Doença mental

Perturbação Obsessiva-compulsiva: 10% dos doentes desenvolve uma forma grave da doença

Atualizado: 
15/03/2021 - 14:58
Embora tenha tratamento, estima-se que 10% dos doentes com Perturbação Obsessiva-Compulsiva desenvolve uma forma refratária da doença. Nestes casos, a patologia “acaba por se tornar crónica com oscilações na gravidade dos sintomas ou até mesmo agravar progressivamente apesar do tratamento”. Segundo Ricardo Moreira, psiquiatra no Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), a Estimulação Cerebral Profunda pode ser a resposta.

Caraterizada pela presença de obsessões e compulsões, a Perturbação-Obsessiva Compulsiva tem um enorme impacto na qualidade de vida dos doentes. Habitualmente, com início na adolescência ou nos primeiros anos da idade adulta, esta doença mental, quando não tratada, pode evoluir para quadros de grande incapacidade e sofrimento psíquico.

As obsessões e as compulsões são os “sintomas nucleares” de uma patologia “que tem como pano de fundo a ansiedade”. De acordo com Ricardo Moreira, enquanto “as obsessões são pensamentos intrusivos, recorrentes e persistentes, de conteúdo negativo ou desagradável, que surgem em forma de dúvida e que geram elevados níveis de ansiedade”, as compulsões “por sua vez, são atos comportamentais ou mentais, realizados de forma repetida e ritualizada, que o doente sente necessidade de cumprir em resposta às obsessões, com o objetivo de aliviar (temporariamente) a ansiedade gerada pelas mesmas”.

Estas podem estar relacionadas com diferentes temáticas como, por exemplo, “obsessões acerca da sujidade/contaminação e compulsões de limpeza; obsessões e compulsões de ordem, simetria, contagem ou arrumação; obsessões de dúvida e compulsões de verificação; obsessões de conteúdo violento ou agressivo e compulsões relacionadas com as mesmas; obsessões de conteúdo sexual ou religioso e compulsões relacionadas com as mesmas; obsessões e compulsões de acumulação e colecionismo”.

“De uma forma geral, podemos dizer que os diferentes tipos de comportamentos compulsivos (lavagens repetidas das mãos, verificação do gás/portas/torneiras, organizar roupas por cores ou livros por ordem alfabética, fazer medições repetidas, entrar e sair de portas várias vezes) são a face mais visível da doença. Mas estes são apenas a ponta do iceberg, uma vez que na base dos mesmos está a dúvida obsessiva, geradora de elevados níveis de angústia e ansiedade, frequentemente vivida internamente em silêncio”, explica o especialista.

“Na face oculta do iceberg”, revela Ricardo Moreira, “estão também os atos compulsivos mentais (contagens, rezas, repetição mental de frases, palavras ou números, etc.) e os evitamentos (não ir a determinados locais ou tocar em determinados objetos para não ter de realizar compulsões de lavagem).

Segundo o psiquiatra, o número de obsessões e compulsões, bem como o tempo despendido na sua realização, aumenta “à medida que a doença se agrava”, resultando na perda de qualidade de vida com envolvimento de um grande sofrimento psíquico. “Nos casos mais graves poderá mesmo existir uma total incapacidade funcional a diferentes níveis: profissional, social e familiar”, acrescenta o especialista do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ).

Embora não exista uma causa identificada para o aparecimento da doença, destacam-se alguns fatores como a componente hereditária, “a presença de alguns aspetos da personalidade – traços ansiosos ou obsessivos, e a “presença de algumas distorções cognitivas - perfeccionismo ou o excessivo sentido de responsabilidade” -, como condicionantes.

“Noutras situações a POC parece estar relacionada com a ocorrência de um evento traumático (ex: POC de dúvida e verificação após um incêndio em casa ou um assalto) ou de acontecimentos de vida relevantes (ex: desenvolvimento de POC sujidade/contaminação e limpeza numa mulher após o parto, por preocupação excessiva com a saúde do filho)”, acrescenta Ricardo Moreira.

“Existem ainda alguns casos raros de POC infantil em que os sintomas obsessivo-compulsivos surgem de forma abrupta após uma infeção bacteriana por streptococcus, a que denominamos de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorder Associated with Streptococcus (PANDAS)”, refere ressalvando, no entanto,  que “os estudos de neuroimagem, particularmente os de Ressonância Magnética Cerebral Funcional (RMNf), têm demonstrado de forma consistente que existe uma disfunção ao nível do circuito córtico-estriato-talâmico-cortical do cérebro e um défice do neurotransmissor serotonina”.

«A cura, ainda que não seja o cenário mais frequente, é possível, tenho casos na prática clínica que o demonstram»

Embora o prognóstico da patologia dependa de inúmeras variáveis, entre elas “a idade de início da doença, o tempo de duração de doença até que o doente procura ajuda, a gravidade do quadro clínico”, e até mesmo o envolvimento do doente e familiares no seu tratamento, há casos em que é possível falar-se em cura. No entanto, o especialista chama a atenção de que na maioria dos casos consegue-se apenas “reduzir os sintomas e melhorar a qualidade de vida das pessoas”. “Obviamente que existem outras situações, mais graves, em que a doença acaba por se tornar crónica com oscilações na gravidade dos sintomas ou até mesmo agravar progressivamente apesar do tratamento”, acrescenta.

De acordo com o especialista, o tratamento tem duas vertentes: a farmacológica e a não-farmacológica.

“O tratamento farmacológico consiste essencialmente na utilização de fármacos inibidores da recaptação da serotonina (SRIs), que pertencem à classe dos antidepressivos. Os que têm eficácia demonstrada no tratamento da POC são: fluvoxamina, fluoxetina, sertralina, escitalopram, citalopram, paroxetina e clomipramina”, adianta.

A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), nomeadamente, a Terapia de Exposição e Prevenção de Resposta é considerada o tratamento “gold standard” da POC. “Nesta estratégia, ensinamos o doente a não realizar a compulsão e a tolerar a ansiedade   gerada pela obsessão”, explica Ricardo Moreira.

“Para além das estratégias comportamentais é fundamental identificar e trabalhar algumas distorções cognitivas que estão frequentemente presentes nos doentes com POC.”, adverte o especialista adiantando que “a TCC na POC é particularmente difícil e desafiante e que deve ser realizada por clínicos (psicólogos ou psiquiatras), com formação e experiência em TCC e na POC”.

Nos casos mais graves e refratários ao tratamento convencional, a Estimulação Cerebral Profunda, pode ser a opção.

“É um tratamento muito utilizado nos casos mais graves de Doença de Parkinson, e que está aprovado pela Food and Drug Administration dos EUA para o tratamento da POC desde 2009. No fundo consiste na introdução de dois elétrodos que irão estimular um determinado núcleo cerebral e assim modular o circuito cerebral que se encontra disfuncional na doença em causa. É importante dizer que este tratamento não é curativo, mas tem como objetivo a melhoria dos sintomas e da qualidade de vida dos doentes”, revela o especialista adiantando que os seus resultados “têm sido muito interessantes”.

“No CHUSJ, onde trabalho, temos 3 doentes em que realizamos estimulação do núcleo anterior da cápsula interna. Em todos os casos se verificou uma melhoria significativa dos sintomas (redução >35% na escala Y-BOCS). Num dos casos, a melhoria foi tão evidente que superou as nossas melhores expectativas”, justifica acrescentando que “que ainda este ano prevemos intervencionar mais dois doentes com POC grave e resistente ao tratamento”.

Com tendência para ser subdiagnosticada, “quer pelo estigma da doença mental em geral, quer pelas características clínicas intrínsecas da POC”, Ricardo Moreira sublinha a importância de reconhecer a doença. (…) “A POC existe, tem tratamento e quanto mais cedo procurarem ajuda, melhor é o prognóstico da doença”.

“Essa ajuda pode ser procurada junto dos médicos de família, ou então diretamente junto de psiquiatras ou psicólogos clínicos, quer a nível publico quer a nível particular. Não tenham medo de o fazer!”, apela o especialista.

“Aproveito também para referir que existem algumas consultas especializadas no tratamento da POC no Serviço Nacional de Saúde espalhadas pelo país (Porto, Braga, Coimbra e Lisboa), como por exemplo a consulta que coordeno de “Doenças do Espetro Obsessivo” no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar Universitário São João no Porto.”, conclui.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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