Entrevista

Em Portugal, apenas 2,8% dos doentes anémicos “estão a ser tratados”

Atualizado: 
26/11/2021 - 10:23
Apesar de ser um problema frequente, estima-se que mais de 80% daqueles que sofrem de anemia desconhecem esta condição. Em entrevista ao Atlas da Saúde, João Mairos, presidente do Anemia Working Group Portugal (AWGP), alerta para a necessidade de estarmos atentos aos sintomas. “Sabemos que as pessoas com anemia estão sujeitas a maior tempo de internamento hospitalar, são mais vezes internadas nos cuidados intensivos após serem sujeitas a cirurgia e têm maior índice de mortalidade”, adianta sublinhando a importância da criação de uma estratégia nacional para prevenir e tratar a anemia.

Estima-se que, em Portugal, cerca de 20% da população sofra de anemia. No entanto, considera-se que uma grande percentagem dos casos se encontra por diagnosticar. Deste modo, pergunto, por que motivo não se dá a devida atenção a este problema? Fala-se pouco sobre o tema?

Penso que sim. Talvez as pessoas estejam pouco alertadas para os sintomas. Talvez estejam centradas noutros problemas. Temos a pandemia a ocupar as nossas preocupações, os problemas do dia-a-dia, a economia… As pessoas podem facilmente atribuir o seu excesso de cansaço diário, a sua dificuldade em concentrar-se no trabalho, a fadiga exagerada, a todas essas coisas. Muitas vezes, demasiadas vezes, será anemia ou simplesmente deficiência de ferro a causar tudo isso. Bastaria estar atento e falar sobre esses sintomas ao seu médico.

Para ajudar a compreender a temática, peço que explique o que é a anemia, quais as causas associadas e que tipos de anemia existem? Quais os mais frequentes?

De forma direta e simplificada, a anemia consiste na diminuição da hemoglobina nos glóbulos vermelhos que entram na constituição do sangue. A hemoglobina é a molécula que, dentro dos glóbulos vermelhos, transporta o oxigénio para todas as células do nosso corpo. Sem esse oxigénio as células não podem respirar e produzir energia. É assim como uma espécie de pilha. Sem energia as células não conseguem realizar as suas funções. É por isso que quando temos anemia nos sentimos fracos, debilitados, cansados.

Existem vários tipos de anemia, desde as de causa hereditária às de causa renal, mas as mais frequentes ocorrem por perdas de sangue (devido a diversas doenças) e por carência de ferro na alimentação. Mais de metade das anemias ocorrem por deficiência de ferro.

De um modo geral, a que sintomas devemos estar atentos?

A anemia, na maior parte das vezes, instala-se de forma insidiosa. Primeiro pode começar por se traduzir por nos sentirmos com menos energia do que habitualmente, com menos concentração nas nossas tarefas, com cansaço fácil, dores de cabeça, depois a pele e as mucosas (lábios, por exemplo) começam a ficar pálidos e o cansaço agrava-se, instala-se fadiga muscular, sentimos tonturas e podem ocorrer desmaios.

Quais as principais complicações da anemia, quando não tratada?

Se a anemia não for tratada pode ocorrer fadiga extrema, insuficiência cardíaca, desmaios frequentes, angina de peito, a doença que está na origem da anemia agrava-se e sabemos que as pessoas com anemia estão sujeitas a maior tempo de internamento hospitalar, são mais vezes internadas nos cuidados intensivos após serem sujeitas a cirurgia e têm maior índice de mortalidade.

Podemos falar em grupos de risco?

Diria que sim. As mulheres, sobretudo as jovens entre os 18 e os 34 anos, as grávidas, os recém-nascidos e crianças, os doentes de cancro, as pessoas que sofrem de doença crónica e os idosos.

Como se trata a anemia?

Em primeiro lugar trata-se a doença que está a causar a anemia (excluindo os casos, menos frequentes, de a anemia ser hereditária). É frequente acontecer, por exemplo, uma mulher ter menstruações muito abundantes e nunca ter investigado a causa. Não valorizou. Por vezes até acha normal. Quando se investiga a causa descobre-se, por exemplo, que sofre de pólipos uterinos. Tratam-se os pólipos, trata-se a anemia e o

problema fica resolvido. Outras vezes são pessoas que sofrem de doença colo-rectal ou têm doença renal na base da sua situação de anemia. Os tratamentos são por isso muito diferentes e direcionados para a doença de base. A anemia, nessas situações, é a consequência e não a causa, mas nem por isso carece de grande atenção e de tratamento adequado. Muitas vezes o tratamento da causa é cirúrgico. Este aspeto é muito importante, pois sabe-se que, na União Europeia, 20 a 40% das cirurgias major são efetuadas em doentes com anemia não corrigida. Este facto sujeita os doentes ao risco demasiadamente elevado de terem que ser transfundidos. Por esta razão se começa agora a falar (embora demasiado tardiamente) de Patient Blood Management ou simplesmente PBM. Este é um conceito emergente, a que o Estado português na sequência de uma resolução da Assembleia Mundial da Saúde de 2010, tem que dar resposta e a que devemos começar a dar mais atenção e que está intimamente ligado à anemia.

É possível prevenir o seu desenvolvimento?

É possível e desejável prevenir a anemia, estando atento aos sinais de alerta, procurando o seu médico, fazendo uma alimentação equilibrada. Num país (com toda a razão) orgulhoso da sua dieta mediterrânica, rica em ferro e em outros nutrientes essenciais, talvez façamos uma dieta pouco mediterrânica e pobre nesses nutrientes.

Qual o impacto socioeconómico da anemia no nosso país? Dispõe de dados sobre esta matéria?

Não disponho de dados sobre o impacto económico da anemia em Portugal, tendo que ser avaliados os dias de absentismo, a baixa produtividade dos doentes com anemia que estão a trabalhar e que não estão a ser tratados, os custos com as complicações da doença de base agravadas pela anemia, o maior número de dias de internamento, o custo do maior número de eventos adversos em internamento hospitalar associados à anemia, o custo com mais dias de internamento em Unidades de Cuidados Intensivos, etc. Disponho, contudo, de uma estimativa levada a cabo por uma parceria do Anemia Working Group Portugal com a EXIGO Consultores, em 2017, a qual avaliou o ganho da implementação de PBM (referido atrás) em Portugal durante um ano. Seriam reduzidas em 51,2% as transfusões, evitadas 594 mortes prematuras, reduzidos 10,3% os internamentos hospitalares e obtido um benefício económico global de 67,7 milhões de euros.

Qual a importância da criação de uma estratégia nacional para prevenir e tratar a anemia?

A importância da criação de uma estratégia nacional pode ser aferida pela publicação recente da resolução nº 269/2021 da Assembleia da República que aprovou, no passado dia 8 de outubro, a recomendação para que o Governo crie essa estratégia nacional e que institua o Dia Nacional da Anemia no dia 26 de novembro. Estes são objetivos que o Anemia Working Group Portugal persegue há vários anos e esta estratégia nacional poderá finalmente dar resposta a este problema de Saúde Pública que consiste em ter uma prevalência de 20% de anemia na população adulta portuguesa.

No âmbito deste tema, que mensagem gostaria de deixar?

Gostaria de deixar 3 mensagens: a primeira é que a anemia tem uma prevalência elevada na população portuguesa adulta (nas crianças e adolescentes ainda estamos por saber exatamente). Um cada cinco portugueses adultos sofre de anemia, 84% dos doentes anémicos desconhecem que o são e apenas 2,8% estão a ser tratados. A segunda mensagem consiste na chamada de atenção para a resolução da Assembleia da República que recomenda a criação de uma estratégia nacional para a prevenção de uma estratégia nacional para a prevenção e tratamento da anemia, assim como a criação do Dia Nacional da Anemia.

Por fim, a terceira é um apelo para que se comece a dar a necessária e urgente atenção à implementação efetiva do PBM em Portugal.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.