Maioria das pessoas com Perturbação da Personalidade desconhece o diagnóstico e acredita que essa é a sua “forma de ser”
Estima-se que cerca de uma em cada dez pessoas sofra de uma perturbação da personalidade. No entanto, este número, explicam os estudos, é um número geral que envolve todos os tipos de perturbações de personalidade. Uma vez que este é um tema pouco abordado e pouco reconhecido na sociedade, começo por perguntar o que configura uma perturbação de personalidade e que fatores podem estar na sua origem? De que estamos a falar quando falamos de Perturbação de Personalidade?
A personalidade pode ser definida como um conjunto de características individuais e relativamente estáveis, ou seja, traços de personalidade, que determinam a forma como cada pessoa perceciona, se relaciona e pensa acerca de si própria, dos outros e do meio que a envolve em circunstâncias particulares. Quando estes traços de personalidade são inflexíveis e desadaptativos e, por isso, causam sofrimento para a própria pessoa ou interferem negativamente na sua relação com os outros, é considerada uma perturbação da personalidade (PP). A OMS define as PP como um conjunto de modalidades de comportamento persistentes e duradouras que consistem em reações pessoais e sociais inflexíveis a situações de natureza muito variada. Representam extremos ou desvios significativos das perceções, pensamentos, sentimentos e das relações com os outros em relação aos de um indivíduo médio numa determinada altura.
Eventos de vida adversos, principalmente durante a infância, como abusos sexuais e mãe com sintomas depressivos ou ansiosos, são alguns dos fatores que aumentam o risco de perturbação da personalidade.
Que tipos de Perturbações de Personalidade existem? E quais as principais características de cada uma delas?
Os comportamentos exibidos pelos doentes com Perturbação da Personalidade (PP) são extremamente variáveis e dependem dos traços (características) de personalidade que apresentam, bem como da sua gravidade. Isto significa que temos PP nas quais as pessoas sentem que não têm qualquer valor, apresentam emoções como ansiedade e tristeza bem como comportamentos de isolamento e evitamento, têm tendência a hipervalorizar as críticas e a interpretar as atitudes dos outros como negativas, e, em contraste, temos outras PP caracterizadas por um sentimento de autoestima insuflado, com dificuldade em se colocar no lugar do outro, tendência para desvalorizar a crítica e manipular os outros para benefício próprio. Estes dois exemplos ilustram a grande heterogeneidade deste diagnóstico. Na versão mais recente do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, as PP são divididas em 3 grupos principais, com base nas características comuns entre elas, com o objetivo de facilitar a categorização e memorização das diferentes PP. Desta forma, temos o Cluster A, que inclui as PP Paranóide, Esquizóide e Esquizotípica, caracterizadas por traços de excentricidade e características peculiares; o Cluster B, que inclui as PP antissocial, borderline, histriónica e narcísica, que por sua vez são indivíduos dramáticos/emotivos, com instabilidade emocional e comportamental bem como grandes dificuldades em se adaptarem socialmente; e, por fim, o Cluster C, que inclui as PP evitante, dependente e obsessivo-compulsiva, que inclui os indivíduos mais ansiosos e neuróticos.
Como é feito o diagnóstico e que pode condicionar ou dificultar a identificação de uma perturbação de personalidade?
O diagnóstico é clínico, ou seja, é feito com base na identificação de um padrão estável e de longa duração de comportamentos ou de vivências, que são determinados pela presença de certos traços/características da personalidade, que levam a um sofrimento pessoal significativo e interferem na vida do doente. Existem também entrevistas psicológicas e testes para avaliação da personalidade que podem auxiliar no diagnóstico. A identificação desta perturbação pode ser dificultada pela presença de outras doenças que podem ter sintomas semelhantes, como é o caso das perturbações de ansiedade, perturbações depressivas e doença bipolar, por exemplo.
É possível conviver com mais do que uma perturbação de personalidade?
Sim, é relativamente frequente as pessoas diagnosticadas com uma Perturbação da Personalidade (PP) apresentarem sintomas que permitem fazer o diagnóstico de pelo menos outra PP. Isto deve-se ao facto de existir uma grande sobreposição de sintomas entre as diferentes PP, principalmente entre as PP do mesmo cluster. Este facto tem sido alvo de grande discussão entre a comunidade científica no sentido de se criar um modelo de classificação que permita melhorar o diagnóstico destas Perturbações.
Quem sofre de uma perturbação de Personalidade tem noção de que é, pelo menos, diferente?
A maioria das pessoas que têm uma Perturbação da Personalidade (PP) não tem consciência disso porque é a sua “forma de ser” e não percebe que o sofrimento que vai sentindo e as dificuldades que vai tendo na relação com os outros, no trabalho e noutras áreas da sua vida é devido a características da sua personalidade. Desta forma, o que mais frequentemente leva as pessoas com PP a procurarem ajuda são queixas relativas a outras doenças psiquiátricas associadas.
Neste sentido, tendo em conta a sua experiência, quando estes casos são diagnosticados, o diagnóstico acontece por acaso – ou seja, surge depois da pessoa ter procurado ajuda por outro motivo, como uma depressão -, ou porque o próprio ou familiar teve noção de que algo de errado existe com o seu comportamento?
Geralmente as pessoas com perturbações da personalidade procuram ajuda por causa de outros problemas associados, como por exemplo queixas depressivas, ansiosas ou consumo de substâncias. É raro procurarem ajuda simplesmente pelas questões relacionadas com a personalidade por si só.
O que posso fazer se suspeitar que eu ou um familiar ou amigo parecer ter uma Perturbação de Personalidade?
Sempre que existir suspeita de uma perturbação mental, seja uma perturbação da personalidade ou outra, é aconselhável ser observado por um Psiquiatra de forma a que seja esclarecido o diagnóstico. Isto não se deve apenas ao facto de que muitos sintomas presentes nas pessoas com PP estão também presentes noutras patologias psiquiátricas, mas também ao facto de que é frequente as pessoas com PP terem outras doenças Psiquiátricas associadas.
A partir de que idade podem surgir, ou tornar-se mais evidentes, os primeiros traços ou características de uma perturbação de personalidade?
É importante esclarecer que as características da personalidade são variadíssimas, estão presentes em todas as pessoas desde uma fase muito precoce da vida e vão ficando cada vez mais definidas a partir do final da infância/início da adolescência. Desta forma, só a partir do momento em que estas características da personalidade ficam mais estáveis e definidas é que podemos avaliar se estas são ou não disfuncionais, ou seja, se causam sofrimento pessoal significativo ou interferem negativamente nas diferentes áreas da vida da pessoa (laboral, académica, pessoal, entre outras).
Existe tratamento para as perturbações de personalidade? Para que serve a terapia, por exemplo, nestes casos?
O tratamento de cada uma das diferentes PP deve ser individualizado e tem diferentes particularidades. No entanto, regra geral, a psicoterapia constitui a base do tratamento, reservando-se as estratégias farmacológicas para as alterações sintomáticas agudas, como por exemplo períodos de maior instabilidade afetiva, e para o tratamento de outras doenças psiquiátricas associadas, como é o caso dos episódios depressivos e perturbações de ansiedade. A terapia tem o objetivo de, entre múltiplas outras coisas, capacitar as pessoas com PP de estratégias para lidar de forma mais adaptativa com as adversidades e ajudá-las a modificar os comportamentos e/ou pensamentos menos saudáveis.
Quais as principais complicações ou consequências que as Perturbações de Personalidade têm a nível pessoal e social?
A nível social, as pessoas com PP do Cluster A tendem a ter uma relação mais distante ou conflituosa com os outros na medida em que não retiram muito prazer da interação com os outros ou são tão desconfiadas que têm dificuldade em manter relações próximas com alguém. Já a nível pessoal, podem ter objetivos de vida mal definidos, um leque de interesses reduzido ou terem dificuldade em confiar nos outros.
Por outro lado, nas pessoas com PP do Cluster B as relações interpessoais são geralmente mais instáveis, conflituosas e/ou superficiais, e estas pessoas têm uma maior dificuldade em reconhecer as necessidades e os sentimentos dos outros. A nível pessoal, podem apresentar um sentido de identidade e autoimagem instáveis e pouco desenvolvidos, uma necessidade de ser admirado/reconhecido pelos outros ou serem demasiado centrados em si próprios.
Finalmente as pessoas com PP do Cluster C podem apresentar relações caracterizadas por comportamentos de submissão ou apego excessivo ou, por outro lado, podem apresentar uma maior tendência para se isolar e evitar estabelecer relações mais próximas. São geralmente pessoas com crenças de inferioridade ou inadequação, com tendência a desvalorizar as suas qualidades ou a serem demasiado críticos e exigentes consigo próprios.
Na sua opinião, por que motivo pouco se fala sobre as Perturbações de Personalidade? Quais os principais mitos ou estigmas associados?
Não nos parece que o problema resida no facto de se falar pouco de Perturbação da Personalidade, sendo inclusive um diagnóstico muito comum no ambiente hospitalar e em ambulatório. A principal dificuldade reside na linha ténue entre o normal e o patológico. Se por um lado estas características são muitas das vezes associadas a uma falha de carácter, por outro lado geram imensa contra atitude nos outros, sendo uma das maiores dificuldades a interação e a prestação de cuidados a esta população. Por fim, as diminutas soluções terapêuticas são outra importante limitação na abordagem. É necessário haver um maior investimento científico na área, para melhor compreensão e abordagem das mesmas.