A importância da doação

Dar sangue faz bem

Atualizado: 
27/03/2017 - 09:59
As pessoas saudáveis têm o dever de ajudar as pessoas doentes, e neste dever de solidariedade inclui-se a doação de sangue. Neste “Dia Nacional do Dador de Sangue”, que se comemora a 27 de Março, vale a pena saber um pouco mais sobre a importância do sangue e o processo da sua doação. Dar sangue faz bem e custa pouco!

O sangue

O sangue é um tecido muito importante do nosso organismo, constituído por uma parte líquida, o plasma, basicamente formado por água e proteínas (sobretudo albumina, globulinas e factores de coagulação) e por elementos celulares, os glóbulos vermelhos, os glóbulos brancos e as plaquetas.

Como estas células se encontram em suspensão no plasma, o sangue tem o aspecto de um líquido espesso, viscoso, vermelho (mais ou menos escuro conforme a concentração de glóbulos vermelhos), que circula pelos vasos sanguíneos (artérias, capilares e veias), cumprindo inúmeras funções vitais para a vida:

- a hemoglobina dos glóbulos vermelhos, rica em ferro, transporta oxigénio dos pulmões para todos os órgãos e tecidos do corpo e recolhe o dióxido de carbono formado nos processos de combustão celular, transportando-o para os pulmões para ser eliminado;

- os glóbulos brancos (neutrófilos, linfócitos, monócitos, eosinófilos e basófilos) fazem parte do sistema imunitário, contribuindo para o combate a infecções e para o reconhecimento, neutralização e eliminação de células ou proteínas estranhas ao organismo (processos alérgicos, rejeição de órgãos);

- as plaquetas fazem parte do sistema de coagulação do sangue: quando há uma ferida, as plaquetas colam-se rapidamente umas às outras e formam uma espécie de rede que impede a hemorragia; é sobre esta rede que se forma depois o coágulo definitivo, por acção dos factores de coagulação presentes no plasma;

- o plasma transporta os nutrientes do aparelho digestivo para os seus locais de utilização ou armazenamento, recolhe os produtos de degradação do metabolismo para serem eliminados, transporta hormonas produzidas pelas glândulas endócrinas e veicula medicamentos e outros produtos químicos e biológicos;

- no seu todo, e por ser um fluido, o sangue contribui para a manutenção da pressão arterial e venosa (através da sua pressão osmótica e oncótica) e faz parte da reserva de água do organismo (um adulto médio tem entre 5 e 6 litros de sangue, o que equivale a cerca de 3 litros de plasma).

A produção das células do sangue (hematopoiese) é basicamente feita na medula óssea de alguns ossos (ilíacos, costelas, esterno, crânio, vértebras), cabendo ao baço e aos gânglios linfáticos a produção de linfócitos. A produção de glóbulos vermelhos é regulada principalmente por uma hormona produzida pelos rins (a eritropoietina) e necessita de proteínas, ferro, ácido fólico e vitamina B12 para ser eficaz. A produção de glóbulos brancos depende da presença de agentes infecciosos, tóxicos ou alergénicos. A produção de plaquetas também é regulada por uma hormona produzida pelo fígado e pelos rins (a trombopoietina), que aumenta nos processos inflamatórios e nas hemorragias.

Os glóbulos vermelhos têm uma vida média de 120 dias e as plaquetas de 10 dias. Os glóbulos brancos têm uma duração variável, de horas a meses. Quando chegam ao fim da sua vida, as células sanguíneas são destruídas, fundamentalmente no baço, no fígado e na própria medula óssea, e alguns dos seus componentes são reaproveitados para fabricar novas células, num processo contínuo, dinâmico e muito complexo.

Quem precisa de sangue

A grande complexidade do sangue, das suas funções e dos seus mecanismos de fabrico e destruição explica a grande quantidade de situações em que um doente tem falta de sangue e pode necessitar de uma transfusão (de sangue completo ou apenas de algumas das suas parcelas):

- perda aguda ou crónica de sangue por hemorragias, que podem ser naturais (menstruação), resultantes de cirurgias, acidentais (feridas, fracturas) ou patológicas (resultantes de falta de plaquetas, de deficiência de vitamina K e de doenças da coagulação, como a hemofilia);

- deficiente produção sanguínea, por insuficiência renal, por falta de ferro, vitaminas, hormonas ou proteínas, por doenças oncológicas (leucemias, linfomas, mieloma múltiplo, mielodisplasia), por erros genéticos ou metabólicos e por efeito de radioterapia, infecções, toxinas ou medicamentos (especialmente os citostáticos, usados para tratar o cancro);

- situações em que as células do sangue se destroem mais que o normal, como sucede nas hemólises (destruição aumentada de glóbulos vermelhos, por reacções imunitárias, infecções, defeitos da estrutura celular, deficiências enzimáticas, medicamentos ou tóxicos)  e no hiperesplenismo (aumento do volume e actividade do baço, devido a insuficiência cardíaca, cirrose hepática, infecções, doenças metabólicas ou neoplásicas, etc.).

Quem pode doar sangue

Em princípio qualquer pessoa saudável, entre os 17/18 anos e os 60/65 anos (primeira vez/continuação), com peso superior a 50 Kg, valores de hemoglobina iguais ou superiores a 12.5 g/dl para mulheres e 13.5 g/dl para homens, frequência cardíaca entre 50 e 100 batimentos por minuto, tensão arterial sistólica entre 100 e 180 mm Hg e tensão arterial diastólica entre 60 e 100 mm Hg pode doar sangue.

Para além destes aspectos genéricos, existem muitos factores específicos a ser considerados para se aceitar ou recusar (temporária ou definitivamente) um dador de sangue: histórico de viagens, doenças actuais e passadas, alergias, vacinas, cirurgias prévias, mordeduras de animais, consumo de medicamentos, toxicodependência, hábitos sexuais, tatuagens, colocação de piercings, tratamentos de acupunctura ou mesoterapia, transfusões recebidas, gravidez, aleitamento, detenção em cadeias, participação em ensaios clínicos, etc.

Esta complexidade resulta da necessidade de proteger o dador (evitar que ele prejudique a sua saúde com a dádiva) e o receptor (minimizar os riscos de contágio de doenças infeciosas ou neoplásicas e de reacções transfusionais) e obriga a fazer consultas especializadas de triagem clínica de dadores, segundo normas rigorosas do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, que garante e regula, em Portugal, a actividade da medicina transfusional, desde a colheita à administração do sangue e seus derivados, passando pelo seu processamento, armazenamento e distribuição.

A doação de sangue é um processo voluntário e altruísta (e por isso não remunerado), que passa por uma inscrição como dador, pelo preenchimento de um questionário pré-dádiva, associado ao consentimento informado, por uma avaliação clínica personalizada (consulta de triagem) e por análises clínicas, de modo a definir a elegibilidade do dador.

A doação de sangue

A doação em si mesma é em geral um processo rápido (dura cerca de 10 minutos), no qual se retira uma unidade de sangue do dador (cerca de 450 ml) (o que corresponde a cerca de 9% do total do seu sangue) para um sistema de sacos de recolha com anticoagulante, de modo a permitir o seu processamento posterior: o sangue é separado por centrifugação nos seus vários componentes (concentrado de glóbulos vermelhos, plasma, concentrado de plaquetas e crioprecipitado) podendo ainda fazer-se a transformação industrial do plasma em hemoderivados (albumina, imunoglobulinas, fibrinogéniocomplexos trombínicos e factores de coagulação). Os concentrados de glóbulos vermelhos e de plaquetas podem ser desleucocitados, por processos de filtração que retiram os glóbulos brancos, reduzindo a probabilidade de reacções de rejeição por parte do receptor. Em alguns casos pode fazer-se transfusões de concentrados de glóbulos brancos, mas sempre que possível administra-se factor de produção de neutrófilos, um medicamento que aumenta o fabrico destas células.

Pode ainda fazer-se uma recolha selectiva de partes do sangue (apenas plasma ou plaquetas), designada doação por aferese. Este processo é mais demorado que o da doação simples, pois obriga a recolher sangue do dador, separar a parcela a doar e reintroduzir a parte sobrante no dador. Isto permite aumentar a frequência das doações de plaquetas ou de plasma, que se regeneram mais rapidamente e não dependem da reposição das reservas de ferro.

Para uma doação de sangue, o dador deve estar em posição reclinada (para reduzir o risco de desmaio por descida da tensão arterial), deve estar repousado, não deve estar em jejum nem ter comido demais, deve beber água antes da dádiva e contrair os músculos abdominais e dos membros enquanto o sangue é recolhido, para melhorar a circulação do sangue. Quando feita em condições adequadas, a dádiva de sangue provoca poucos efeitos secundários imediatos no dador: descida da tensão arterial, aceleração do ritmo cardíaco e algum pequeno hematoma no local da punção venosa.

A médio prazo, a perda dos 200 a 250 mg de ferro que cada doação de uma unidade de sangue acarreta é compensada com uma alimentação correcta e, se necessário, com a suplementação com ferro oral. Assim, os dadores de sangue devem observar um período de 3 a 4 meses antes de dar sangue de novo, de modo a permitir a completa regeneração do sangue retirado e repor as reservas de ferro do organismo. Em geral os homens podem dar sangue 4 vezes por ano e as mulheres 3 vezes.

Os desafios actuais da hemoterapia

No século XX resolveram-se os principais problemas que limitavam as transfusões de sangue: a utilização de anticoagulantes seguros, a selecção do sangue consoante os grupos sanguíneos (especialmente os dos sistemas AB0 e Rh) e a conservação do sangue e derivados.

Nos últimos anos verificou-se uma redução acentuada da necessidade de fazer algumas transfusões de sangue, por melhoria das técnicas cirúrgicas, redução do número e gravidade dos acidentes rodoviários, utilização de medicamentos que promovem a produção de células sanguíneas, produção de componentes sanguíneos por engenharia genética (factor VIII recombinante…), recurso à esplenectomia (remoção do baço em casos selecionados de hiperesplenismo), medicação imunossupressora, transplantes de medula óssea, tratamento mais eficaz de leucemias, linfomas e outras neoplasias hematológicas, prevenção da doença hemolítica do recém-nascido e redução acentuada das complicações dos partos, entre outras.

Por outro lado, o aumento do número de idosos, o crescimento exponencial das doenças oncológicas (que obriga ao uso alargado de quimioterapia e radioterapia agressivas) e a sobrevivência de muitos doentes crónicos à custa de transfusões paliativas têm levado ao aumento das necessidades de sangue. Em sentido contrário, as restrições aos dadores de sangue são cada vez mais frequentes, devido ao número crescente de doentes com infecções crónicas (HIV/sida, hepatite B e C…), ao aparecimento de novas doenças infeciosas (dengue, Zika, Ébola…) e aos hábitos de vida de uma sociedade em que as pessoas viajam muito e por isso se infectam mais e têm de cumprir maiores períodos de quarentena, enquanto dadores.

Enquanto o “sangue artificial” não sair da fase experimental em que se encontra e for uma realidade que consiga suprir todas as necessidades de sangue, temos de continuar a apostar na boa vontade de tantos voluntários que, por todo o mundo oferecem um pouco do seu sangue para bem de quem dele precise.

É necessário manter uma rede de dadores regulares (que garantam a existência de reservas suficientes de sangue e seus componentes para uso corrente e para situações de emergência e possam responder a solicitações específicas e pontuais), sem descurar a captação de dadores ocasionais, alguns dos quais passarão seguramente a dadores regulares.

Não há que ter medo de dar sangue, porque o princípio da protecção da saúde do dador é soberano e os profissionais de saúde que avaliam o dador garantem o seu cumprimento. É mais fácil um dador ser recusado (mesmo que temporariamente) do que aceite até ao esclarecimento de qualquer dúvida sobre a sua capacidade de dar sangue. O sangue faz muita falta, mas nunca deve ser obtido à custa do prejuízo de quem dá.

Afinal, dar sangue faz bem e custa pouco!

Autor: 
Dr. Viriato Horta - Medicina Geral e Familiar Clínica Europa Carcavelos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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