Entrevista

“Já não é possível falar de saúde sem considerar o papel da tecnologia”

Atualizado: 
27/01/2021 - 15:30
“Os desafios colocados pela pandemia atual criaram um imperativo para as empresas reconfigurarem as suas operações - e uma oportunidade de transformá-las”, quem o afirma é Filipa Fixe, Executive Board Member da Glintt - empresa líder em consultoria e serviços tecnológicos na Saúde -, com quem o Atlas da Saúde esteve à conversa. E, embora o país ainda enfrente alguns desafios quanto à sua transformação digital, o eHealth veio, em tempo recorde, para ficar.

Em plena pandemia, e sem tempo para se prepararem, a verdade é que os hospitais tiveram de adaptar o seu modelo de gestão passando a integrar completamente as tecnologias de informação. O que é que mudou na organização dos serviços hospitalares?

No início do aparecimento deste vírus, a OMS e o Ministério da Saúde definiram o isolamento social como uma das medidas mais eficazes para impedir que o número de infetados aumentasse. Desta forma muitos dos serviços presenciais e programados foram adiados e cancelados. Perante este contexto, tornou-se urgente implementar novas soluções que possibilitassem continuar a prestar cuidados de saúde mesmo que à distância.

Surgiu então o eHealth, colocando a Telemedicina e a Telemonitorização como potenciais alternativas e soluções complementares para o sistema de saúde. Ainda que estas ferramentas não sejam exatamente uma novidade, não era até agora uma prática tão recorrente quanto se gostaria.

Mas, apesar das exigências colocadas, o sistema nacional de saúde conseguiu mudar rapidamente. E vários foram os exemplos implementados: médicos, enfermeiros, farmacêuticos e psicólogos, e nutricionistas que, de forma rápida, se reinventaram e estão a acompanhar os seus doentes à distância de um click.

Os modelos de colaboração remota são uma realidade que veio para ficar e tal como o trabalho remoto que assistimos noutros setores de atividade, vamos assistir a um novo modelo de prestação de cuidados de saúde no período pós pandemia. Segundo um estudo da McKinsey, “The next normal arrives: Trends that will define 2021—and beyond” (Jan, 2021), os CEO de alguns hospitais nos EUA acreditam que futuramente a telessaúde poderá representar 30 % de toda a sua atividade.

O desafio de curto prazo, então, é passar da reação à crise para construir e institucionalizar o que foi bem feito até agora. Para as indústrias de consumo, e particularmente para o retalho, isso pode significar melhorar os modelos de negócios digitais e omnicanal. Para a saúde, trata-se de estabelecer opções virtuais como norma. Os desafios colocados pela pandemia atual criaram um imperativo para as empresas reconfigurarem as suas operações - e uma oportunidade de transformá-las. Na medida em que o fizerem, haverá maior produtividade e mais saúde e bem-estar para cada pessoa.

Qual o balanço que faz da introdução da telemedicina, na sua generalidade, no Serviço Nacional de Saúde? Na sua opinião este é um serviço que veio para ficar?

Claramente! As TIC´s e os modelos de prestação de cuidados de saúde à distância já existiam mesmo antes da pandemia. A pandemia acelerou a sua implementação de forma mais alargada e persistida num período de meses e que por norma demoraria anos. Esta onda de aceleração tecnológica deve continuar no momento pós-pandemia, com uma arquitetura de referência que defina a resiliência das infraestruturas, a interoperabilidade, a recolha de dados de forma segura e anonimizada e a usabilidade das soluções por parte dos utentes, profissionais de saúde e gestores.

A telemedicina em concreto não substitui as consultas presenciais com os profissionais de saúde, mas deve ser considerada numa relação contínua médico/enfermeiro – utente, de forma a garantir os melhores resultados em saúde.

Para garantir a sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde, cada país deve garantir que a saúde é hoje e no futuro suportada por tecnologias de informação que facilitem a jornada de cada pessoa e de cada profissional nas unidades de Saúde e fora delas.

As ferramentas de ehealth (telemedicina, telemonitorização, IA, machine learning…) vieram claramente para ficar muito para além da pandemia atual de COVID-19. Com um crescente interesse e disponibilidade entre médicos, consumidores e pagadores, é o momento de estimular e garantir a continuidade destas tecnologias no ecossistema alargado da saúde. Como referiu Robert Schuller, Tough Times Never Last, but Tough People Do.

Independentemente, de os hospitais estarem preparados para a introdução das tecnologias da informação no seu dia a dia, acha que o país está pronto para esta “conversão”? O que acontecerá às populações mais carenciadas, ainda que esta também seja uma oportunidade de aproximar doentes de zonas remotas aos seus médicos?

Tendo em conta, a alta taxa de transmissão deste vírus, é essencial que se otimize a assistência à saúde e se criem novos modelos de assistência populacional. Neste contexto, a telemedicina e telemonitorização podem ser, sem dúvida, fortes aliados dos sistemas de saúde, principalmente quando se considera a importância da prevenção e da necessidade de não continuar a sobrecarregar os hospitais e outras instituições de saúde.

A jornada de saúde e bem-estar de cada individuo é cada vez mais sustentada em tecnologia e numa lógica de “gamificação”. A “Gamificação” pode e deve ser implementada para que cada um de nós consiga gerir a sua saúde através de um smartphone. Na fase da doença, a gestão da doença cronica pode ser realizada com recurso a telemedicina e telemonitorização em conjunto, garantindo que a recolha dos nossos parâmetros em tempo real permite antecipar e evitar eventos agudos que têm impacto profundo na qualidade de vida dos doentes e nos sistemas de saúde e na produtividade dos países.

O envolvimento das pessoas na gestão da sua saúde com recurso a tecnologia permite um maior envolvimento no seu autocuidado e na sua procura constante por mais informação e mais qualificada. É importante que a implementação de tecnologia na área da saúde envolva desde início o cidadão, os profissionais de saúde, a entidades gestoras e as estruturas de proximidade para que ninguém fique excluído. Temos bons exemplos de implementação de tecnologia ao serviço do cidadão que podem ser adaptadas e implementadas na área da saúde.

No combate à pandemia, que recursos tecnológicos dispõem hoje os hospitais? Que soluções desenvolveu a Glintt?

Como exemplo, no dia 8 de abril de 2020 lançamos juntamente com a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), em colaboração com a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma ferramenta gráfica destinada a ser utilizada por especialistas seniores em planeamento de cuidados de saúde e decisores políticos. A ADAPTT Surge Planning Support Tool. A ferramenta é flexível, permitindo que os utilizadores dos vários países insiram os seus dados epidemiológicos, variem os cenários de mitigação (ao usar o modelo epidemiológico ilustrativo da ferramenta) e adaptem a ferramenta a diferentes attack rates. A ADAPTT possibilita a introdução das práticas e atividades hospitalares, assim como a capacidade de diferentes tipologias de camas e de recursos humanos (usando os códigos ISCO da OIT). Através desta ferramenta é ainda possível determinar os incrementos de necessidade de recursos humanos, devido à probabilidade de infeção dos profissionais de saúde.

Apostámos também em soluções teleconsulta, com parceiros e através do nosso software hospitalar – o Globalcare – que permitem a prestação de Cuidados Sociais e de Saúde sem barreiras e à distância de um click:

Para os mais céticos, ou para os “conspiracionistas”, quais as vantagens de um serviço nacional de saúde tecnológico?

Ficar em casa e recorrer numa primeira fase aos serviços digitais, contribui para a redução de deslocações e todo o desconforto a ele associado, promove também a diminuição do contágio e, por outro lado, permite uma recuperação mais célere e um maior conforto para o doente e respetivos familiares e/ou cuidadores informais. Os atos médicos, de enfermagem e de orientação farmacêutica presenciais não podem ser substituídos pelo acompanhamento remoto. As ferramentas digitais devem ser consideradas como um complemento para que seja possível mitigar o risco de contágio, encurtar as distâncias e garantir uma relação de continuidade entre o profissional de saúde e os seus utentes.

Caminhamos, atualmente, para uma visão centrada nas pessoas, onde a tecnologia é a base. O consumidor de cuidados de saúde tem vindo a tornar-se cada vez mais exigente e, como tal, procura mais tecnologia que possa contribuir para o seu bem-estar. Adicionalmente, o consumidor atual de cuidados de saúde procura mais conveniência e é a favor de uma relação de proximidade e confiança com o seu médico ou enfermeiro e, para isso, apoia-se nos meios tecnológicos de que dispõe.

Efetivamente, os profissionais de saúde mais digitais, os utilizadores e os fornecedores de sistemas de informação reconhecem a existência de um mundo de oportunidades no que à utilização de tecnologias como a IA, a IoT e da Telemedicina no setor da saúde dizem respeito. No entanto, torna-se urgente que estas ferramentas ganhem maturidade, assim como se deve apostar na credibilidade e na usabilidade deste tipo de soluções, para que cada vez mais os profissionais de saúde e os administradores hospitalares possam introduzi-las no seu dia-a-dia e acima de tudo que cada individuo as utilize no seu dia-a-dia.

E quanto a desvantagens? Acha que a tendência será perder a ligação entre médicos e pacientes?

Atualmente, é impossível falarmos de saúde sem automaticamente a associar à inovação tecnológica que está a ocorrer e que é cada vez mais notória neste setor. De facto, a tecnologia permite uma melhor gestão dos cuidados de saúde e torna-se fundamental para assegurar o princípio da equidade, beneficiando todos os cidadãos, sem exceção e sem marginalizar os que se encontram a grandes distâncias dos grandes centros urbanos ou com maiores dificuldades económicas.

Com o apoio da tecnologia, conseguimos aliviar o sistema e melhorar a perceção do utente sobre os sistemas de saúde. Por outro lado, estamos também a permitir que os médicos, enfermeiros e terapeutas se possam dedicar aos casos clínicos mais complexos e exigentes. A tecnologia tem de servir como um apoio, tanto do ponto de vista administrativo como clínico.

Como diz Michio Kaku, físico americano, “as próximas duas grandes indústrias a serem impactadas pelo mundo digital são a medicina e a educação. Teremos mais poder num smartphone do que um hospital universitário e moderno tem hoje. Apesar dos rápidos avanços da tecnologia, os humanos continuarão a ser fundamentais na tomada de decisão”.

Embora saibamos que o futuro será dominado pelo avanço da tecnologia, não deve ser aquilo em que nos tornamos. Todos somos muito mais felizes quando temos experiências pessoais e relacionamentos agradáveis. Importa saber balançar o contacto com o digital e a presença massiva de tecnologia na nossa vida com estas experiências pessoais, retirando apenas e só o de que melhor nos pode trazer a tecnologia. No campo da Saúde, sabemos que estamos a abraçar a ciência mais do que nunca, mas importa antecipar e garantir que a Saúde está preparada para abraçar esta onda digital.  

A relação contínua entre profissional de saúde e cidadão deve ser mais próxima através da tecnologia. Para que tal se concretize é fundamental apostar na formação continua na área do digital, na literacia em saúde e na definição de processos que permitam implementar de forma transversal as novas tecnologias na área da saúde.

Como imagina o futuro de medicina dentro de 10 anos, por exemplo?

Já não é possível falar de saúde sem considerar o papel da tecnologia. Os hospitais e as farmácias, por exemplo, tomam cada vez mais partido de plataformas informáticas, que se tornaram um apoio fundamental no seu dia a dia. Os softwares que existem, hoje em dia, permitem criar perfis e acompanhar cada utente, desde a fase da prevenção ao tratamento, possibilitando assim melhores cuidados de saúde, a custos controlados. A tecnologia assegura, cada vez mais, a sustentabilidade dos sistemas de saúde e o caminho é este.

Hoje em dia, a experiência num hospital continua a ser: chegar, dirigir-se a um posto administrativo, passar por uma triagem, ser encaminhado para um médico especialista, receber alta ou continuar a tratamento no hospital. O que é um processo moroso, de longas esperas e períodos sem qualquer tipo de informação, para um consumidor habituado a ter a conta bancária, por exemplo, sempre à mão. A triagem podia ser feita, por exemplo, por um algoritmo pré-definido e/ou com um chatbot, dependendo da severidade, que identifica se o utente tem de ir para uma sala de urgência ou se pode ser atendido, remotamente, por uma teleconsulta, ou se deve ir a uma unidade de cuidados primários.

O futuro da saúde passa por tratar dos saudáveis antes que fiquem doentes através da descentralização, da minituriazação e da personalização, capacitando o cidadão e habilitando os profissionais de saúde.

O que pode e deve melhorar nesta área?

Quanto ao que deve melhorar, Portugal enfrenta, atualmente, ainda alguns desafios em relação a um maior desenvolvimento neste campo. Apesar de 87% dos hospitais públicos recorrerem à telemedicina - de acordo com uma pesquisa realizada - apenas 44% dos profissionais de saúde estão, realmente, motivados para a sua utilização, segundo o Barómetro de IA e Telessaúde, desenvolvido pela Glintt em conjunto com a APAH em 2019. Além disso, ainda existe uma visível falta de know-how e de infraestruturas de TI adequadas nesta valência. Porém, e se antes já se tinha identificado que 64% dos consumidores afirmavam que era conveniente ter acesso à saúde virtual, agora, mais do que nunca, faz todo o sentido o desenvolvimento e adoção de soluções digitais neste setor.

No entanto, de acordo com o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal assume uma posição muito interessante no que respeita a estatísticas relacionadas com a adoção de tecnologia e fundamentalmente, no que toca à implementação de medidas focadas na transformação digital, o que leva a crer que o nosso país tem muito potencial para se tornar um país altamente digitalizado no setor da Saúde e não só. A título de exemplo, em 2019, a informação de Saúde disponibilizada online situava-se nos 50,7% vs. 46,3% nos restantes países da OCDE. No que diz respeito à utilização de serviços e Governo, a percentagem é 46% vs. 45,6% nos restantes países da OCDE.

Perante esta realidade, Portugal é um país pioneiro e um modelo de sucesso em muitas iniciativas relacionadas com a transformação digital na área da saúde. A adoção massiva do Processo Clínico Eletrónico é um excelente exemplo disso, podendo ser considerado, nos dias de hoje, como uma das fontes agregadoras de informação clínica mais relevante no contexto da saúde digital. Por outro lado, a rápida adoção da prescrição eletrónica de medicamentos a nível nacional é um outro exemplo de colaboração entre entidades públicas e privadas para atingir um objetivo comum, que tem benefícios clínicos com um claro impacto na estrutura de custos para o país, sendo considerada uma referência Europeia.

Neste sentido, acredito que Portugal e, fundamentalmente, os vários stakeholders do ecossistema da saúde detêm a motivação certa para contribuir para um país extremamente competitivo e pioneiro na digitalização e sustentabilidade do setor da saúde.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Glintt