Breve reflexão

Ter tempo para ter tempo?

Atualizado: 
13/05/2015 - 15:22
Confesso que há já muito tempo que me não sentava em frente ao computador para fazer fosse o que fosse. Escrever esta breve reflexão pareceu-me quase tão difícil como a composição da primária acerca das férias grandes… primeira depois do Verão eterno, quando que se tornava sobejamente difícil escolher o tema particular. Nessa altura só pensávamos em saltar ao elástico, ir de bicicleta ao rio e brincar o dia inteiro. Na rua. Sem regra e nem horário. No tempo em que havia tempo para ter tempo.

Hoje em dia parece mal termos tempo para as coisas. Não ter tempo é assunto de gente importante. Ter a vida imensamente ocupada. Uma agenda sem espacinho para nada. Sempre dum lado para o outro. Da clínica para o hospital. Da manhã para a noite. Da noite para um afazer muito importante.

Na Enfermagem, e por motivos que os enfermeiros e os seus familiares conhecem de forma profunda, acumulamos trabalhos, suprimimos as folgas, esquecemo-nos tantas vezes de dormir depois de sair de vela. Muitas vezes para não perdermos a pecinha de teatro lá na escola. Ou para acompanhar a avó a mais uma consulta. Ou para fazer as compras no supermercado. Ou sei lá. Sempre de um lado para o outro. A tentarmos cumprir da melhor forma possível os vários papéis que assumimos. O de mãe. O de esposa. O de filha. O de enfermeira. O de dona de casa… E o relógio que não pára.

E depois, sem aviso, somos arrebatados de quando em vez por um acontecimento que nos deixa em suspenso. Que nem pêndulo. E que nos faz questionar tudo. A perda de alguém de quem gostamos muito... E pensamos: “Caramba, há tanto tempo que o não ia visitar…”. Tentamos amenizar a dor e dizer assim, que nem oração: “Eu liguei... Mandei postal...”. Mas enfim… surge uma culpa arrebatadora, silenciosa, subterrânea. Irracional às vezes. Depois a vida avança.

Outras vezes recebemos uma daquelas notícias que nos atinge que nem raio. Depois entendemos que é mesmo um raio. Estilo estrela cadente. E que muda tudo para sempre. De uma forma absolutamente quente e doce. Assim foi comigo

“— É gemelar minha senhora.”

“E agora? Quem cria três filhos nos dias que correm?”... O pânico. Depois ameniza e fica um medo quase frio. A ânsia. E aos poucos o equilíbrio e um profundo agradecimento.

Quando entro na enfermaria a primeira coisa que faço, obviamente, é fardar-me. A farda é quase uma capa de Super-homem. Se bem me entendem. Quase um superpoder. Protege-nos das emoções… às vezes tão aos soluços dentro de nós. De alguma forma protege-nos. Deixa-nos à altura do desafio.

Entendo que o ser-se mãe também nos confere um poder absolutamente genuíno, astuto, quase selvagem na proteção. Profundamente enamorado. Para sempre.

Mãe de três filhos nos dias que correm… Numa história semelhante à de tantos, num país mergulhado numa crise austera e duradoura. Sentida na pele. O que me assusta?

… Sinceramente muito pouco.

… Basta perceber bem o que é essencial e acessório. Apenas isso. Mesmo. Depois tudo se torna simples e claro. E o caminho vai-se construindo de forma cuidada, apaixonada. As fraldas. As noites mal dormidas. As mamadas. Os sorrisos. Tudo assume a dimensão do fantástico.

Três filhos… Uma família coesa. Genuína. Com a profunda convicção de que a partilha faz toda a diferença. Que é o suporte. A todos os níveis. E os amigos. Os de verdade. Que vêm de longe. Que trazem laranjas e uma panela de sopa. E uma conversa. O essencial é afinal o tempo que temos para as coisas. Para os outros. Para nos sentarmos de forma tranquila, mesmo quando todas as tarefas do dia-a-dia nos tentem subtrair as horas… Basta perceber o que é essencial e acessório…

Fico às vezes quieta. A olhar os meus bebés. Um já tem sete anos. Ainda para sempre os nossos bebés. E o medo do amanhã desaparece. E fica apenas o “superpoder” mesmo sem a capa.

De forma direta… o que me assusta? Saber que quando eles tiverem a minha idade talvez já não existam rinocerontes e elefantes em estado selvagem… E tudo o que isso significa. Que as estações do ano, tal qual as conhecemos, sofrerão uma mudança brusca e talvez o mar da Nazaré, que adoro tanto, suba à marginal… Afinal até os caranguejos que aí se vendiam, e que comi até me doer a barriga em miúda, estão em extinção.

O resto? A gente consegue… ter tempo para ter tempo. O essencial e o acessório.

…Neste domingo fomos a casa de uns amigos. Cinco filhos. Subiram às árvores. Brincaram com os coelhos. Jogaram à bola. Comeram pataniscas de bacalhau como se de gelados se tratasse. À volta de uma mesa, a conversa. Há coisa mais importante que ter tempo para ter tempo? O resto a gente consegue!

Enfermeira Inês Rei Falcão Penteado

 

Nota Biográfica

Ribatejana. Do Sardoal. Enfermeira no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, no serviço de Medicina Interna, Sector E, Oncologia, Reumatologia e Hematologia.

Mestre em Enfermagem Oncológica pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Especialista e Mestre em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra.

 

Autor: 
Inês Penteado
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.