Opinião

O Som Que Cura: Da Sinfonia das Células à Música da Alma

Atualizado: 
21/10/2025 - 07:34
“Novas descobertas mostram que o som vai muito além do ouvido: ele altera células, influencia genes e pode vir a transformar a medicina do futuro.” Por António Ricardo A. Miranda, Embaixador Oficial da Semana do Som em Portugal

Há sons que escutamos com os ouvidos.

E há outros — mais subtis, mais íntimos — que o corpo inteiro sente.

Durante décadas pensámos que o som era apenas um fenómeno acústico, uma vibração que atravessa o ar até chegar ao ouvido interno. Mas a ciência do século XXI está a revelar algo surpreendente: o som é também uma força biológica, capaz de influenciar as nossas células, genes e emoções de formas que só agora começamos a compreender.

 

Quando o corpo “ouve”: o som que toca as células

Investigadores da Universidade de Kyoto, no Japão, colocaram recentemente células vivas sobre uma placa vibratória e expuseram-nas a diferentes frequências sonoras. O resultado foi extraordinário: 190 genes alteraram a sua expressão — alguns “ligaram-se”, outros “desligaram-se” — apenas em resposta ao som.

Sem químicos, sem cirurgia, sem contacto físico. Apenas vibração.

Mais ainda: em células precursoras de gordura, as ondas sonoras bloquearam a formação de adipócitos (as células que armazenam gordura). Noutras, modificaram a estrutura e o movimento.

Este estudo, que marca o nascimento de uma nova disciplina — a mecanobiologia acústica — demonstra que as nossas células não são surdas. Elas escutam o mundo à sua maneira, reagindo mecanicamente a cada impulso vibratório.

Não é misticismo; é física aplicada à biologia.

O som é feito de ondas de pressão, e essas ondas atravessam tecidos, órgãos e fluidos corporais. A cada batida, a cada nota, o corpo inteiro ressoa — uma verdadeira orquestra molecular em movimento.

 

O poder terapêutico da música: da ciência ao coração

Mas o fenómeno não se limita às células. A música — a forma mais elaborada e emocional do som — atua directamente no cérebro humano.

Numerosos estudos clínicos demonstram que a musicoterapia reduz a ansiedade, alivia a dor, regula o humor e até melhora funções cognitivas em doenças como o Alzheimer, Parkinson ou após AVC.

Quando ouvimos música, ativam-se simultaneamente áreas cerebrais ligadas à emoção, à memória, ao movimento e à recompensa. O cérebro liberta dopamina e endorfinas, enquanto o cortisol — a hormona do stress — diminui.

É por isso que, perante uma melodia que nos comove, o coração abranda, a respiração se ajusta e a tensão arterial desce.

A Organização Mundial da Saúde reconhece oficialmente o papel das artes — e em especial da música — na promoção da saúde mental e do bem-estar.

Em hospitais, unidades de cuidados paliativos e centros de reabilitação de vários países, a musicoterapia já faz parte das equipas multidisciplinares.

 

Beethoven e a biologia da emoção

Entre os compositores mais estudados, Beethoven ocupa um lugar especial.

As suas obras, densas e emocionais, exercem um efeito quase universal. Movimentos como o Adagio da Sonata “Pathétique” ou a Sexta Sinfonia (“Pastoral”) induzem relaxamento profundo e coerência cardíaca; outros, como a Ode à Alegria, elevam o humor e despertam vitalidade.

Estudos de neurociência mostram que músicas com estrutura harmónica complexa e contrastes dinâmicos, típicas de Beethoven, favorecem a sincronização neuronal, melhoram a atenção e podem reduzir crises epilépticas — fenómeno semelhante ao chamado efeito Mozart.

Em doentes com demência, essas mesmas obras ajudam a resgatar memórias e emoções esquecidas.

Beethoven, que compôs as suas sinfonias mais sublimes depois de perder a audição, continua assim a “falar” directamente às células e à alma de quem o ouve.

 

Uma nova era: a medicina do som

Estas descobertas abrem caminho para o que muitos investigadores chamam já de “medicina vibracional de precisão” — terapias baseadas em ondas sonoras, capazes de modular tecidos e processos biológicos sem recorrer a fármacos invasivos.

Imaginemos, por exemplo:

Frequências específicas para estimular regeneração celular;

Vibrações sonoras para reduzir inflamações;

Ritmos cuidadosamente modulados para restaurar o equilíbrio neurovegetativo.

Pode soar futurista, mas a tecnologia médica já caminha nesse sentido.

O ultrassom terapêutico é hoje usado para acelerar a cicatrização de feridas e tratar dores musculares; a neuroestimulação acústica está a ser testada em depressão resistente; e experiências com sonogenética procuram ativar genes sensíveis ao som — sem tocar no corpo.

 

O som é uma linguagem universal

Se o som molda células e emoções, então cuidar do ambiente sonoro é cuidar da saúde.

Vivemos rodeados de ruído — nas cidades, nos transportes, até em casa. O excesso de som desordenado provoca stress, fadiga, ansiedade e até doenças cardiovasculares.

Mas o som pode também ser cura, equilíbrio e beleza — quando o usamos com consciência.

Precisamos de uma nova cultura do ouvir: escutar o silêncio, valorizar a harmonia, respeitar a vibração natural dos espaços e das pessoas.

O som não é apenas entretenimento: é energia vital.

 

Da ciência à consciência

A Semana do Som convida-nos a redescobrir o poder vibrante e transformador que nos envolve desde o primeiro batimento do coração.

Cada célula, cada órgão, cada emoção tem a sua frequência.

Talvez, no fundo, sejamos todos parte de uma mesma sinfonia biológica — onde a ciência, a arte e a vida se encontram em perfeita ressonância.

 

E se é verdade que “tudo o que existe vibra”, então talvez a saúde comece quando aprendemos a escutar melhor.

Autor: 
António Ricardo Miranda - Engenheiro Electrotécnico e de Computadores de Controlo e Robótica e Pessoa com Deficiência Auditiva e Visual
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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