Entrevista

Erro médico: «o apoio aos doentes e seus familiares deve ser a prioridade» e estender-se aos profissionais de saúde

Atualizado: 
21/02/2018 - 16:23
Qual a diferença entre erro médico e evento adverso? Erro médico pode ser confundido com negligência médica? Para entendermos cada um destes termos, estivemos à conversa com o coordenador do manual “Competências Clínicas Práticas e Preparação para OSCE” (ed. LIDEL) e especialista em Oncologia Médica, Luís Castelo-Branco.

AdS: O que se pode entender por erro médico e evento adverso?

Um erro médico é uma falha, não intencional, que ocorre numa ação que é previamente planeada para se atingir determinado resultado. Ou seja, um desvio ou engano de um plano de cuidados previamente estabelecido, que resulta ou tem potencial em resultar em dano para o paciente.

Já o termo «evento adverso» é mais abrangente, englobando todo o tipo de incidentes que causam dano ao paciente e que estão relacionados com os cuidados que lhe são prestados e não com o curso da sua doença.

O erro médico é um dos exemplos que pode contribuir para um evento adverso, mas este não tem de ser necessariamente uma consquência de um erro.

AdS: Qual a diferença entre erro médico e negligência médica? São termos que facilmente se confundem? Porquê?

O erro médico, como referido anteriormente, pode ser traduzido numa falha, engano ou lapso de um plano que vai prejudicar o resultado esperado. No erro médico pressupõem-se que foram realizados todos os cuidados inerentes ao processo em causa e tomadas todas as devidas providências para o plano previamente estabelecido, no entanto, ocorre um desvio indesejado desse plano. Este erro pode acontecer a qualquer profissional diligente e, habitualmente, não está relacionado com a violação do dever ou dos cuidados daquele profissional.

No caso da negligência médica ocorre uma violação do dever e dos cuidados que são da responsabilidade do profissional e para os quais ele está capacitado. Ou seja, está relacionado com o incumprimento das regras ou dos cuidados médicos, transgressão do dever e pressupõe a existência de um tipo de culpa ou de atuação ilícita.

Como podemos perceber pelas suas definições, são termos que facilmente se confundem, até porque, na prática, nem sempre é fácil esmiuçar se o dano derivou de um erro não culposo ou, se pelo contrário, adveio de um erro culposo proveniente da falta de cuidado adequado e exigível a um profissional médico. E é deste dilema que é importante a abertura de processos de inquérito e investigação, para se descortinar e analisar o tipo de ocorrência.

AdS: Quais a causas de erro médico mais frequentes? E como podem estes ser classificados?

As principais causas de erro médico são lapsos ou erros de destreza, que resultam de distrações momentâneas e que fazem com que a ação planeada não seja realizada, sendo substituída por outra indesejada. Ocorrem, habitualmente, em pessoas mais experientes por défice de observância de regras, nomeadamente na repetição de atos habituais, omissões após uma interrupção, interferências, confusão na percepção, quebras na atenção.

Outro tipo de erro está associado a má aplicação de regras, por inadequada aplicação de regras boas (excesso de informação, força da regra, generalidade e adequação, rigidez na aplicação) ou má aplicação de regras más (regra mal concebida, desadequada para o caso ou mal aplicada). Os erros podem decorrer também, por exemplo, de má utilização do conhecimento.

Podem também ser classificados quanto à sua preventabilidade: erros preveníveis (os mais frequentes), potencialmente preveníveis ou não preveníveis. Ou quanto à fase do processo clínico: erros de diagnóstico, de terapêutica (os mais frequentes) ou de prevenção.

AdS: Tendo em conta que os cuidados de saúde podem ser prestados por uma equipa multidisciplinar, como se apuram responsabilidades?

Por regra há uma sucessão de pequenas falhas para que um evento adverso ocorra, e não é fruto exclusivo dum erro individual.

O modelo do queijo Suíço, proposto por James Reason em 2000, é uma interessante forma de analisar este contexto, onde para acontecer um evento grave é, por regra, necessário um alinhar de falhas, humanas e do sistema, até ocorrer esse evento. Em muitas ocasiões, acontece o designado “quase evento” em que são quebradas algumas regras de segurança mas felizmente o evento acabou por não suceder. Quer nos eventos, quer nos quase eventos é desejável uma consciencialização coletiva que falhas ou erros ocorrem a todos os profissionais, em todas as organizações, e para o seu bom funcionamento é importante haver um sistema de deteção, monitorização e correção precoce dos erros, objetivando eliminar a sua replicação futura.

Assim, por regra, deve-se evitar procurar o “bode expiatório” quando ocorre um evento grave, mas sim, procurar perceber melhor todas as falhas ocorridas que culminaram nesse evento e trabalhar, desde logo, coletivamente, no mecanismo de correção e evitar eventos futuros.

Portanto, de facto, em muitos casos há uma responsabilização coletiva, com menos ou mais responsabilidade de cada elemento, que deve ser ponderada, analisada, com eventuais punições se for oportuno, mas acima de tudo trabalhar-se para minimizar a probabilidade de erros voltarem a ocorrer.

AdS: São sempre abertos processos de inquérito ou investigação?

Na ocorrência de um evento ou quase-evento há varias formas de analisar a situação. Podem, por exemplo, ser contactadas as Ordens Profissionais respetivas para uma eventual investigação, pode ser ativado um mecanismo interno nos hospitais designado “Gestão de Risco”, que é analisado por uma equipa específica intra-hospitalar para esse fim.

Pouco comum ainda, em Portugal, é a implementação de equipas de “Segurança do Doente”, nas unidades de saúde, que analisam eventos e quase eventos ocorridos num determinado período de tempo, dialogando construtivamente sobre a possibilidade da implementação de medidas de melhoria para evitar a sua ocorrência futura. Um problema no contexto português na implementação deste tipo de mecanismos prende-se com uma excessiva cultura de culpabilização individual, que desincentiva os profissionais a partilharem com os colegas, de forma construtiva, as condições que foram propícias aos eventuais erros e que podem e devem ser corrigidas no futuro para uma melhor prestação de cuidados de saúde.

AdS: Quando dá conta da ocorrência de um erro médico ou evento adverso, o que deve o profissional de saúde fazer? 

No livro “Competências Clínicas Práticas e Preparação para OSCE”, no capítulo Segurança do Doente, os autores Ana Cláudia Carneiro e Jorge Fonseca fazem uma boa descrição de como agir nessas circusntâncias. Há um processo que deve ser seguido e, sem entrar em demasia nos detalhes explicitados pelos autores nessa obra, é importante reunir toda a informação necessária, as pessoas envolvidas, incluindo a presença do responsável superior que deve liderar o processo de comunicação.

O diálogo com os doentes e seus familiares deve ocorrer, sempre que possível, num local onde se garanta a adequada privacidade, e explicar calma e transparentemente os detalhes da ocorrência, mantendo disponibilidade para esclarecer quaisquer dúvidas nesse momento ou futuramente.

Deve ser dialogado sobre os possíveis passos clínicos futuros e, como em todas as decisões médicas, deve ser decidido em consenso com o doente ou seus tutores. Adicionalmente, é importante providenciar apoio adequado à família ou doente, como é o caso do apoio psicológico.

AdS: Já que refere que deve ser prestado apoio aos doentes e familiares, que tipo de apoio tem o profissional de saúde nestas circunstâncias?

Esta é uma excelente questão. O apoio aos doentes e seus familiares deve ser a prioridade de todas as instituições de saíde, e deve ser providenciado conforme descrito anterimente, com uma equipa dedicada, incluindo médicos, psicólogis e assistentes sociais que devem dar os cuidados necessários ao doente e familiares. Infelizmente, nem sempre existe capital humano suficiente para que esse apoio decorra conforme desejado.

Mas um aspeto muito negligenciado prende-se com o apoio adicional que pode e devia ser dado aos profissionais de saúde perante as circunstâncias de lidarem frequentemente com situação clínicas complexas, não apenas decorrente de eventuais erros mas muito frequentemente no seguimento de situações que culminaram com um desfecho clínico desfavorável, em que os doentes e seus familiares são os principais a sofrer com essas circunstâncias, mas os profissionais de saúde também são afetados. Na grande maioria das ocasiões deram o seu melhor, com adequada abordagem técnica, mas o desfecho infeliz cria um sentimento de impotência e até insegurança. É, de facto, importantíssimo maior apoio aos profissionais de saúde expostos frequentemente a estas circunstâncias, por vezes traumatizantes, e que contribuem também para os elevados índices de esgotamento que afetam muitos profissionais de saúde.

AdS: Para terminar, como se pode prevenir o erro em medicina?

Do ponto de vista institucional dever ser implementadas medidas facilitadoras de boas práticas em saúde, como por exemplo haver espaço físico, material e recursos humanos adequados às necessidades em cada organização. E esta é um responsabilidade maioritariamente do gestores da instituição.

Do ponto de vista profissional, em cada classe devem ser seguidas as boas práticas em saúde, ajustadas a cada contexto, se possível seguindo protocolos devidamente validados.

Será importante também a implementação de mecanismos de monitorização de eventuais erros, para os identificar, analisá-los e trabalhar no sentido de minimizar a possibilidade de novos eventos.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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