Dia Mundial da Voz

“A perda da Voz é uma experiência traumatizante”

Atualizado: 
16/04/2015 - 10:28
No dia em que se assinala o Dia Mundial da Voz, o Atlas da Saúde quis saber como se lida com a notícia de que vai perder a voz, e vai ter de reaprender a “falar”. Duas vidas, dois testemunhos.

Tenho 61 anos de idade e sou reformado por invalidez. Fui até 2007 Profissional de Seguros numa Companhia Multinacional, na qual exercia um cargo de chefia.

A minha atividade profissional não me permitia fazer desporto, no entanto sempre que podia caminhava.

Os meus hábitos alimentares, eram normais, ainda que por vezes prejudicados pelos excessivos almoços e jantares em restaurantes, decorrentes da minha atividade profissional, bebia normalmente, por vezes com algum abuso e fumava, fumava muito. Por alturas do ano 2005 moderei a bebida, mas continuei a fumar.

No verão de 2007, a gozar um período de férias na praia, comecei por ter uma impressão na garganta. Recorri a diversos Médicos de Clínica Geral, que me receitavam umas pastilhas para inflamação da garganta.

Permitam-me referir que grande parte os profissionais de Saúde, não estão sensibilizados para esta doença, de certo por falta de informação. O protelamento precoce do diagnóstico pode efetivamente prejudicar o doente e a consequente reabilitação.

Como a impressão se agravava, por vezes com dificuldade de respiração, consultei um Otorrinolaringologista. Após biopsia, de imediato me foi diagnosticado um carcinoma basalóide escamoso do seio piriforme, vulgo, cancro na laringe.

Entre as diversas soluções propostas, a laringectomia total, seria a mais radical, mas porventura com maiores resultados, se tudo corresse bem.

Em 19 de Novembro de 2007, data que recordo, por ter sido o dia que fiz 30 anos de casado com a Maria Armanda, o médico informou-nos que se optasse pela laringectomia total iria deixar de respirar pelo nariz, passar a respirar pelo traqueostoma (orifício no pescoço) e perder a voz. No entanto, tinha algumas hipóteses de poder voltar a “falar”.

A perda da Voz é uma experiência traumatizante, não só para nós, como também para a nossa família e amigos. Para a superar, temos de recorrer à linguagem, não irei dizer gestual, mas sim expressiva e, fundamentalmente, à escrita.

Nos primeiros tempos a estabilidade emocional é bastante afetada, originando situações de incompreensão e incomunicabilidade entre os mais próximos, que só serão superadas, com apoio da família e amigos, imprescindíveis para uma possível recuperação.

Por outro lado, deparamo-nos com situações, que nunca tínhamos sequer pensado que poderiam acontecer, frustrantes e difíceis de ultrapassar, tais como:

- O Laringectomizado está sozinho em casa, tocam à campainha (intercomunicador) da porta da rua, temos de abrir a porta sem puder perguntar quem lá está….

- A cancela do estacionamento do supermercado não abre por qualquer motivo. Como se chama o segurança pelo intercomunicador….

- Os telefones, fixos ou móvel, deixaram de ser acessíveis por via oral.

A única maneira de tentar superar estas questões é a reabilitação vocal, recorrendo à Terapia da Fala, uma vez mais incentivado e provocado pela família e amigos, que me obrigavam a fazer os exercícios recomendados, como ler duas a três páginas de um Jornal ou livro em “Voz alta”, por dia.

Para me obrigarem a falar, quando eu pretendia alguma coisa, nem sequer olhavam para mim, para ver se eu conseguia emitir algum som. Bom, o processo não foi fácil, mas deu resultados.

Um dia de manhã, numa das minhas rotinas, fui à tabacaria do meu bairro comprar o jornal e saudei a empregada com um “Bom dia!”.

Resposta da Senhora: “Bom dia Sr. Côdea, ouvi muito bem”.

Passaram mais ou menos seis meses emiti o primeiro som audível e percetível. A partir daí, com a inexcedível ajuda da Terapeuta de Fala - Dra. Filomena Gonçalves e da sua equipa -, comecei a falar com Voz Esofágica.

Claro que a aprendizagem se prolongou por muito mais tempo, o aperfeiçoamento continua a fazer parte dos dias de hoje. É facto que a qualidade de vida melhorou substancialmente, permitiu regressar às minhas funções sociais, fazendo quase uma vida normal, com menos decibéis….

Atualmente sou Voluntário da Liga Portuguesa Contra o Cancro, Núcleo Regional Sul, no MovAplar – Movimento de Apoio a Laringectomizados. Continuo a gerir uma carteira de seguros, ainda que pequena, angariada quando estava no ativo. Ser solidário, trabalhar, passear, partilhar as nossas vivências, fazem parte de uma recuperação de sucesso.

Em suma a falta de comunicação, o desconhecimento da doença e sua eventual recuperação, aliada aos parcos recurso económicos de alguns doentes, se não houver acompanhamento adequado e compreensivo, originam o isolamento do doente, com os inconvenientes inerentes.

A doença e sua recuperação têm de ser encaradas, sem ansiedades, com tempo e esperança.

O doente deve, na medida do possível, retomar a sua vida normal, sair, passear, enquanto não fala, munido de um bloco de notas e algo que escreva.

A perda da Voz é uma experiência traumatizante, tanto para o doente como para sua Família/Amigos, no entanto tem boas possibilidades de poder voltar a falar.

Cada caso é um caso, a força de vontade é meio caminho andado para a recuperação.

António Côdea

 

“O diagnóstico é sempre uma surpresa e um choque”

O diagnóstico é sempre uma surpresa e um choque. Tanto mais que, geralmente, não estamos nem preparados nem bem informados sobre o que nos vai acontecer e como vai ser afectada a nossa vida. E ao falar em informação tocamos num dos pontos essenciais dos nossos problemas. Voltarei a referir-me adiante.

No meu caso mantinha uma réstia de esperança de não ficar completamente “mudo”. Por isso ao tentar emitir algum som, logo após a operação, e ao verificar que nada saía…não foi fácil.

Passado pouco tempo, e por razões de segurança, fiz radioterapia. Este tratamento dificultou-me a deglutição e a Terapia da Fala.

A Terapia da Fala é a abertura de uma janela para a comunicação na medida em que permite voltar a falar ou, pelo menos a “falajar”. (Bem hajam as - ou os - Terapeutas da Fala e não só por isso). De facto, pela sua experiência e bom conselho, a minha Terapeuta da Fala foi uma ajuda decisiva e um apoio extraordinário na fase pós-operatória em que se tenta um regresso a uma vida tão normal quanto possível.

Por outro lado é necessário admitir que o factor tempo é importante. Nada de pressas…O tempo vai ajudar em muitos aspectos. Demos-lhe tempo!

Mas, apesar de tudo, ainda há algumas dificuldades…Falar ao telefone, manter uma conversa num automóvel em movimento, conversar num grupo numeroso e num local com muito barulho de fundo, responder a um intercomunicador… Não dramatizemos estes problemas. Pessoalmente tenho encontrado sempre pessoas compreensivas e dispostas a um esforço para me entenderem. Mesmo reconhecendo que há pessoas com mais facilidade do que outras para nos entenderem. (Não consegui até agora perceber porquê).

Prometi acima voltar a falar da importância da informação e é o reconhecimento dessa importância que me leva, assim como a outros colegas, a gostosamente colaborar com o Movimento de Apoio aos Laringectomizados (MovApLar) do Núcleo Regional do Sul da Liga Portuguesa Contra o Cancro.

E termino com uma nota optimista… Do alto dos meus (quase) 79 anos continuo a praticar desporto com regularidade, algum mesmo um pouco radical.

Henriques Dominguez

Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.
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