Doença neurológica

«Cada criança com epilepsia é única»: o tratamento e os cuidados a ter

Atualizado: 
01/06/2023 - 07:57
A Epilepsia é uma das principais causas de doença crónica na infância, estimando-se que, em Portugal, possa afetar uma em cada 100 crianças. E, muito embora, nem sempre seja possível determinar a causa desta condição, sabe-se que qualquer lesão que atinja o cérebro pode deixar uma "cicatriz" que é um potencial ponto de partida para crises epiléticas. Com a ajuda de Cristina Pereira, Neuropediatra e Neurofisiologista do Hospital Pediátrico do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), mostramos que apesar do tratamento poder ser um desafio, hoje, existem várias opções terapêuticas. “Cada criança com epilepsia é única” e muitos casos são autolimitados, resolvendo-se antes da idade adulta.

“A Epilepsia é uma doença neurológica crónica caracterizada pela existência de crises epiléticas recorrentes e não provocadas. As crises epiléticas resultam de descargas elétricas anormais e excessivas no cérebro, manifestando-se através de sintomas clínicos motores e não motores”, começa por explicar a neuropediatra, acrescentando que, de acordo com a Liga Internacional Contra a Epilepsia, existem 6 grandes grupos de causas associadas:·       causa estrutural (ex. tumores cerebrais, malformações do desenvolvimento cortical); causa genética (ex. síndrome do cromossoma 20 em anel);

  • causa infeciosa (ex. meningoencefalite);
  • causa metabólica (ex. epilepsia dependente de piridoxina);
  • causa imunológica (ex. síndrome de Rasmussen);
  • e de causa desconhecida.

Os sintomas da epilepsia são variáveis e dependem da região do cérebro afetada, sublinha a especialista. “Como referido anteriormente, as crises epiléticas resultam de descargas elétricas anormais numa determinada região do cérebro, causando alterações clínicas que podem incluir perda de consciência (ex. ausências), manifestações motoras (ex. clonias, automatismos) e não motoras (ex. sintomas autonómicos, sensitivos). No entanto, a epilepsia não se resume apenas às crises epiléticas. Entre as crises, também podem ocorrer alterações em várias esferas, como cognitivas, comportamentais, psicológicas e sociais”, exemplifica.

Em idade pediátrica, refere Cristina Pereira, as crises mais comuns “são as ausências infantis que se caracterizam por episódios de paragem de atividade e perda da consciência, por vezes acompanhados de automatismos”. “Também são frequentes as crises das epilepsias autolimitadas que ocorrem durante o sono e se manifestam com clonias da face e incapacidade de articular palavras, mantendo-se a consciência. No entanto, as crises mais graves são aquelas que se iniciam no primeiro ano de vida, como os espasmos epiléticos. Estes espasmos consistem em contrações súbitas e repetidas dos membros após o despertar, associadas a irritabilidade e a paragem ou regressão do desenvolvimento”, acrescenta.

O desafio do diagnóstico e tratamento da epilepsia em idade pediátrica é a possibilidade da ocorrência de comorbilidades

“As crianças com epilepsia apresentam mais frequentemente dificuldades de aprendizagem, alterações do comportamento, perturbação de hiperatividade e défice de atenção, autismo e patologia psiquiátrica”, pelo que o diagnóstico e tratamento adequados e atempados da epilepsia é extremamente relevante, uma vez que podem contribuir para a redução da incidência destas patologias associadas.

Segundo Catarina Pereira, o diagnóstico é clínico, devendo contar com o apoio de exames complementares de diagnóstico, como o electroencefalograma (EEG) e de um exame de imagem cerebral (ex. ressonância magnética) que irá permitir classificar o tipo de crises, o tipo de epilepsia e principalmente identificar a sua causa. “É essencial obter uma história clínica detalhada. É necessário verificar se há crises epiléticas recorrentes e não provocadas, descrever as suas características e fatores desencadeantes, além de identificar fatores de risco para epilepsia (intercorrências na gravidez/parto, traumatismos cranioencefálicos, infeções do sistema nervoso central, história familiar de epilepsia)”, sublinha ainda.

No que diz respeito ao tratamento, embora existam casos que podem não responder ao mesmo, existem, hoje, várias opções disponíveis. “O melhor tratamento será sempre aquele que se adequar especificamente a cada criança, tendo em conta o tipo de epilepsia, a frequência das crises epiléticas, a comorbilidade, entre outros fatores”, reforça explicando que “existem diversos medicamentos antiepiléticos com um bom perfil de segurança, e que podem ser escolhidos de acordo com o tipo de crise epilética /epilepsia”.

“É importante destacar que existem formas de epilepsia que podem ser tratadas com vitaminas como é o caso da epilepsia dependente de piridoxina”, sublinha.

A especialista destaca ainda que uma parte significativa das epilepsias e síndromes epiléticos da infância “são autolimitados e resolvem-se antes da idade adulta”. “No entanto, as epilepsias refratárias e as encefalopatias epiléticas que estão associadas a deficiência intelectual ou perturbações motoras, como a paralisia cerebral, tendem a persistir na idade adulta. Nestes casos, pode não haver cura, mas a criança pode experimentar períodos em que há uma melhoria no controlo das crises”, afirma.

Nestes casos, em que a doença não responde a um ou mais medicamentos, pode recorrer-se a outros tratamentos, como por exemplo:

a) Cirurgia da epilepsia: em alguns casos, a cirurgia pode ser uma opção. O objetivo é remover ou desconectar a área do cérebro onde as crises se originam. Isso pode ajudar a reduzir ou até mesmo eliminar as crises epiléticas.

b) Estimulação do nervo vago: é um procedimento no qual um dispositivo é implantado no corpo, geralmente no peito, e envia impulsos elétricos regulares ao nervo vago e ao cérebro. Esses impulsos ajudam a diminuir a frequência e a intensidade de alguns tipos de crises epiléticas.

c) Dieta cetogénica: é uma dieta rica em gorduras e pobre em carboidratos que tem mostrado ser eficaz no controlo das crises epiléticas. A dieta cetogénica altera o metabolismo cerebral, reduzindo a atividade epilética.

d) Canábis Medicinal/Canabidiol: o Canabidiol (CBD) é um composto encontrado na planta de cannabis e tem sido utilizado como tratamento complementar em casos de epilepsia refratária. Alguns estudos têm mostrado que o CBD pode reduzir a frequência das crises em certos tipos de epilepsia.

Segundo a especialista, existem vários desafios associados a esta área. “A investigação de uma epilepsia pediátrica é um desafio, pois existem várias etiologias que podem estar subjacentes. É necessário definir corretamente o síndroma eletroclínico para orientar a investigação e o tratamento. Também o tratamento é um desafio pois deve ser individualizado: cada criança com epilepsia é única, e o tratamento deve ser personalizado de acordo com o tipo de epilepsia, a gravidade das crises, as comorbilidades e outros fatores. Encontrar a combinação adequada de medicamentos antiepiléticos e outras terapias é um desafio importante”, explica.

Em todo o caso, reforça que o prognóstico da epilepsia pediátrica depende de diversos fatores. “Alguns dos principais elementos que influenciam o prognóstico são: o tipo de epilepsia, a idade de início, a etiologia subjacente, a resposta ao tratamento, as comorbilidades e a adesão ao tratamento”, afirma reforçando que hoje em dia já existem novas opções para o seu tratamento: “existem novos fármacos antiepiléticos, novas terapias não farmacológicas (ex. dieta cetogénica), técnicas de cirúrgia da epilepsia minimamente invasivas (ex. termo-ablação por laser) e a possibilidade de medicina de precisão, incluindo terapia génica”.

Após o diagnóstico, que cuidados a ter?

“Os aspetos mais dramáticos das crises epiléticas são a sua imprevisibilidade”, afiança a médica especialista. “Isso implica que a criança e a sua família estejam constantemente em alerta, pelo menos até se sentirem seguros com a medicação”, acrescenta.

De acordo com Cristina Pereira, os cuidados a ter vão depender do tipo de epilepsia e por consequência, do tipo de crises epiléticas. “As crises com queda brusca ao chão ou convulsões requerem uma alteração do ambiente em termos de segurança diferente daquela necessária para crianças com crises não convulsivas, em que elas podem agir de forma automática, com comprometimento total ou parcial da consciência. Nas crianças com crises durante a noite, o medo dos pais de não detetarem uma crise durante o sono leva-os a colocar a criança a dormir na cama dos pais, o que não é recomendado”, revela.

Para além da correta administração da medicação, sublinha: “é aconselhado às crianças com epilepsia evitar alguns fatores que possam facilitar a recorrência das crises, como uma higiene do sono inadequada. Se as crises não estiverem totalmente controladas, e após aconselhamento do médico assistente, é desaconselhada a prática de mergulho em profundidade, alpinismo e paraquedismo. Em outros desportos, como desportos náuticos, podem ser necessárias precauções extras, como a prática em conjunto com alguém que esteja ciente da doença”.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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