Opinião

Considerações éticas do Testamento Vital

Atualizado: 
17/09/2019 - 14:51
A aplicação do conhecimento científico teve um efeito avassalador nos cuidados de saúde, possibilitando a cura de doenças, até então incuráveis, a melhoria da qualidade de vida e muitas vezes, até, o adiar da morte.

Mas, a verdade é que a morte continua a ensombrar esses avanços… e apesar de vivermos até mais tarde, os últimos tempos são, por vezes, vividos com alto grau de dependência, de sofrimento, de fragilidade. É, também, frequente que a fase final de vida seja vivida sem “consciência” ou capacidade de decisão sobre as nossas ações e sobre o tipo de cuidados a que queremos estar sujeitos, ficando, nestes casos, os familiares com a responsabilidade de decidir o que fazer ou não fazer…incorrendo sempre no dilema de poder não saber o que o sujeito doente quereria nessa situação. Foi em resposta a estas situações que em Portugal se legislou recentemente as “Diretivas Antecipadas de Vontade”, também designadas como “Testamento Vital”.

Não se trata de dizer quando e como quer morrer

Testamento Vital é a possibilidade de, a qualquer momento, a pessoa consciente e maior de idade redigir um documento no qual manifesta antecipadamente a sua vontade no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, em caso de se vir a encontrar incapaz de expressar a sua vontade. Convém esclarecer que não se trata de dizer quando e como quer morrer, mas sim quais os tratamentos que entende aceitáveis ou não nos últimos tempos da sua vida. Assim, cada pessoa passa a poder decidir que futuramente não quer ser submetido a tratamentos como o suporte artificial das funções vitais (ventilação assistida); não prolongar tratamentos dolorosos que se estejam a revelar fúteis (ex. quimioterapia ou radioterapia), ou recusar medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte. Por outro lado, pode também deixar expresso que pretende “receber os cuidados paliativos adequados” de modo a ver respeitado o seu direito a um fim de vida com dignidade e livre de sofrimento desnecessário.

Aliviam-se familiares de conflitos éticos e morais

Nesta nova possibilidade legal encontramos alguns pontos positivos destacando, desde logo, a possibilidade de aliviar os familiares do conflitos ético/morais motivados pela necessidade de tomar decisões sobre a vida de alguém, que na maioria das vezes lhes é querido, mas para as quais não estão preparados. Nestes casos sofre-se quase sempre de um claro conflito de “interesses” entre a dor de deixar partir alguém que lhes é querido e a possibilidade de prolongar a sua vida mas num estado que talvez o próprio não considerasse digno. Neste sentido, o Testamento Vital pode permitir “respeitar a noção de dignidade que cada um tem, aceitar que perante a doença grave ou a grave diminuição da qualidade de vida, tanto é legítima a esperança fundada da pessoa doente, como a sua desistência igualmente fundada” (Santos, L.2011).

O Estado poderá não conseguir cumprir cuidados paliativos pedidos

Mas há também pontos negativos… Em primeiro lugar parece-nos existir uma clara desigualdade na possibilidade de cumprimento dos tratamentos recusados em relação aos tratamentos pedidos. Se recusar medidas de suporte artificial, por exemplo, é fácil de cumprir, já o mesmo não poderemos dizer do pedido de cuidados paliativos adequados, pois a rede de cuidados paliativos é claramente deficitária e só permite o acesso a uma pequena percentagem dos doentes que deles necessitam, pelo que é uma obrigação moral do legislador fazer tudo para aumentar a possibilidade de acesso a este tipo de cuidados de modo a não parecer ter-se criado uma lei com o objetivo de recusar tratamentos.

Necessária campanha grande de informação e reflexão

Por fim, parece-nos que esta lei deveria estar associada a uma grande campanha de informação e de reflexão de modo a que as futuras decisões venham a ser de facto conscientes… todos temos ao longo da vida opiniões sobre como quereremos ser tratados, sobre o que nos parece aceitável ou não num fim de vida, mas na verdade, só quando passamos pelas situações é que sabemos como reagimos, como sofremos e quais as prioridades que orientam as nossas decisões. Neste sentido, o Testamento Vital não deverá reduzir-se ao preenchimento solitário de um formulário e, é neste ponto, que nos parece que os Profissionais de Enfermagem podem, pelo menos humanizar esta lei, funcionando como interlocutores, consultores, de quem quer formular este documento. São estes profissionais quem mais horas passa à cabeceira de doentes terminais, aliviando o seu sofrimento, ouvindo os seus desabafos, os seus últimos desejos…esta experiência dota-os de uma compreensão ímpar da vulnerabilidade humana e da realidade do ser humano face à morte e, por isso, talvez fosse interessante que cada cidadão antes de tomar as suas decisões pudesse conversar, esclarecer as suas dúvidas com um Enfermeiro.

 

Carlos Torres, Enfermeiro e Professor Adjunto da Escola Superior de Enfermagem de Vila Real - UTAD

 

Referências Bibliográficas:

Santos, L. (2011). Testamento vital. O que é? Como elaborá-lo? Porto: Sextante Editora.

Lei nº 25/2012, de 16 de junho. Regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV). Diário da Republica, 136. Série I.

 

Autor: 
Carlos Torres - Enfermeiro
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.
Foto: 
Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros