Entrevista | Arsénio Santos, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF)

Colangite Biliar Primária: «com os meios que temos ao dispor, a maioria dos doentes fazem uma vida normal»

Atualizado: 
08/09/2023 - 08:52
Fadiga e comichão na pele estão entre os principias sintomas da Colangite Biliar Primária, uma doença crónica cuja causa ainda está por identificar, que cursa, habitualmente, sem grandes complicações, mas que, sem o diagnóstico e o tratamento atempado, pode evoluir para hepática terminal. Para assinalar o Dia Internacional da Consciencialização para a Colangite Biliar Primária, que se assinala a 10 de setembro, Arsénio Santos, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF) reforça a importância de se estar atento aos sinais e “sempre que se suspeitar de um caso de Colangite Biliar Primária, o/a doente deve ser referenciado/a para um centro habilitado a tratar doenças hepáticas”.

Estima-se que, em Portugal, possam existir entre 500 a 1000 pessoas com Colangite Biliar Primária. Uma doença sem cura, assintomática e da qual não se ouve falar. Assim, e para ajudar a compreender esta patologia, começo por lhe perguntar em que consiste e, sabendo que as causas ainda não são conhecidas, a que fatores se pensa que pode estar associada?

Começaria por dizer que, extrapolando para nós dados conhecidos do norte da Europa, acredito que existirão em Portugal muito mais casos, diria pelo menos 2 mil. Além de muitos dos casos já diagnosticados estarem dispersos por muitos médicos e não termos uma contabilização fidedigna da realidade nacional, acredito que bastantes casos estão ainda por diagnosticar. Trata-se de uma doença que resulta da inflamação crónica das vias biliares nos seus ramos localizados ao interior do fígado, que é provocada por um processo autoimune (o organismo ataca uma parte normal de si próprio). A razão por que isso acontece é desconhecida, sabemos que a doença pode estar associada a episódios prévios de infeção urinária ou a exposição a certos tóxicos, mas na prática clínica não identificamos habitualmente nenhum fator.

Por que motivo são as mulheres as mais atingidas por esta doença?

Esta é uma questão ainda nebulosa, mas podem estar em causa fatores hormonais: o ambiente hormonal típico do sexo feminino poderá ser facilitador da manifestação da doença.

A partir de que idade é, habitualmente diagnosticada?

Manifesta-se em regra entre os 35 e os 60 anos de idade.

Embora se estime que uma grande percentagem dos casos, e durante muitos anos, esta tenha uma evolução assintomática ou silenciosa, quando surgem as primeiras manifestações da doença, que manifestações são essas? A que sinais devemos estar atentos?

Os sintomas mais comuns são o prurido e a fadiga. Outros sintomas, tais como a icterícia, o aumento de volume do abdómen ou equimoses fáceis podem surgir numa fase mais tardia da doença e significam que houve evolução desfavorável. Contudo, é de salientar que a maioria das pessoas com esta doença não tem sintomas no momento do diagnóstico. Na verdade, muitas destes doentes só são diagnosticados, porque apresentam alterações hepáticas nos testes de rotina ao fígado.

Como é feito o seu diagnóstico? Existem análises específicas que podem facilitar a identificação da doença?

A Colangite Biliar Primária é diagnosticada com base em dois parâmetros alterados nas análises sanguíneas: um valor aumentado da fosfatase alcalina e a existência de anticorpos anti-mitocondriais positivos. Muito raramente é necessário para o diagnóstico fazer uma biopsia do fígado.

De um modo geral, qual o prognóstico da Colangite Biliar Primária? Quais as principais complicações associadas?

Numa boa parte dos doentes pode não haver evolução para formas graves da doença e a esperança de vida pode ser similar à das pessoas saudáveis. Há vários parâmetros que ajudam a prever essa evolução, sendo o mais importante o valor da fosfatase alcalina: quanto mais próximo do normal conseguirmos manter o seu valor, melhor o prognóstico. Mas, noutros casos, há risco de progressão da doença, com evolução para fibrose hepática, cirrose, insuficiência hepática e morte. Os estudos mostram que os doentes com níveis anormalmente elevados de fosfatase alcalina têm maior risco de transplante hepático e de morte, enquanto os doentes com níveis mais baixos têm melhores resultados clínicos. Neste aspeto, o tratamento tem um papel decisivo…

Sendo a cirrose uma das principais consequências, que cuidados deve ter o doente quando esta já está presente?

Quando já existe cirrose, o tratamento continua a ser importante. Há que tentar retardar o mais possível a descompensação hepática e evitar as suas complicações: a ascite, a hemorragia digestiva e a encefalopatia hepática, entre outras. E é muito importante nessa fase evitar outros fatores de agressão hepática, como certos medicamentos (anti-inflamatórios, por exemplo) e a ingestão de álcool.

Tratando-se de uma patologia para a qual não existe cura, em que consiste o seu tratamento?

O tratamento de primeira linha é o ácido ursodesoxicólico, fármaco que usamos há décadas e com o qual já existe larga experiência. É um tratamento geralmente bem tolerado e eficaz em cerca de 60% dos casos. Nos restantes cerca de 40% de doentes que têm uma resposta inadequada ao ácido ursodesoxicólico, temos atualmente outro medicamento, o ácido obeticólico, que deve ser tomado em associação com o anterior. E, em casos ainda mais resistentes, temos ainda outras possibilidades, como os fibratos que, não estando ainda formalmente aprovados nesta doença, têm estudos que mostram resultados promissores. O tratamento desta doença é, em princípio, para manter durante toda a vida.

O que acontece quando os tratamentos não são bem tolerados pelo paciente? É nestes casos que o transplante hepático pode ser a única opção?

Uma intolerância que impeça, de todo, o uso destes fármacos é rara. E, como foi dito anteriormente, já existem várias opções. Mas, é verdade, os casos em que não conseguirmos usar os tratamentos disponíveis correm maior risco de evolução desfavorável. O transplante hepático só é necessário quando se atinge a fase de cirrose ou quando a doença provoca um prurido intolerável e intratável por métodos mais comuns, situação que é rara.

Sabendo que durante muito anos (décadas) não houve progressos nesta área, o que mudou, entretanto?

É verdade. Durante décadas, tivemos apenas o ácido ursodesoxicólico que, sendo excelente, não era suficiente numa parte dos doentes. Mas, em 2016, foi aprovado o ácido obeticólico. E, como já foi referido, em breve poderemos ter outras opções formalmente aprovadas. Mas nos últimos anos, aumentou muito o nosso conhecimento desta doença e sabemos hoje melhor como lidar com ela. E, nos casos que correm pior, temos hoje a possibilidade de recorrer ao transplante de fígado.

De um modo geral, de que forma esta patologia impacta a vida do doente?

Atualmente, com os meios que temos ao dispor, a maioria dos doentes fazem uma vida normal. As situações mais desconfortáveis e, mesmo, dramáticas, são os casos, felizmente menos frequentes, em que os doentes mantêm prurido, apesar do tratamento (tratamento da doença e tratamento específico para o prurido). O prurido é um sintoma muito incapacitante…. Mais frequente é a astenia (cansaço fácil) que também influi na qualidade de vida, mas que os doentes toleram melhor.

No âmbito do Dia Mundial da Colangite Biliar Primária, quais as ideias-chave que devemos reter sobre esta patologia?

Que é importante diagnosticar. Se possível, na fase em que a doença é ainda assintomática. E isso é possível se forem valorizadas e esclarecidas pequenas alterações por vezes detetadas nas análises hepáticas, que devem sempre ser incluídas nas avaliações analíticas de rotina. E, nesta doença, é particularmente importante a fosfatase alcalina.

Segunda mensagem: sempre que se suspeitar de um caso de Colangite Biliar Primária o/a doente deve ser referenciado/a para um centro habilitado a tratar doenças hepáticas, no sentido de, confirmado o diagnóstico, iniciar precocemente o tratamento, que deve ser o mais adequado ao caso concreto.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF)