Opinião

“Mudar Perspetivas: vamos falar sobre obesidade”

Atualizado: 
21/02/2024 - 05:55
O dia 4 de março de 2023 foi dia de “Mudar Perspetivas: vamos falar sobre obesidade”. E o que a maioria pensa imediatamente é que vamos falar sobre alimentação e atividade física. Mas não. Vamos mudar a perspetiva e ver muito mais além disso. Falar sobre obesidade e excesso de peso é falar sobre uma doença complexa, multifatorial, crónica e recidivante que afeta já quase cerca de dois terços dos portugueses. Uma doença mal compreendida, pela população em geral, pelo próprio indivíduo doente e, inclusivamente, por profissionais de saúde. E é precisamente a incompreensão, o estigma e a culpabilização que a Federação Mundial de Obesidade propõe combater em primeiro lugar ao adotar o tema deste ano.

Os números alarmantes já são sobejamente conhecidos: prevê-se que em 2035 mais de 50% da população mundial tenha obesidade ou excesso de peso. O cenário nacional é ainda mais grave. Estamos perante uma pandemia, palavra usada demasiadas vezes, gasta e que não reflete a dimensão das implicações desta realidade sobre a sociedade e o futuro de todos nós. Isto por que a obesidade é onde tudo começa. O tecido adiposo (gordura) em excesso ou anormal que causa dano à saúde, como se define a obesidade, aumenta o risco de múltiplas doenças, tais como a diabetes mellitus tipo 2, síndrome de apneia obstrutiva do sono, doença coronária, doença cerebrovascular, pelo menos 13 tipos de cancros, doença hepática não alcoólica, doença renal crónica, doenças osteoarticulares, numa lista que chega a 200 patologias. Nestas, ainda se incluem as doenças mentais, como o síndrome depressivo e os distúrbios da ansiedade que agravam e são agravados pela obesidade. Todas estas doenças têm sido a causa de morte, redução de qualidade de vida, diminuição de produtividade, absentismo laboral e custos elevadíssimos em saúde. Apenas em custos diretos relacionados com a obesidade e as suas complicações, estima-se a despesa de 1,2 mil milhões de euros por ano em Portugal, o que representa 0,6% do PIB nacional e 6% dos gastos em saúde. É, portanto, um problema de saúde pública grave e requer atenção urgente.

Em 2022, atingimos o número histórico de 8 bilhões de habitantes no planeta Terra. Somos cada vez mais, e cada vez mais pesados. Enquanto a fome e a obesidade crescem em paralelo, a sustentabilidade do planeta é discutida e é fundamental compreender os fatores que nos fizeram chegar a este ponto. A reflexão sobre o estilo de vida moderno, que implica não só mudanças desfavoráveis na dieta alimentar e o sedentarismo, mas também o stress, os horários laborais, as desigualdades socioeconómicas, a exposição a disruptores endócrinos e iliteracia em saúde criaram um ambiente “obesogénico”. Este ambiente interage com a predisposição genética, fatores psicológicos, hormonais e comportamentais que favorecem o excesso de peso para a maioria das pessoas.

É necessário compreender que, apesar do componente comportamental associado à doença, há um conjunto de alterações hormonais e neurológicas que condicionam esse comportamento, aumentando a fome homeostática e a fome hedónica, por exemplo. Por outro lado, há também uma forte componente genética que determina vários aspetos metabólicos e absortivos. A mesma herança genética favorável à sobrevivência há 100 anos é aquela que no século XXI predispõe à obesidade.

Portanto, há que parar de acusar as pessoas que vivem com obesidade de “comerem muito e fazerem pouco exercício”. Isso nem sempre é verdade e se for há muitas razões para isso. Razões que merecem a nossa atenção sem julgamentos. Há que compreender a complexidade que leva estas pessoas a sofrerem uma doença que as isola socialmente, sofrendo de discriminação. O estigma de que a obesidade é uma opção do próprio tem que ser combatido.

Isto não significa desresponsabilizá-los da necessidade de mudança de estilo de vida, mas sim compreender, apoiar, motivar, criar condições para a mudança e tratar as causas fisiopatológicas da doença com as ferramentas de que hoje dispomos.

Há muito que se fala em prevenção, em medidas que alterem o ambiente obesogénico da nossa sociedade. Mas quase nada foi feito. O acesso a alimentos saudáveis, o incentivo à atividade física em meio urbano, a criação de espaços verdes, a melhoria das condições laborais, socioeconómicas e a literacia na saúde são ainda uma miragem. E se há que prevenir, para 2/3 dos portugueses estas medidas vêm tarde. É necessário tratar, e tratar o quanto antes. A obesidade é uma doença também progressiva e quanto mais cedo for a intervenção, menos complicações e outras doenças irão surgir no futuro. E a conta deste futuro chegará a todos nós.

Uma grande esperança surgiu recentemente, depois de anos em que apenas dispúnhamos de 2 tipos de intervenção: a mudança de estilo de vida e a cirurgia bariátrica, reservada para os estadios mais avançados da doença. E essa esperança nasceu com a aprovação de fármacos seguros e eficazes na redução e manutenção de peso, opções farmacológicas que vieram preencher a lacuna entre a dieta e a cirurgia. Trata-se de terapêuticas que podem ser utilizadas em fases mais precoces da doença e mudar a sua evolução, evitando as complicações a longo prazo. As indicações para uso destes fármacos estão definidas nas “guidelines” de tratamento da obesidade de várias sociedades científicas internacionais, que recomendam a sua prescrição associada à intervenção no estilo de vida, preferencialmente em programas estruturados de perda de peso que integram intervenção nutricional e comportamental com equipas multidisciplinares especializadas. Temos, portanto, novas ferramentas eficazes para tratar a obesidade e que têm demonstrado ser o gatilho para mudanças comportamentais duradouras. Contudo, o acesso a estes fármacos ainda é limitado pelo seu custo e ausência de comparticipação. Num país onde o tratamento cirúrgico, é comparticipado, embora com resposta insuficiente, há uma clara desigualdade no acesso aos diferentes tratamentos.

Falamos de pessoas com obesidade, e não de ”obesos”, pois não se definem pela doença que têm. São pessoas, cidadãos que têm uma doença crónica, tal como um paciente com asma, e merecem ter acesso aos melhores tratamentos que a ciência hoje dispõe.

Se a ciência chegou lá porque é que a sociedade não chega? Não é sustentável mantermos uma mentalidade de culpabilização e estigma que inibe quem sofre de procurar ajuda. Quanta coragem necessita alguém que pede apoio e encontra a discriminação nos próprios profissionais de saúde? Quanta culpa e vergonha sentem? Chega de acusar! Todos somos culpados. Porque não prevenimos e agora não tratamos!

Autor: 
Dra. Carolina Neves - Endocrinologista e coordenadora Clínica da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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