Opinião

Diversidade e Infância – quem protege a criança com diversidade de género?

Atualizado: 
02/07/2020 - 08:39
A partir do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC), o Projeto europeu Diversidade e Infância acaba de produzir o Relatório Perceções e Desafios Profissionais no âmbito da Autodeterminação de Género de Crianças e Jovens. Este relatório resulta do Inquérito Europeu sobre Diversidade e Infância, o primeiro a ser realizado com esta amplitude e enfoque, envolvendo 9 países europeus. Dele resulta evidente a falta de recursos, sobretudo de formação e informação, por parte de profissionais envolvidos/as na implementação da Lei de Autodeterminação, o que gera obstáculos à igualdade de tratamento desta população em áreas como a educação, saúde, intervenção familiar, media e espaço público e comunitário.

Portugal tem sido apontado como um país exemplar pelo seu percurso de reconhecimento de direitos LGBTI+. O mais recente relatório da OCDE1, apresentado a 24 de junho, destaca Portugal como o segundo país mais dinâmico nesta matéria. Já anteriormente, o Inquérito Europeu LGBTI realizado pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) permitira conhecer comparativamente este progresso.

Parece significativo que, numa longa caminhada pela inclusão iniciada em 20012, o último grande passo do legislador tenha sido a aprovação da Lei de Autodeterminação de Género em 2018 (Lei nº38/2018, de 7 de agosto), cuja regulamentação visa proteger crianças e jovens face a qualquer forma de violência com base na sua identidade ou expressão de género.

Mas estarão as/os profissionais de saúde e educação, entre outros, preparados para implementar a Lei de Autodeterminação? Como definem género? Que importância lhe atribuem no exercício das suas funções? E que preparação terão recebido nesta matéria, ao longo do seu percurso académico e da sua formação profissional, incluindo formação contínua? Quais as maiores dificuldades que sentem? Estas foram algumas das questões a que procurámos responder através do 1º Inquérito Europeu Diversidade e Infância, construído e implementado entre Fevereiro e Março de 2020 em 9 países por uma equipa de investigadoras do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, no âmbito do projeto Diversity and Childhood - Changing social attitudes towards gender diversity in children across Europe.*

Um ano após as medidas de regulamentação da Lei de Autodeterminação, importa conhecer as perceções e dificuldades sentidas por profissionais no terreno, responsáveis pelo cumprimento das medidas que visam justamente proteger crianças e jovens com diversidade sexual e de género. As áreas de intervenção profissional selecionadas foram a Educação, a Saúde, a Intervenção Familiar, os Media e o Espaço Público e Comunitário. Os resultados preliminares para Portugal do Inquérito Europeu Diversidade e Infância permitem extrair conclusões significativas.

Perceções e desafios profissionais no âmbito da autodeterminação de género de crianças e jovens em Portugal

Relatório com base nos resultados do 1º Inquérito Europeu Diversidade e Infância

Abordagem de género

Para a esmagadora maioria de profissionais inquiridos, o género é uma construção social e não uma categoria definida por critérios médicos, o que parece ir ao encontro do cumprimento das normas em matéria de autodeterminação de género. No entanto, para 36% o género define-se como um conjunto de características biológicas e quase ¼ dos profissionais defende ainda uma visão binária do género, fazendo-o coincidir com as categorias sexo masculino e sexo feminino. Esta situação torna plausível a existência obstáculos a crianças e jovens trans, intersexo e não-binários no contacto com profissionais e serviços.

Apesar de uma maioria de profissionais se percecionar como aliada de pessoas de género e sexualidades diversas (58%), 15% considera-se indiferente a esta questão. Essa indiferença é sentida sobretudo nas áreas da educação, intervenção familiar e espaço público. Uma abordagem profissional que ignora as fortes assimetrias de género e sexuais, escudando-se com o princípio de igualdade de tratamento como se esse princípio tivesse uma tradução automática nas práticas quotidianas e/ou institucionais, reproduz necessariamente desigualdade estrutural e, como tal, é cúmplice da desproteção de crianças e jovens LGBTI+.

Défice na formação

Um dado que nos deve fazer refletir é a total ausência de questões LGBTI+ na formação académica e curricular de grande parte destes/as profissionais, com mais de metade a admitir nunca ter feito, posteriormente, uma atualização de conhecimentos ou uma formação específica para o trabalho com crianças e jovens LGBTI+.

Encontramos ainda a perceção transversal a todas as áreas de que muitas instituições em que estes/as profissionais trabalham não são recetivas ao tema da diversidade sexual e de género na infância e juventude. A falta de recursos disponíveis nas instituições sugere que estes profissionais tenham de procurar por iniciativa própria o apoio de que necessitam para o exercício das suas funções nesta vertente, o que sucede apenas de modo residual.

Destes resultados torna-se evidente a necessidade de formação em diversidade sexual e de género direcionada a profissionais de todas as áreas. Com efeito, entre os fatores que mais dificultam a intervenção, surgem destacados a falta de formação para trabalhar especificamente com crianças e jovens LGBTI+ (81.2%), a falta de conhecimento sobre práticas afirmativas/recursos LGBTI+ (78.3%), a falta de conhecimento por parte das/os técnicos/as acerca dos serviços disponíveis (69.8%) e de questões LGBTI+ em geral (66.7%), e a falta de serviços para crianças LGBTI+ (60.9%). E, de facto, 40% dos/as profissionais que responderam ao Inquérito desconhece a existência de qualquer serviço local, regional ou nacional dirigido a crianças e jovens LGBTI+.

Estes dados são corroborados pelo Inquérito LGBTI da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA, 2020) que apontam para que 92% das/os jovens entre os 15 e os 17 anos não reporte oficialmente agressões. Parece haver uma sensação de falta de segurança nos serviços e nos profissionais, facto que dificulta uma intervenção integrada.

Educação

Um dado merecedor de atenção é o facto de 73% dos profissionais de Educação nunca ter recebido qualquer formação que lhes permita apoiar um/a estudante LGBTI+ em meio escolar. Igualmente alarmante será o facto de mais da metade destes profissionais revelar não ter acesso a recursos ou políticas específicas para crianças LGBTI+ na instituição onde trabalha, a fim de garantir uma intervenção abrangente e adequada.

Apesar desta ausência de formação, 64% considera existirem necessidades específicas a ter em conta em relação a crianças e jovens LGBTI+ na área de trabalho em que exerce a sua atividade profissional. Entre estes/as profissionais, perto de metade assinala como problemática a ausência de representação, em manuais escolares, da diversidade de género na infância.

Não obstante os avanços legislativos, quase metade dos/as profissionais considera que legislação nacional deve ser melhorada e/ou efetivamente monitorizada de modo a proporcionar reconhecimento e proteção a estudantes LGBTI+ em ambiente escolar. A este propósito sublinhe-se que 68% concorda que os temas de género e diversidade sexual devem ser abordados nas escolas, e que essa mudança deve passar pela formação de professores (64%).

Saúde

Menos de metade dos/as profissionais de saúde inquiridos/as recebeu algum tipo de conteúdo formativo na área LGBTI+. No entanto, a maior parte indica que seu local de trabalho é geralmente recetivo a intervenções específicas na vertente da diversidade de género na infância, e 81% reconhece que é ainda possível melhorar o apoio prestado a crianças e jovens LGBTI+.

Outro dado com grande relevância ao nível da saúde é o facto de ¾ dos profissionais desta área considerar que a maior dificuldade que as crianças e jovens LGBTI+ enfrentam no acesso aos cuidados de saúde é a falta de confiança nos serviços. Urge, portanto, implementar medidas centradas na pessoa paciente, que permitam trabalhar a proximidade e a relação de confiança, para que crianças e jovens LGBTI+ entendam o consultório médico enquanto espaço seguro, inclusivo e livre de violência. A este propósito note-se a importância das questões relacionadas com saúde mental, considerada uma área de grande carência de serviços para crianças e jovens LGBTI+, a par da intervenção com famílias destas crianças (46%) e o apoio social (43%).

Intervenção familiar

A grande maioria dos/as profissionais na área da intervenção familiar não presta apoio específico a crianças e jovens LGBTI+.

Apenas 16% das pessoas respondentes nesta área recebeu algum tipo de formação sobre diversidade sexual e de género ao longo do seu percurso académico ou profissional, mas todos reconhecem que as questões LGBTI+ deveriam ser incluídas regularmente na formação contínua.

Media

Todas as pessoas participantes no Inquérito na área dos média reconhecem a inexistência de intervenção específica e uma ausência generalizada de trabalho direcionado para o tema da diversidade de género na infância e juventude, decorrente do facto de os meios de comunicação social não serem recetivos ao assunto. Entre os obstáculos a um trabalho inclusivo da diversidade sexual e de género destaca-se a crença enraizada de que o jornalismo, para ser objetivo, deve ser neutro, o que impede a adoção de uma perspetiva de género na prática jornalística. Entre os/as profissionais de media respondentes, nenhum/a recebeu formação sobre diversidade sexual e de género, ou viu sequer o tema LGBTI+ abordado durante todo o seu percurso académico.

Espaço Público e Comunitário

Metade dos profissionais que trabalham nesta área considera a sua instituição pouco recetiva a intervenções específicas com crianças e jovens LGBTI+ e reconhece a presença de situações discriminatórias. Estes profissionais sugerem, como boas práticas a adotar, maior abertura à diversidade sexual por parte de técnicos/as e instituições, intervir em situações de comportamentos discriminatórios quando ocorrem, criar maior consciencialização acerca da diversidade sexual e de género, e fazer o mainstreaming de género e sexualidade na formação e aconselhamento profissional.

Conclusão

Após uma longa história de preconceito e discriminação consagrada juridicamente, os primeiros 20 anos do século XXI colocam Portugal na linha da frente de mudanças fundamentais em matéria de cidadania íntima, sexual e reprodutiva. Esse percurso conhece uma importante aceleração a partir do momento em que os movimentos sociais que trabalham nesta área encontram uma interlocução eficiente na Secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, cargo ocupado por Catarina Marcelino, entre 2015 e 2017, e Rosa Monteiro, desde então. Com este apoio institucional, temos vindo a assistir a um trabalho consistente na transversalização de medidas de não-discriminação, sobretudo nas áreas da Educação e Saúde, com o envolvimento notável e sem precedentes dos respetivos Ministérios, e a aprovação de planos específicos visando assegurar condições de maior justiça para pessoas LGBTI+. Destaque-se, a este respeito, a Estratégia Nacional Portugal +Igual, que identifica a igualdade e a não discriminação como condições para a construção de um futuro sustentável para o país.

No entanto, a eficácia destas medidas depende do modo como forem efetivamente implementadas no terreno, estando frequentemente refém da boa vontade de profissionais e serviços que continuam a revelar fortes défices e/ou que se confrontam com desafios e resistências que importa superar. Esta necessidade assume maior

relevo na vertente que se reporta a crianças e jovens da Lei da Autodeterminação de Género.

Em suma, a falta de confiança nos serviços confirma a urgência de criar respostas específicas por parte das instituições e, por conseguinte, considerar os/as profissionais como agentes de proximidade face a populações vulneráveis. Este estudo torna evidente que existe ainda um caminho por fazer no que respeita à criação e promoção de espaços seguros para as crianças LGBTI+, daí que o sucesso da Lei da Autodeterminação de Género dependa da implementação de planos de ação LGBTI+ nas instituições, de modo a apoiar uma intervenção eficaz junto destas crianças e jovens.

Concluímos que a falta de formação específica sobre diversidade sexual e de género com um enfoque na infância prejudica a capacidade dos/as profissionais em todas as áreas abrangidas em implementar as medidas previstas na Lei de Autodeterminação. A falta de recursos e uma desatenção estrutural face aos temas de género são apontados como principal causa desta ausência de formação.

Face a este cenário, recomendam-se planos de ação LGBTI+, apostados na formação curricular e contínua, direcionados aos vários setores profissionais, que validem institucionalmente este tipo de conhecimento e intervenção centrada na infância sem deixar que a transformação se opere no tereno graças à boa vontade de profissionais que querem aprender mais. Tal esforço requer o empenho continuado da tutela no desenho da monitorização e acompanhamento da Lei de Autodeterminação, nomeadamente através do envolvimento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, a par dos Ministérios da Educação e da Saúde cujo trabalho nesta área é já reconhecido.

Caso contrário, corremos o risco de ter um enquadramento jurídico progressista que garante proteção à criança com diversidade de género paralelamente à manutenção de serviços não capacitados para implementar a Lei de Autodeterminação, deixando estas crianças e suas famílias num impasse insustentável. Recordamos que o dever de garantir o superior interesse das crianças se reporta a todas, incluindo crianças com diversidade de género. 

Autor: 
Ana Cristina Santos
Investigadora Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.