Dermatite Atópica moderada a grave: novos tratamentos são seguros e eficazes, mas não chegam a todos
Embora tenha um enorme impacto socioeconómico, afetando não só a qualidade de vida dos doentes, mas apresentado implicações até a nível laboral, o que explica que a Dermatite Atópica continue a ser subvalorizada?
Podemos identificar vários motivos. Em primeiro lugar, o facto de ser frequentemente catalogada como “apenas uma doença de pele”, o que conota uma valorização meramente estética, quando na verdade é uma doença associada a vários sintomas debilitantes e impacto multidimensional na qualidade de vida da pessoa que sofre. Em segundo lugar, a prevalência significativamente mais baixa das formas graves comparativamente às formas ligeiras. Infelizmente, uma proporção não desprezível de crianças e adolescentes com dermatite atópica, e uma grande proporção de adultos, sofre de formas moderadas e graves da doença, que não devem ser comparadas às formas mais ligeiras, felizmente bastante mais comuns e facilmente tratáveis, muitas vezes conhecidas pela sociedade por termos como “pele atópica”. Em terceiro, a mensagem, que hoje se sabe muitas vezes incorreta, que a doença “vai passar com a idade”, traduzindo algo transitório e não uma doença que vai acompanhar a vida e que vai influenciar, negativamente, uma boa parte das decisões do dia a dia (como o que vestir, se vai à praia ou não, se pode fazer determinado trabalho ou não para não). Na verdade, muitos doentes vão ter doença toda a vida ou estão em risco que a doença volte a surgir, de novo, na idade adulta.
Para sensibilizar a população para uma doença que se estima que afete 4,4 milhões de europeus, peço-lhe que nos explique que patologia é esta? Quais as suas causas e quais a principais manifestações clínicas?
A dermatite atópica é uma das doenças inflamatórias crónicas de pele mais comuns. É uma doença que não têm uma causa única, pelo contrário, é multifatorial, e é comum haver antecedentes familiares de dermatite atópica, rinite alérgica ou asma. Sumariamente, na Dermatite Atópica temos:
1. uma pele com falência de barreira (é como se faltasse o cimento que une os tijolos desse “muro” que é a pele, que nos deve proteger do exterior);
2. um sistema imunitário excessivamente reativo, perpetuando uma inflamação crónica e
3. um microbioma da pele alterado que contribui para agravar a inflamação e a disfunção de barreira.
A conjugação destas 3 componentes, influenciada fortemente quer por fatores genéticos, quer por fatores ambientais (como a poluição ou a exposição a agentes irritativos em atividades laborais ou de lazer), leva ao desenvolvimento e/ou agravamento da doença.
Na dermatite atópica é muito característica a comichão (prurido), muitas vezes diária e que leva a noites mal dormidas. São também comuns a dor e o ardor (até o contacto com a água no banho é doloroso). As lesões são visíveis e resultantes da inflamação da pele – vermelhidão (eritema), descamação, exsudação, escoriações (feridas resultantes do ato de coçar a pele) e liquenificação (aumento da espessura da pele). As lesões tendem-se a localizar na face, nas crianças mais jovens, e nas pregas dos cotovelos e dos joelhos, no pescoço e nas mãos, no caso dos adolescentes e adultos. Nas formas moderadas e graves, outras partes do corpo ou mesmo a totalidade da pele pode estar envolvida, levando por vezes a internamento hospitalar.
Por que motivo são as crianças as mais atingidas pela Dermatite Atópica?
A história natural da dermatite atópica é muito complexa e permanecem por clarificar vários aspetos. Ainda não está esclarecido o motivo pelo qual a dermatite atópica se desenvolve mais frequentemente na idade pediátrica ou pelo qual a doença persiste para a idade adulta em muitas crianças e adolescentes, mas não em outras. É importante, contudo, salientar que a remissão da doença não invalida a sua reativação futura. São vários os doentes que entraram em remissão na infância e estiveram sem doença ativa na sua adolescência, apenas para voltar a sofrer da mesma na idade adulta, muitas vezes com formas graves.
Qual a sua relação com as alergias respiratórias ou alimentares?
Esta é uma relação muito importante. A dermatite atópica é com frequência o primeiro passo da “marcha atópica”, uma marcha imunológica em que primeiro se desenvolve a dermatite atópica e mais tarde as alergias alimentares, asma e/ou a rinite alérgica. Esta relação é tão importante que nos leva mesmo a teorizar – e tem surgido evidência nesse sentido – que o tratamento precoce, dirigido, da dermatite atópica poderá mitigar, ou quiçá prevenir, o desenvolvimento destas comorbilidades. O conceito de modificação da marcha atópica é ainda embrionário e em investigação, mas em ampla discussão na comunidade científica atualmente. Os próximos anos deverão trazer novidades neste campo.
Esta, quando persiste ou surge pela primeira vez em idade adulta tende a ser mais grave, porquê?
Esta questão é mais uma vez interessante, mas difícil de responder sem especular dada a complexidade dos mecanismos da doença. Para simplificar, posso dizer que que a dermatite atópica do adulto é, do ponto de vista de mecanismos de doença, consideravelmente diferente da dermatite atópica da criança. Tal como a dermatite atópica do doente europeu é diferente do doente asiático. É por este motivo que dizemos que é uma doença muito heterogénea e que o termo “dermatite atópica” engloba muitas “doenças diferentes” (do ponto de vista celular e molecular) que confluem para formas de apresentação semelhantes (do ponto de vista clínico). Ainda há muito por investigar e clarificar, mas o conhecimento científico tem progredido de forma célere nos últimos anos.
Que fatores podem condicionar o agravamento da doença e, nesse sentido, quais as principais recomendações?
A evicção de triggers enquadra-se nas medidas gerais que são importantes estabelecer para o tratamento da dermatite atópica. Alguns fatores clássicos de agravamento são os banhos prolongados com água quente, o suor, o tempo frio, a exposição a agentes irritativos (como produtos alcoólicos, detergentes). Neste sentido, recomenda-se a todos os doentes que façam banhos curtos de água tépida, usando produtos de higiene e emolientes indicados que devem ser aplicados em todo o corpo. Existem, hoje em dia, diferentes laboratórios que produzem produtos específicos para doentes com dermatite atópica, podendo os doentes e/ou os cuidadores consultarem o site da ADERMAP (Associação Dermatite Atópica Portugal) para recomendações específicas nesse sentido (ver o “Programa CuiDAr”). Uma nota especial para uma dúvida frequente dos pais com dermatite atópica: a relação entre a dermatite atópica e a natação recreativa em piscinas, comum não só no Verão, mas também no Inverno com as atividades lúdicas escolares. O cloro é um potente desinfetante utilizado para manter a água saudável e limpa, sendo efetivamente um trigger potencial para o agravamento da dermatite atópica. Embora não se procure limitar a atividades lúdicas das crianças, recomenda-se o uso intensivo de emolientes antes de frequentar a piscina (30 minutos antes, por exemplo) e, imediatamente após sair, proceder à higiene e hidratação habituais (com os produtos apropriados).
Quais as principais complicações associadas à Dermatite Atópica?
Além dos sinais e sintomas da própria doença, algumas das complicações mais comuns são as:
- infeções, tanto bacterianas (impetigo por exemplo) como virais (moluscos contagiosos, entre outras)
- inflamação ocular, como a queratoconjuntivite atópica
- complicações psicológicas, como a ansiedade, isolamento social, baixa auto-estima e na idade pediátrica, o bullying
- baixo rendimento escolar e laboral, associado ao prurido diário e noites mal dormidas
no caso dos adultos com formas mais graves da doença, discute-se hoje as potenciais complicações cardiovasculares, devido à inflamação sistémica em curso, particularmente quando à dermatite atópica não está controlada
Como é feito o diagnóstico da Dermatite Atópica? Sabendo que o diagnóstico desta doença pode demorar cerca de 2 anos a chegar e que 10% dos doentes referem que o seu diagnóstico demorou mais de 6 anos até estar concluído, o que falha na identificação desta doença?
O diagnóstico é quase exclusivamente é clínico, baseando-se na presença de um conjunto de sinais e sintomas que conjugados com a história clínica permite-nos identificar o doente com dermatite atópica. Esporadicamente, é necessário recurso a outro tipo de exames (biópsia cutânea ou provas epicutâneas, por exemplo) para suportar o diagnóstico e excluir hipóteses alternativas.
Felizmente, o diagnóstico de dermatite atópica é com frequência fácil de realizar para o dermatologista. Um dos grandes limitantes é a acessibilidade aos Serviços de Saúde em Dermatologia, particularmente no Sistema Nacional de Saúde, o que coloca atraso no diagnóstico e tratamento.
O que são casos moderados e graves de DA?
A definição rigorosa baseia-se no Eczema Score Severity Index, um score médico de gravidade de 0 a 72 pontos que se baseia num conjunto de sinais presentes por extensão de área topográfica atingida pela doença. Contudo, as escalas não veem doentes, pelo que precisamos também incluir dados de qualidade de vida, qualidade de sono, sintomas (prurido, dor), envolvimento de áreas sensíveis e muito visíveis (como a face e as mãos) e/ou falência a tratamentos prévios para classificar aquele doente em particular como moderado ou grave.
Como se trata a Dermatite Atópica?
Na doença ligeira e limitada, a evicção de triggers, o uso regular de emolientes e de produtos de higiene adequados, bem como o uso proativo de anti-inflamatórios tópicos (corticosteroides tópicos e inibidores tópicos da calcineurina) é uma estratégia habitualmente eficaz.
Contudo, existe uma grande proporção de doentes com formas moderadas ou graves, que não respondem aos cuidados gerais e tópicos e estes se mostram insuficientes para controlar a doença a longo prazo. Nestes casos, para recuperar a qualidade de vida roubada pela doença, é necessário intervir com tratamentos sistémicos.
Nos casos em que o doente não responde aos tratamentos de primeira-linha, quais as opções? Que novidades terapêuticas existem? E quais os principais desafios nesta área?
Quando as medidas gerais e tratamentos tópicos são insuficientes, torna-se necessário recorrer a tratamentos sistémicos. Neste campo e até recentemente, tínhamos à nossa disposição os imunomoduladores clássicos, como ciclosporina e o metotrexato, os quais apresentam eficácia significativa em alguns utentes, mas potenciais efeitos adversos que os tornam inadequados para controlo a médio e longo prazo. Precisávamos de terapêuticas mais seletivas, eficazes e seguras que nos permitissem controlar a doença na sua cronicidade.
Felizmente, e apesar de ainda não haver uma cura, assistimos hoje a uma promissora evolução terapêutica na Dermatite Atópica. Podemos mesmo apelidar de “revolução” terapêutica, dada a mudança de paradigma observada. Esta revolução iniciou-se em 2017 com a aprovação pela Agência Europeia do Medicamento do primeiro biotecnológico para a dermatite atópica; seis anos depois, em 2023, dispomos de 2 biotecnológicos e 3 moléculas orais aprovados por esta entidade reguladora europeia. Todos estes fármacos são mais seletivos para a doença e contam com dados robustos de eficácia e segurança validados por múltiplos ensaios clínicos e milhares de doentes estudados. Os resultados de vida real já disponíveis são igualmente motivadores e reproduzem (ou ultrapassam) os dados dos ensaios clínicos. Felizmente, hoje conseguimos devolver a qualidade de vida, de forma segura, a um grande número de doentes com formas mais graves de dermatite atópica.
Embora os novos tratamentos para estes casos sejam seguros e eficazes, nem todos os doentes têm acesso aos mesmo. Porquê? O que pode ou deve melhorar neste sentido?
Em Portugal, temos já vários doentes com formas mais graves a beneficiarem desta inovação terapêutica através do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Só na Consulta Multidisciplinar de Dermatite Atópica do Serviço de Dermatologia do Hospital de Santo António dos Capuchos serão perto de 250 doentes. Contudo, nem todos os hospitais do SNS dispõem de recursos humanos suficientes para criar este tipo de consultas e nem todas as áreas geográficas têm acessibilidade adequada ao SNS (há centros hospitalares que não dispõem sequer de Serviço de Dermatologia). Para combater esta iniquidade de acesso à inovação terapêutica, algumas soluções poderiam passar pelo estabelecimento de protocolos e/ou redes de referenciação entre centros hospitalares e alargar a acessibilidade aos prestadores privados, para que esta inovação terapêutica possa chegar a quem dela precisa para melhorar a sua qualidade de vida.
No âmbito do Dia Mundial da Dermatite Atópica, que recomendações gostaria de deixar?
Gostaria sobretudo de deixar uma mensagem de esperança. A Dermatite Atópica tem um impacto muito significativo na qualidade de vida e muitos doentes desistiram de procurar ajuda, frustrados com a desvalorização da doença e com a ineficácia dos tratamentos previamente disponíveis. Muitos andavam de “corticosteroide em corticosteroide”, inclusive orais ou injetáveis, com todos os efeitos adversos associados a esta abordagem.
Felizmente, hoje temos várias alternativas terapêuticas inovadoras, mais seletivas para os mecanismos da doença e mais eficazes, com um perfil de segurança robusto. Se têm dermatite atópica ou conhece quem tenha, saiba que há tratamento. Não hesite em pedir ajuda ao seu dermatologista.