianças pequenas sem capacidade de verbalização, através de escalas de avaliação específicas e validadas. São chamadas escalas de heteroavaliação ou escalas observacionais. Usam parâmetros comportamentais (ex. expressões da face, posturas das pernas ou do corpo, atividade, choro, consolabilidade, etc.).

A partir dos 4 anos já é possível começar a usar escalas de autoavaliação (ex. uma escala de faces). A partir dos 7 anos as crianças já começam a usar uma escala numérica.

As crianças sentem a dor da mesma forma que um adulto? Ou é um mito achar que existem diferenças?

Tudo o que provoca dor num adulto, também provoca dor numa criança. As vias anatómicas e neuro-químicas começam a formar-se na vida intrauterina e pelas 28 semanas de gestação já estão formadas. Por outro lado, existem umas vias de controlo descendentes inibitórias da dor que ainda não estão totalmente formadas nos prematuros e, por isso, estes podem ainda ter hipersensibilidade aos estímulos dolorosos.

As crianças sentem dor e guardam memória da dor. Sabe-se, atualmente, que a dor não tratada pode ter consequências na vida da criança a curto e a longo prazo.

Quais os principais desafios quanto ao seu diagnóstico?

Os desafios quanto ao diagnóstico de situações de dor crónica (sobretudo, as situações de disfunções ou doenças de dor primárias) é que ainda permanecem pouco reconhecidas e subdiagnosticadas. Quando não se encontra um problema ou lesão orgânica ainda se tende a dizer que a dor é psicológica ou “é da cabeça” da pessoa.

Que complicações podem surgir associadas à dor, sobretudo quando esta não é tratada ou controlada…?

Experiências precoces e repetidas de dor (ex. no período neonatal) parecem exercer influência sobre as experiências posteriores de dor, no que respeita à sensibilidade dolorosa, quer no que respeita à forma de lidar com o stress.

A dor crónica na infância e adolescência não adequadamente tratadas aumenta a probabilidade de persistir ou desenvolver dor crónica na idade adulta.

A curto prazo, a dor não adequadamente tratada pode aumentar o tempo de recuperação de uma doença, de uma cirurgia, pode aumentar as complicações, aumenta a ansiedade e o stress, que condiciona maior ansiedade e stress também em situações futuras.

Como se trata a dor pediátrica?

Através de três pilares fundamentais: intervenções farmacológicas, físicas e psicológicas.

Dentro do tratamento farmacológico, que medicamentos são utilizados para tratar a dor? São sempre seguros?

Os medicamentos usados para tratar a dor são o paracetamol, os anti-inflamatórios não esteroides e os opioides. Usados de forma controlada e orientada pelo médico são seguros, mesmo os opioides. Os opioides devem ser usados em situações de dor aguda muito intensa – exemplo, uma queimadura extensa, um politraumatizado, uma fractura grave, um pós-operatório de algumas cirurgias.

Existem ainda outro grupo de fármacos que são usados para controlar a dor associada a procedimentos – são fármacos com propriedades sedativas e analgésicas.

São sempre seguros quando usados nas doses adequadas ao peso da criança e sob condições de segurança padronizadas.

Quanto ao tratamento não farmacológico, em que consiste e em que casos é aconselhado?

O tratamento não-farmacológico inclui intervenções físicas e psicológicas. Estas podem ser usadas para a dor aguda (ex. relacionada com procedimentos, em situação pós-operatório, etc.) e também para a dor crónica.

Dentro das estratégias físicas podemos resumir em massagem ou toque terapêutico, medidas e posicionamentos de conforto (ex. ao colo dos pais), contacto pele com pele (nos recém-nascidos), swaddling (contenção com lençol). Nos pequenos latentes, sucção não-nutritiva (chucha) e sacarose (< 12 meses), aplicação de calor ou frio, acupunctura, acupressão, reflexologia e aromoterapia.

Nas intervenções psicológicas existe: 1) a distração (desviar a atenção da criança do estímulo doloroso, em direção a um estímulo alternativo e mais agradável). Pode usar-se música, desenhos animados, livros, jogos, bonecos, histórias, bolas de sabão, moinhos de vento, brinquedos interativos, etc. 2) Estimular a imaginação. 3) Informação preparatória (ex. explicar o que se vai passar durante um procedimento), que deve ser adequada à idade. 4) Técnicas de relaxamento – relaxamento muscular progressivo, exercícios de respiração (abdominal). 5) Hipnose clínica (na criança existem várias técnicas para alívio da dor aguda e crónica, como a luva mágica, o lugar favorito, o interruptor da dor.

Como funciona a terapia cognitivo-comportamental e quais os seus resultados?

Dentro do tratamento da dor crónica estão incluídos vários tipos de tratamento, para além do farmacológico (que nem sempre tem de existir): a reabilitação – inclui fisioterapia, terapia ocupacional, exercício físico; tratamento psicológico – terapia cognitivo comportamental, técnicas de distração, relaxamento, respiração, biofeedback, etc; Terapias integrativas ou complementares (acupunctura, hipnose, musicoterapia, arte-terapia, meditação e mindfulness, etc).

A terapia cognitiva comportamental pretende diminuir a ansiedade e sentimentos negativos – trabalha com os pensamentos e comportamento. Deve ser feita por psicólogos com formação específica. Existem outro tipo de abordagens dentro da psicologia para lidar com estas situações.

No âmbito deste tema, que recomendações deixa aos profissionais de saúde que lidam com esta problemática?

É muito importante que a dor seja valorizada e não ignorada. Esta deve ser prevenida e tratada. Para isso, os profissionais de saúde devem incluir sempre intervenções farmacológicas, físicas e psicológicas para o tratamento da dor.

E quais os principais conselhos aos pais?

Os pais podem aprender como podem ajudar a reduzir a dor, a ansiedade e o medo das suas crianças. Podem perguntar aos profissionais de saúde como podem ajudar, podem colaborar e ser elementos participativos na aplicação das intervenções não-farmacológicas.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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