Entrevista

“Foi a nossa natureza social que nos fez aligeirar a responsabilidade individual de proteção e prevenção”

Atualizado: 
18/02/2021 - 16:01
Atuando na linha da frente do combate à pandemia, o médico intensivista André Simões não tem dúvidas de que o país se podia ter preparado melhor para enfrentar a mais recente vaga de Covid-19. Os números não enganam e revelam que Portugal passou de melhor a um dos piores países no mundo em termos de infeções e mortes provocadas pelo novo coronavírus. Em entrevista Atlas da Saúde, o especialista revela que espera que os erros não se voltem a repetir. “A vacina trará alguma acalmia após completado o período de imunidade, mas sabemos pouco sobre a sua duração a longo prazo e do seu verdadeiro impacto no «mundo real»”, sublinha.

O último balanço mundial mostra que a pandemia do novo coronavírus matou, pelo menos, 2.408.243 pessoas em todo o mundo desde que a China relatou o primeiro caso da doença no final de dezembro de 2019.  Os dados da DGS mostram que, em Portugal, já morreram mais de 15 mil pessoas e quase 800 mil foram infetadas. Alguma vez pensou que chegaríamos a estes números?

Os números são, de facto, arrebatadores e volvido um ano diria que não estão concluídos. Não só a taxa de infeção global é significativa (especialmente em Portugal onde na terceira vaga se registou o pior balanço mundial), como a facilidade na transmissão do vírus, inerente ao mesmo, mas também ao descuido da proteção individual, culminaram nesta pandemia. Olhando para os registos do passado, a situação adivinhava-se como potencialmente global. Os mais astutos e cautelosos foram-se preparando gradualmente, adotando medidas para tentar travar a disseminação e, posteriormente, adaptando as condições dos hospitais para albergar tamanha vaga de internamentos.

O impacto das restrições à mobilidade nacional e internacional não foram claramente suficientes para travar a disseminação deste vírus e todos acompanhávamos a evolução da situação através dos gráficos disponibilizados online e em direto sobre novos casos em cada país. Perante esta realidade, em parte acompanhada de inércia na tomada de decisões económicas e que implicassem a mobilidade das pessoas, fomos vendo o alastrar de manchas vermelhas que tomavam de assalto esses mapas de forma galopante, o que e a determinada altura tornou impensável não achar que estaríamos perante uma ameaça global que deixou de estar localizada a um ponto cardinal.

Na sua opinião em que é que falhámos para passarmos a ser um dos piores países do mundo em termos de infeções e mortes por Covid-19?

Olhando para março de 2020 e para a situação que Itália e Espanha atravessaram, teria sido prudente termos adotado medidas preventivas. Não que elas não tenham sido criadas, mas talvez não totalmente no tempo e forma adequados.

Depois coloca-se a questão da comunicação - a forma e o conteúdo do que foi dito aos portugueses de modo a cumprirem o confinamento. Se inicialmente, talvez movidos pelo medo do desconhecido, fomos cumprindo o distanciamento e o confinamento domiciliário, o mesmo não se verificou na terceira vaga, de tal maneira que passámos de exemplo do melhor para exemplo do pior. Para isso também contribuiu o aligeirar das medidas nas épocas festivas, levando ao aumento significativo de novos casos. Foi a nossa natureza social – a necessidade do contacto – que provavelmente também nos fez aligeirar a responsabilidade individual de proteção e prevenção. Infelizmente muitos perderam a vida, familiares ou amigos, fazendo com que uma importante época festiva se transformasse num dia sombrio, sem possibilidade de retorno.

Estando na linha da frente do combate à pandemia, o que é que, neste momento, mais o preocupa?

Agora que, aparentemente, estamos na fase descendente da curva de infeção da terceira vaga, a preocupação da disponibilidade de camas de Medicina Intensiva parece não ser o mais importante. Mas esta questão já foi fundamental, não só o número de camas, como também a reduzida disponibilidade de médicos Intensivistas para cuidar das pessoas lá internadas. Felizmente verificámos entreajuda das várias especialidades, que mesmo não estando familiarizadas com a especificidade deste tipo de cuidados foram cruciais para conseguirmos assegurar progressivamente mais camas de internamento.

Também nas outras enfermarias verificou-se a mesma situação, com cargas assistenciais brutais que apenas foram possíveis de ultrapassar com o companheirismo entre Médicos e outros grupos profissionais fundamentais para o sucesso – Enfermeiros, Assistentes Operacionais, Fisioterapeutas, entre outros.

No futuro preocupa-me que a vacina traga uma falsa sensação de segurança e liberalismo social e comportamental. Não se prevê que essa condição possa acontecer tão cedo, porque os programas de vacinação estão atrasados, a imunidade de grupo é ainda uma miragem, as novas estirpes têm maior potencial infecioso e o vírus vai continuar a circular.

Preocupam-me, também, os doentes “não COVID”, ou seja, todos aqueles que têm doenças crónicas e deixaram de ter acompanhamento presencial frequente; os que vêm os exames complementares de diagnóstico atrasados pelas condicionantes hospitalares e os que vêm as suas cirurgias adiadas pela necessidade de alocação de profissionais a outros sectores. O impacto desta pandemia vai-se sentir durante muito tempo, não só nas sequelas da doença COVID-19, mas também em todos os outros casos adiados e que de outra forma não teriam desfechos tão complexos.

Tendo em conta a sua experiência, o que podemos esperar nas próximas semanas ou nos próximos meses?

Podemos concordar que uma vasta maioria de pessoas tem infeção assintomática ou doença ligeira e não necessita de internamento. Irá continuar a haver casos de primeira infeção ou reinfeção, porém espero que não atinjam a necessidade de cuidados hospitalares como até agora vimos. A vacina trará alguma acalmia após completado o período de imunidade, mas sabemos pouco sobre a sua duração a longo prazo e do seu verdadeiro impacto no “mundo real”.

Acha que o início da vacinação contra a Covid-19 é o início do fim desta pandemia? Ou preocupa-o o facto de o vírus estar em constante mutação?

A história mostra-nos que as mutações subsequentes habitualmente não trazem maior gravidade. Contudo, temos visto que algumas variantes deste vírus têm infecciosidade ou mortalidade superior à inicialmente isolada em Wuhan. O tempo dará a resposta a esta pergunta.

A vacina trará menos casos graves e essa é a sua grande vantagem. Passando a uma doença menos sintomática ou com sintomas tratáveis no domicílio, a COVID-19 deixará de ter o impacto na saúde, social e económico até agora visto.

Qual a sua opinião sobre o Plano de Vacinação estabelecido no combate à Covid-19? Acha que todos os profissionais de saúde, sem exceção, deveriam ser vacinados, por exemplo?

Acho que deve haver priorização, como a que foi feita. Contudo mesmo assim a prevaricação é elevada, o que levou a alguns profissionais a ficarem de fora. É importante vacinar de forma prioritária os mais fragilizados pela sua condição de saúde e os que trabalham diretamente com esta doença – profissionais de saúde, bombeiros, forças de segurança. Mesmo dentro desses grupos existe naturalmente maior risco em determinados indivíduos, e esses devem ser prioritários.

Este processo de determinar quem tem maior risco traz algumas dificuldades, existindo para isso entidades responsáveis para uma definição pormenorizada sobre os riscos inerentes ao posto de trabalho e condição individual, e depois localmente cabe a cada serviço aplicar essas regras. Dessa forma, existe menos margem para situações duvidosas.

Acredita que vamos conseguir imunizar a maioria da população até ao final do ano?

As variáveis dependentes são muitas, começando pela capacidade de produção da vacina (dos vários laboratórios); da aprovação das várias vacinas pelas entidades competentes; da possibilidade de ter que adequar determinadas vacinas a alguns grupos de pessoas; e inevitavelmente à capacidade de inoculação da população. Quanto mais cedo todo este processo decorrer melhor para todos nós, mas estou certo de que está a ser feito um esforço para manter Portugal num nível de vacinação adequado.

O que falta para os portugueses levarem mais sério este vírus?

Não falta informação nem insistência em transmiti-la através de todos os meios de comunicação social. As pessoas estão cansadas desta situação que se arrasta há mais de um ano, é uma maratona que se vai prolongar ainda mais algum tempo, e penso que seria bom termos um objetivo temporal ao qual as pessoas se possam agarrar e servir de motivação para os tempos que se aproximam. O problema é que não há forma de prever o fim e, como tal, apenas sabemos que estamos a percorrer a maratona, não sabendo onde está a meta.

Acha que as restrições que têm sido aplicadas no país são suficientes para travar o avanço deste vírus?

Ao longo do tempo vimos várias estratégias adotadas noutros países, com graus de eficácia variáveis, mas nenhuma totalmente isenta de algum isolamento. Também percebemos que o poder estrutural de cada país permite viver mais ou menos tempo sob essas restrições, e todos concordamos que elas representam uma machadada na economia, acarretando problemas sociais e de subsistência gravíssimos, que também tem que ser postos na balança.

Em Portugal acompanhámos a adaptação constante das restrições, com necessidade de acentuá-las ao longo das três vagas. O processo de consciencialização da população para a sua importância no controlo da pandemia provavelmente devia ter sido feito de forma mais precoce. No futuro será necessário não cair no mesmo erro, atuar e consciencializar muito mais precocemente para podermos ter as nossas vidas ditas “normais” da maneira mais precoce e duradoura possível

Como tem vivido esta pandemia? O que tem sido mais difícil?

Como a maioria dos portugueses, com limitações na realização de atividades que antes considerávamos banais. Aguardo voltar à minha rotina diária, de conviver de perto com a minha família e amigos e poder concretizar vontades e desejos antigos.  Atualmente a rotina diária é construída no pensamento de como vamos poder ajudar o outro, de como eu próprio conseguirei ultrapassar mais um dia em que, apesar de gostar muito do que faço, acaba por ser cada vez mais cansativo procurar no horizonte a esperança de dias melhores.

Para terminar, que mensagem gostaria de deixar aos portugueses no âmbito deste tema? O que é que todos precisamos de saber sobre este vírus e sua transmissão? Ou que alerta gostaria de fazer?

Sabemos que os portugueses gostam de proximidade e contacto frequente, sendo aspetos que todos sentimos como fazendo parte da nossa cultura e do nosso bem-estar. Contudo, esse é o atual problema: lidar com a dicotomia entre a nossa essência e a imposição de distanciamento que o vírus nos trouxe. Esse é um desafio em que a vacinação de toda a população nos vai ajudar, mas não vai, para já, permitir retornar ao passado. Portanto a recomendação é – protejam-se. Essa medida é suficiente para nos protegermos a nós e aos que nos rodeiam.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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