Poesia terapêutica

Leia atentamente este folheto antes de tomar este medicamento

Atualizado: 
20/02/2015 - 15:45
A poesia pode ser tomada sozinha, com a família, com os amigos, com os colegas de trabalho e até com desconhecidos. Ficam os conselhos de como pode ficar dependente deste medicamento.

Há que saber administrá-la e reparti-la pelos dias.

Menos de um Ruy Belo diário

pode causar anemia lírica crónica.

(em função da resposta da sua pressão arterial

a dose pode ser aumentada para o dobro).

 

Aconselho-o a tomar a dose máxima de Sophia ao acordar

e a dose mínima de Herberto ao deitar

(mais do que um Herberto pode provocar insónias e não sonhos).

Porque esta é a madrugada que eu esperava e

Onde havia um homem que corria pelo orvalho dentro.

 

Atenção! Caso tome os dois à mesma hora

poderá sentir uma enorme vontade de liberdade.

Pois a substância ativa da Poesia, é a liberdade livre.

 

Em caso de grande mal-estar e cefaleias, tome de imediato um O´Neill.

Este às dores inventadas prefere as reais.

 

Se não resultar, há evidência de que um Sena

Nos traga uma pequena luz bruxuleante, aqui para o meio de nós.

 

Caso sinta outros efeitos secundários, como um Cesariny, por exemplo,

Não se esqueça de que entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

 

Se sete dias depois de iniciar o tratamento não sentir melhoras

Temos de introduzir um Eugénio, um Torga ou uma Natália.

Porque já gastamos as palavras pela rua, as grandes serras paradas

e porque a poesia é para comer!

 

Se mesmo assim não surtir efeito, temos de passar necessariamente

Para uma medicação mais pesada, com provas clínicas dadas no passado:

Um Camões, um Cesário, um Anthero ou várias Pessoa(s).

Porque há doenças piores do que doenças…

 

Neste caso é preciso salvaguardar a sua família e os seus amigos.

Pois pode começar a delirar e a declamar poemas ininterruptamente.

E pensarem que está embriagado como Baudelaire:

“Embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia ou com a virtude! A teu gosto!”

 

Se estiver difícil de se acalmar, tome um Dos Líquidos de Daniel Faria.

Pois estão ambos na mesma página a segurar a magnólia da Luísa Neto Jorge.

 

Cuidado! Não tome nenhum Pina.

A poesia vai acabar…

 

Como sei que tem uma farmácia lá em casa e auto medica-se,

Estudos recentes comprovam que o consumo excessivo de Al Berto e Alba

Conjuntamente com Nava e Florbela podem causar uma overdose fatal.

Ou uma ansiedade incontrolável de querer ser infinito…perdidamente…

 

Se tal acontecer, tem de se dirigir imediatamente ao serviço de urgência

fazer um Ramos Rosa diretamente na veia.

Não podemos adiar o coração para outro século…

 

Quando tiver alta deve recorrer a um especialista lírico-oral.

Recomendo-lhe escolher um destes três: o Villaret, o Ary ou o Viegas.

 

Já em casa tome um José Forte depois das refeições, mas só de marca.

Em caso deste estar esgotado tome um Luís Peixoto.

Enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco.

 

Em caso de saber que está grávida não pare de tomá-la.

Aconselha-se a dobrar a dose. Há uma enorme probabilidade do seu filho vir a ser um grande poeta. Não há forma de o evitar. A poesia é altamente contagiosa.

Veja-se o caso do Sebastião da Gama que quando nasceu ficou tudo como estava.

Nota importante: deve triplicar a dose enquanto estiver a amamentar.

 

Se depois destas recomendações nada resultou.

Nem mesmo o sol de um comprimido de aspirina do João Cabral…

A única coisa a fazer é tocar um tango argentino do Manuel Bandeira.

Ou então…ou então, ainda se lembra do que falamos no início?!

 

“Há que saber administrá-la e reparti-la pelos dias.

Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará.”

Sr. Utente, para a sua saúde, pela sua saúde, pela minha saúde:

- Prescrevo-lhe todos os dias uma sobredosagem de Poesia.

 

Outras informações: Se se esqueceu de tomar uma dose, tome-a logo que possível. Consulte sempre um profissional de saúde antes de parar de tomá-la. Se parar de tomar a poesia ou reduzir a dose diária repentinamente pode sentir efeitos de privação que lhe podem causar ansiedade, cefaleias, fadiga, insónias e inquietação. A poesia pode ser tomada sozinha, com a família, com os amigos, com os colegas de trabalho e até com desconhecidos. Se acidentalmente, tomar demasiados comprimidos, ou se uma criança engolir alguns comprimidos, não se preocupe. Saia à rua (“A poesia está na rua”) e comece a dizer poesia pela estrada fora (“Ama como a estrada começa”). Agora, é possível que esteja dependente deste medicamento para o resto da sua vida. Este medicamento não tem prazo de validade. Este medicamento não necessita de quaisquer condições especiais de conservação. Não se conhece que alguma vez alguém tenha tido uma reação adversa ao consumi-la. Também não se verificaram efeitos sobre a capacidade de conduzir veículos espaciais e terrenos. Por último, não se esqueça, deve manter este medicamento ao alcance de todas as crianças. Seja responsável. Consuma-a em excesso. Fabricante: Poesia Portugal Experimental, Lda.

Este folheto foi aprovado pela primeira vez em 21 de março de 2014.

 

Pedro Quintas, Enfermeiro Especialista em Saúde Comunitária – e-mail: [email protected]

Autor: 
Pedro Quintas
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.
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