Doença reumática autoimune rara

Doença de Behçet: vidas reais de pessoas raras

Atualizado: 
20/05/2019 - 15:24
Já parou para pensar como é lutar todos os dias contra uma doença crónica, rara e incompreendida que pode afetar qualquer sistema do seu corpo?

Na doença de Behçet, o sistema imunitário, que normalmente protege o corpo contra infeções, produzindo inflamações controladas, torna-se hiperativo e passa a produzir inflamações imprevisíveis, exageradas e não controladas. Estas inflamações podem afetar qualquer estrutura. Trata-se de uma vasculite sistémica, inflamação dos vasos sanguíneos de pequeno e grande calibre, de causa desconhecida e que possui maior incidência nos países que pertenciam à Rota da Seda. Não é contagiosa e caracteriza-se, principalmente, pelo aparecimento de úlceras orais e/ou genitais recorrentes, inflamação dos olhos (uveíte) e lesões na pele. Também pode afetar as articulações, todo o tipo de vasos sanguíneos, pulmões, sistema nervoso central e trato digestivo.

Sendo uma doença rara, o Núcleo da Doença de Behçet da Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas assinala este Dia Mundial, dando voz a quem vive com este diagnóstico.

Mara, 51 anos, foi-lhe diagnosticada doença de Behçet em 2009. Nunca havia tido sinais até então. “O meu diagnóstico foi a pior prenda de natal que recebi. Um risco num olho, foi assim que começou. Como tinha um cão, imaginei que fosse um pelo. Sem irritação, sem comichão ou vermelhidão. Apenas um risco. Como incomodava, depois de um dia de trabalho fui à Urgência. Para ficar assustada, bastou uma carta lacrada e um encaminhar para o hospital a um determinado médico, oftalmologista. Com o aparelho nos olhos perguntou por aftas, por nódoas negras, por dores em sítios que nem imaginava pudessem doer. Passados dez anos, aprendi o que é uma vasculite, o que são tratamentos imunossupressores. Aprendi um linguajar técnico por procurar saber o que é essa doença e porquê ter-me escolhido a mim. Deixei de ter uma doença e passei a ter uma síndrome. A síndrome resume o que nós, pacientes e não doentes somos: uma constelação de incidências. Porque tomar banho custa. Usar peças de roupa, como meias ou cuecas, custa. Sapatos, dias há que choramos só de pensar. Dormir? Luxo! Luxo porque a pele, o maior órgão do corpo humano está recheado de veias e, pasmem, uma vasculite é o inflamar de todo o sistema circulatório. Conseguem imaginar? Imaginem chorar com um beijo dos vossos filhos. Imaginem agarrar um garfo a ranger os dentes. Tudo deve ser controlado. Imaginem só. Um risco num olho. Um conjunto de incidências. Porque não somos doentes. Nem pacientes. Porque dias há que não queremos ser raros apenas ter paciência para chegar ao fim do dia e pedir para que amanhã seja um outro dia. Melhor. Menos mau.”

Mariana, de 39 anos, lida há 24 anos com esta doença. Deixou quase de ver do olho esquerdo numa aula de matemática e foi às urgências. O médico disse que era grave, mas que não sabia o que era. Foi o princípio de um turbilhão que entrou na sua vida de adolescente. A partir desse dia a vida nunca mais foi a mesma. Vieram as aftas que mal a deixavam comer, as úlceras genitais, as lesões na pele e as dores nas articulações que a impediam de fazer desporto. Fez incontáveis exames e análises, tomou medicação agressiva para controlar as crises. Foram muitos sintomas ao mesmo tempo, mas no espaço de meses, surge o diagnóstico de Behçet.

Acompanhando tudo isto, as faltas às aulas, o afastamento da vida social, o ganho de peso, os problemas com a medicação, os internamentos e as crises constantes. A dor, a dificuldade em ver e a incerteza do futuro passou a fazer parte da sua vida e da vida da sua família.

O tempo foi passando, os sintomas também, uns mais ligeiros outros mais graves até ao surgimento de uma complicação neurológica que pode estar ou não ligada à doença. Mais um internamento e medicamento novos a juntar aos que já toma desde os quinze anos. Mais um susto, mais uma luta, mais um ano perdido na faculdade… No sistema nervoso central, o líquido que envolve o cérebro acumula-se e pressiona o nervo ótico e o cérebro (hipertensão intracraniana). As dores de cabeça duram meses, tonturas, vómitos, falta de visão… é necessário realizar exames invasivos, punções lombares, tomar medicação que tem muitos efeitos secundários. Mais uma vez, nada que não se ultrapasse. Apesar das sequelas ao nível da visão, com o tempo vai melhorando, com algumas crises agudas pelo meio. Até que numa consulta de oftalmologia se identifica um edema na pupila. Mais um internamento. O aumento da pressão intracraniana desta vez não melhora com medicação, só com uma cirurgia para colocar um shunt que drenasse o líquido através de um cateter para a cavidade abdominal. A primeira cirurgia falha, a segunda também… à terceira é de vez… não foi. Na quarta cirurgia fizeram uma abordagem diferente, desta vez colocaram uma válvula programável que drena o líquido diretamente do cérebro para o abdómen através de um cateter: resultou finalmente! Acordou, as dores diminuíram, a visão melhorou o possível com o passar do tempo. O susto passou; até ao próximo…

“Sinto que o Behçet faz parte de mim, sei que sem ele eu seria uma pessoa diferente, teria percorrido outros caminhos. Não me lembro o que é viver sem dor e receio do que virá no dia seguinte. Com isto não deixo de viver, de trabalhar, de viajar… nem que para isso tenha de desencantar forças sabe-se lá de onde. Quando todos os outros estão em baixo, muitas vezes sou eu a levantá-los e a empurrar o carro.“

Joana, 34 anos. Toda a vida teve sintomas, mas só foi diagnosticada com 21 anos. “Imagine aquele abacaxi docinho e sumarento a olhar para si, mesmo a pedir-lhe uma dentada que o vai saciar de prazer. Você trinca, saboreia e consola-se. E, no fim, aquela afta na ponta da língua vai aborrecer por cinco longos dias. Mas compensou pela frescura do abacaxi: não faltam produtos no mercado que acelerem o processo de cicatrização. Agora imagine que você não come o abacaxi. E que na verdade, até se abstém dos frutos secos, do açúcar, do pão, da manteiga, do vinho... e mesmo assim, tem aftas. Só que não é uma na ponta da língua. São vinte, são enormes e espalham-se pela boca toda. E pela garganta. E por todo o sistema digestivo. E, não raras vezes, nos genitais. Olhe...e até no olho! Agora imagine que esta não é a pior parte. Imagine que o corpo dói e não sabe porquê. Portanto, não consegue evitar as dores com prevenção. Decide ir ao médico e diz que o corpo lhe dói. O médico responde-lhe que descanse. Você descansa e as dores persistem. Vai ao médico que prescreve análises. Os resultados são vagos. «Pode ser tanta coisa...» E durante todo este processo, a vida continua. Você tem de sair todos os dias da cama para ir trabalhar, para tratar dos filhos, para lidar com os mesmíssimos problemas do dia-a-dia que a pessoa da afta do abacaxi. E quando deita a cabeça em cima do braço e se queixa de dores, ninguém acredita. Porque, por vergonha ou por pudor, você não vai mostrar as crateras que tem na parte interior da bochecha. Ou da vagina. E ninguém sabe que as suas articulações estão inflamadas, nem que você não dorme há dias por não arranjar uma posição confortável que lhe permita descansar. Quando, finalmente, o médico confirma o diagnóstico, procura acertar-se a medicação. Somos todos diferentes. Temos sintomas diferentes. É que as síndromes são tão peculiares que não afetam todos da mesma forma. E, no entanto, nascemos todos com ela. Não adquirimos. Não prevemos. Não prevenimos. Somos assim. E a medicação provoca insónias, diarreias, mau estar, excesso de peso, anorexia e já nem sabe se está melhor com a medicação ou sem ela. Ter Doença de Behçet é desejar ter uma pequenina afta na ponta da língua por termos comido uma fatia de abacaxi fresquinha naquele dia de calor. É assim que se sente quem sofre com a Doença de Behçet: raríssimo. E quem é raro, normalmente está só.”

Foi por estas pessoas, de nomes fictícios, mas com histórias reais de quem vive com uma doença reumática autoimune rara, pouco conhecida e ainda menos compreendida, que foi constituído o Núcleo de Behçet da Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas.

Fonte: 
Liga Portuguesa contra as Doenças Reumáticas
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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