Entrevista

Monitorização remota de doentes em risco permite redução da morbilidade associada à insuficiência cardíaca

Atualizado: 
19/02/2020 - 12:03
Considerada a principal causa de internamento hospitalar em pessoas acima dos 65 anos, estima-se que a insuficiência cardíaca afete cerca de meio milhão de portugueses. Com o objetivo de contrariar esta tendência, o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte desenvolve, desde 2017, um programa de monitorização à distância para doentes de risco com resultados muito positivos nesta área. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Dulce Brito, cardiologista coordenadora do projeto RICA- HFteam, mostra que, para além da redução de reospitalizações e do número de mortes, este programa permite ainda uma melhoria significativa na qualidade de vida dos doentes.

A insuficiência cardíaca (IC) é uma condição crónica que afeta milhões de doentes em todo o mundo e que, apesar dos tratamentos disponíveis, continua associada a um elevado número de hospitalizações e mortalidade. Neste sentido, e ainda antes de abordarmos a importância da telemonitorização dos doentes com IC, pergunto-lhe o que falta fazer em matéria de prevenção?

Prevenir a IC é, em primeiro lugar, informar sobre a importância do controlo/tratamento dos fatores de risco cardiovascular (CV) – hipertensão arterial, diabetes, tabagismo, excesso de peso, sedentarismo – pois estas situações propiciam o desenvolvimento de doença cardíaca e vascular. E quando o coração fica afetado, deixará de funcionar normalmente, evoluindo para IC. Em segundo lugar, o diagnóstico precoce de disfunção cardíaca nos doentes em maior risco poderá levar não só a medidas de tratamento que potencialmente podem impedir o agravamento da situação e a evolução para IC clínica, como conduzir a um diagnóstico da causa subjacente, a qual poderá ser suscetível de correção.

Para ajudarmos a entender em que consiste e a sua gravidade, peço-lhe que nos explique o que é e quais as principais causas da Insuficiência Cardíaca? A que sintomas devemos estar atentos e quem está em risco?

A “insuficiência cardíaca” traduz a incapacidade do coração de cumprir a sua função duma forma eficaz, ou seja, a de fornecer ao organismo a quantidade de sangue necessária em cada momento. Tal incapacidade surge ou porque o coração não tem “força” para tal, ou porque apenas o consegue fazer à custa de um esforço demasiado, anormal. Surgem então os sintomas e/ou sinais desse esforço ou dessa incapacidade, sendo os mais comuns a sensação de cansaço/fadiga ou “falta de ar” em situações que previamente não os causavam e os edemas (nomeadamente nos membros inferiores). No doente com IC, a ocorrência de arritmias não é rara, podendo estas manifestar-se como “palpitações” ou mesmo causar perda de consciência ou fatalidade. Dependerá da causa subjacente à IC e/ou da sua gravidade ou até de outras situações ou doenças que possam também coexistir.

As causas que podem estar na origem de IC são várias e algumas podem existir em simultâneo no mesmo indivíduo. Entre as mais comuns estão a doença coronária (estreitamento ou mesmo obstrução das artérias coronárias, as quais levam sangue ao próprio coração para o funcionamento deste), a hipertensão arterial (que, quando não controlada, impõe uma “carga” grande ao coração e aos vasos), as doenças das válvulas cardíacas (que podem estar presentes desde cedo ou desenvolverem-se ao longo da vida, quer por doença adquirida, quer mesmo pelo avançar da idade), doenças do próprio músculo cardíaco (“miocardiopatias”) – muitas vezes de origem genética, outras também de origem adquirida (como as associadas ao consumo de bebidas alcoólicas, substâncias ou medicamentos tóxicos para o coração, ou inflamação cardíaca de causa viral, por exemplo). Na verdade, atendendo às causas que referi (e que são apenas ilustrativas), há vários fatores ou condições que podem colocar as pessoas em risco de IC, mas devemos preocupar-nos principalmente com aquelas que, além de mais frequentes, são potencialmente evitáveis, nomeadamente a doença coronária e a hipertensão arterial não-tratada. Aqui voltamos ao problema da prevenção primária, que referi na resposta à sua primeira pergunta. Também o doente diabético é de alto risco para o desenvolvimento de IC, pelo que um adequado controlo da doença é fundamental.

Como se trata a insuficiência cardíaca?

Dependerá da causa e tipo de insuficiência cardíaca. Quando a causa é identificada, por vezes pode ser corrigida, o que poderá permitir que a IC não progrida e até, em algumas situações, reverter o quadro, como pode acontecer por exemplo em caso de doença das válvulas cardíacas ou doença coronária, entre outras. No entanto, em situações de IC avançada (destas ou de outras causas), já com lesão cardíaca definitiva, a regressão é improvável. No entanto, a correção da causa subjacente, quando tal é possível, poderá impedir a progressão do agravamento da IC. Independentemente da causa, muitas das situações de IC beneficiam muito do tratamento com fármacos antagonistas neuro-hormonais, os quais permitem grande melhoria dos sintomas e do prognóstico, melhorando também substancialmente a qualidade de vida do doente. Adicionalmente a estes fármacos, outros são também fundamentais para controlo dos sintomas, dos edemas e para o tratamento das arritmias, quando estas o exigem. O mesmo se aplica à terapêutica com dispositivos cardíacos, que podem ser necessários para maior melhoria e para controlo de arritmias.

Qual a importância da telemonitorização de doentes com IC e que doentes são elegíveis para integrar um programa destes?

A monitorização à distância (remota), periódica, de determinados parâmetros do doente (bio-dados) pode permitir, no doente com IC, a deteção precoce de sinais de eventual descompensação (agravamento) da situação, bem como da eventual causa dessa mesma descompensação. Tal levará a uma intervenção terapêutica por parte do profissional de saúde, a qual, feita atempadamente, poderá impedir o agravamento da IC e tenderá a evitar a necessidade de hospitalização. A importância da monitorização remota (“telemonitorização”) torna-se assim óbvia. A eficácia deste tipo de instrumento dependerá naturalmente do tipo de programa, incluindo os bio-dados escolhidos para monitorizar, a frequência com que são efetuados, a adesão do doente às medições (fator decisivo no processo), da interpretação adequada dos parâmetros pelo profissional de saúde (integrada no contexto da situação clínica individual do doente) e, aspeto fundamental, da ação (resposta) adequada e atempada por parte deste. Não adianta monitorizar os bio-dados se não for possível existir uma resposta dirigida para uma situação de potencial descompensação de IC. De notar que temos estado a falar de monitorização remota não-invasiva mas que há também formas de monitorização invasiva de outros bio-dados, proporcionadas por dispositivos implantados (cardíacos ou vasculares) e que fornecem duma forma direta informação importante relativa quer a descompensação de IC potencialmente eminente, quer à ocorrência de arritmias cardíacas.

Em relação aos doentes “elegíveis”, depende do que se pretende com a monitorização remota. Como referi acima, habitualmente pretende-se a deteção precoce de potencial descompensação de IC e, atuando, evitar hospitalização do doente (a qual se associa a maior morbilidade, pior qualidade de vida, “custos” diretos e indiretos elevados, e maior mortalidade). Mas outros objetivos podem existir com a monitorização remota, nomeadamente na área das doenças crónicas. Naturalmente que muitas pessoas com IC (ou outras doenças crónicas) se consideram mais “seguras” se tiverem um profissional de saúde a vigiar os seus bio-dados com grande periodicidade ou mesmo diariamente. No entanto, com outras isso não acontece e o problema da não-adesão às medições por parte do doente quando é monitorizado durante períodos de tempo muito prolongado (meses ou anos) pode ser uma realidade em programas deste tipo. Adicionalmente, a monitorização remota não é um tratamento, mas um instrumento para melhor vigiar os doentes em maior risco de descompensação. Assim, no nosso programa (e de acordo com o que está descrito na literatura em termos de eficácia), temos considerado como elegíveis os doentes com IC e fração de ejeção diminuída que tiveram episódio de descompensação com internamento no último ano. No entanto, tal não significa que doentes com IC e outras características não possam beneficiar de monitorização remota. Como referi, dependerá dos objetivos que se pretendem e do tipo de programa.

Na prática em que consiste a telemonitorização, que parâmetros são avaliados e como é feita essa avaliação? Que equipamentos são necessários? O doente aprende a usá-los?

Quando falamos aqui em “telemonitorização” estamos na verdade a falar da monitorização à distância, não-invasiva, de determinados parâmetros do doente, que este avalia numa base periódica (geralmente diária) e que são enviados automaticamente (via wireless) para uma “estação” (plataforma electrónica) onde são “lidos” por profissionais de saúde e interpretados de acordo com algoritmos pré-definidos para cada doente. Em caso de “anormalidade” de algum bio-dado é gerado um “alerta”, o doente é contactado, o médico também, e são tomadas as ações consideradas adequadas à situação em causa. Os bio-dados avaliados podem ser variados, mas no programa que realizamos incluem basicamente a pressão arterial, frequência cardíaca, peso, temperatura corporal, saturação periférica em oxigénio e electrocardiograma. Avaliamos também a atividade do doente (número de passos diários).

Todos os dispositivos necessários a estas avaliações são colocados em casa do doente e o mesmo é ensinado (bem como os cuidadores) em relação à sua utilização (como fazer as medições e como as transmitir). Outros parâmetros (inclusive laboratoriais) podem ser avaliados em caso de suspeita de descompensação.

Naturalmente que há sempre um período de “treino” inicial com cada doente, para a sua necessária adaptação. Aliás, também em relação ao próprio programa de monitorização e aos profissionais de saúde envolvidos, é necessário não só um “desenho” inicial do programa e da metodologia do mesmo bem pensados e adequados aos objetivos pretendidos, como uma aprendizagem nas fases iniciais, testando essa adequação e a sua exequibilidade prática. O que parece inicialmente ser um programa ideal pode, quando testado na prática, não resultar, exigindo modificações em termos de aplicação clínica. Ao longo da nossa experiência de dois anos já fizemos algumas modificações metodológicas.

O que foi possível alcançar, nestes dois últimos anos, com o programa de telemonitorização desenvolvido no Centro Hospitalar universitário Lisboa Norte?

Avaliámos a eficácia do programa após o primeiro ano de seguimento. De realçar que a taxa de adesão à TM por parte dos doentes foi de 92%. Foi possível obter uma diminuição significativa na taxa de hospitalizações e/ou mortalidade (por IC ou qualquer outra causa), comparativamente ao observado na população com as mesmas características mas seguida sem o apoio de monitorização remota (previamente ao início do programa). Também, na população sob TM, se obteve maior melhoria (significativa) na classe funcional (NYHA), na qualidade de vida, e nos níveis de NT-proBNP, e o número de dias perdidos ao longo de um ano devido a hospitalizações não-programadas foi significativamente menor. A capacidade funcional, avaliada no início do programa e após um ano, também mostrou grande melhoria.  

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.