Qualitativamente mais evoluída

A enfermagem que eu quero

Atualizado: 
25/05/2015 - 11:51
Noite de passagem de Ano. Fantástico! Vai ser uma noite de dança, alegria e boa disposição até de madrugada. Impossível! Amanhã é o meu primeiro dia de trabalho. Dia 1 de Janeiro de 1986. Mas é feriado, começas a trabalhar no dia de um feriado? Sim vou, é fantástico ir trabalhar, é o meu primeiro emprego. Sou Enfermeira!

Medicina e Cirurgia Homens, 45 camas, uma equipa de enfermagem no turno da manhã do primeiro dia do ano e de todos os outros fins-de-semana e feriados do ano com 3 enfermeiras. Nesse dia, uma Enfermeira mais experiente, eu e a minha amiga e colega Paula a iniciar a vida profissional.

Somos comandadas pela colega mais velha, fundamentalmente três tarefas: pensos, medicação e cuidados de higiene. Diz-me: tu ficas com as higienes, a Enfermeira Paula na medicação e eu com os pensos. Com um sorriso de alegria nos lábios, fui obediente e diligentemente cumprir as tarefas distribuídas. Mais tarde a minha amiga, juntou-se a mim na laboriosa actividade dos cuidados de higiene. Jovem, estimulada pelo início da vida profissional que tanto ambicionava, fui dialogando com os doentes e espalhando sorrisos. No final do turno, os registos das tarefas desempenhadas, resumem-se numas frases escritas no "Livro de Passagem de Turno".

Enquanto esse e outros dias se foram sucedendo, pensava: sou Enfermeira, sou feliz. Todos estes doentes com quem posso marcar a diferença, cuidados de enfermagem prestados com um sentido de missão e de total entrega à profissão.

Não me revejo nestes cuidados de enfermagem

Esta rotina mantém-se inalterada. Estou cansada! Exausta e fundamentalmente dececionada. Não é esta profissão que eu desejei, não me revejo nestes cuidados de enfermagem. Tenho a convicção de que tanto os utentes e seus familiares como a comunidade profissional desejam uma enfermagem qualitativamente mais evoluída na perspetiva da organização, reflexão, eficiência e efetividade de um exercício profissional centrado no utente.  

Nesta época, a profissão ainda caminha na construção dos seus pilares estruturantes: o regulamento do exercício profissional de enfermagem (1996), a Ordem dos Enfermeiros (1998), o Código Deontológico (1998) e os Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem (2011). O desenvolvimento harmonioso das competências técnicas e científicas para o pleno exercício e o abandono da invisibilidade da enfermagem no seio da equipa de saúde, sustenta a senda percorrida investindo em atitudes proactivas capazes de promover a reflexão e integrando as associações profissionais.

O caminho percorrido pela profissão caracteriza-se pelo equilíbrio no desenvolvimento do método científico apoiado nas competências relacionais que ao longo dos anos colocam a enfermagem no topo das profissões mais confiáveis[1]. São os beneficiários dos cuidados de enfermagem que afirmam confiar nos enfermeiros.

Ainda assim, longe daquele ano de 1986 e dos processos de trabalho totalmente contrários a uma profissão metodologicamente organizada, a estruturação da enfermagem ainda não a colocou na devida posição de reconhecimento social nem garantiu as necessárias condições de trabalho.

Enfermagem à espera do lugar que merece

Um sentimento trespassa várias gerações de enfermeiros: a indignação. A formação, de nível e qualidade superiores, coloca os enfermeiros portugueses entre os mais requisitados e apreciados nas instituições de saúde dos diversos pontos do globo. A qualificação e as competências não têm sido suficientes para colocar a profissão no lugar que merece comparativamente a outras de igual nível de formação.

A afirmação sucessiva de uma autonomização construída na compreensão e reflexão dos cuidados de enfermagem, utilizando uma linguagem que permite a comparabilidade e a produção de indicadores sensiveis aos cuidados de enfermagem, é legitimada pela prática ancorada em saberes cientificamente validados.

A cientificidade da enfermagem não é contrária à dimensão relacional, à riqueza e utilidade social[2], antes pelo contrário, é esta dimensão que a torna diferenciadora, no seio das profissões de saúde.

A enfermagem não pode ficar capturada na visão redutora

A enfermagem não pode ficar capturada na visão redutora de quem a entende como uma profissão focada no modelo biomédico, deve antes atender-se à performance dos cuidados de enfermagem geradores de resultados com repercussões positivas na vida do cidadão beneficiário dos mesmos. Atentar efetivamente nos recursos alocados a tratar a doença e nos despendidos a promover a saúde é um desígnio incumprido com impacto sociopolítico considerável e de pertinência acrescida em tempos de contingência económica.

Na hierarquização das decisões, a defesa da qualidade dos cuidados de enfermagem prestados à população tem assumido o primado e disso são exemplo as iniciativas promovidas pelos enfermeiros e disseminadas por diversos meios.

A enfermagem que toma como foco as respostas humanas aos processos de desenvolvimento ou as respostas humanas às doenças, às deficiências ou às incapacidades, revela-se em projetos como o PROVIDAS - projeto vida segura ou o ContactoB - visita domiciliária durante o puerpério e período neonatal a decorrer na maternidade do Centro Hospitalar Cova da Beira.

O desencontro entre a enfermagem entendida e exercida pelos enfermeiros e aquela que os cidadãos apreendem exige ser esbatido. A quase timidez que caracteriza os enfermeiros na comunicação da natureza da sua prática profissional urge ser alterada, pois acredito que "aprender a usar a Voz da Enfermagem é aprender a escutar verdadeiramente o sofrimento dos que estão lá, nas camas dos hospitais ou nas salas de espera dos centros de saúde, ou ainda nos lares de idosos, ou em habitações, por vezes sozinhos e com poucos recursos[3]".




[1] Reader’s Digest - 15ª edição do estudo Marcas de Confiança, eleição das Profissões de Confiança, 2015. 

[2] Hesbeen, Walter - Cuidar no hospital. Lusociência, 2000.

[3] Prof. Ana Albuquerque Queirós in http://www.forumenfermagem.org/dossier-tecnico/livros/autoria/item/2573-..., em 19 de Abril 2015.

 

Maria Rosa Norberto Moreira

Curso Geral de Enfermagem, Escola de Enfermagem Dr. Lopes Dias, 1985.

Curso de Especialização em Enfermagem Médico-cirúrgica, Escola Superior de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, 1995.

Enfermeira no Hospital Distrital do Fundão até 1995 e Enfermeira Especialista até 2001.

Coordenadora para a área de enfermagem do serviço de ensino e formação, Hospital Distrital do Fundão e CHCB, 1996 - 2007.

Membro efetivo da Comissão de Formação da Ordem dos Enfermeiros, 2008 - 2010 (Decreto-Lei n.º 104/98 de 21 de Abril)

Enfermeira Chefe no serviço de obstetrícia/ginecologia, Centro Hospitalar Cova da Beira, desde 2001.

Auditora interna JCI e Norma ISO 2008

Membro da Assembleia Municipal do Fundão desde 2005.

 

Autor: 
Rosa Moreira
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.
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