Doentes ficaram sem acesso a terapias

ELA e Covid-19: pandemia agravou a evolução da doença

Atualizado: 
24/06/2020 - 10:52
Não se sabe ao certo o que a causa, embora já tenham sido identificados mais de 30 genes envolvidos na Esclerose Lateral Amiotrófica. Sem cura e de natureza progressiva, existe apenas um medicamento, em Portugal, que atrasa a progressão da doença. A pandemia trouxe não só o medo de contaminação, mas também custou a muitos o apoio técnico essencial, havendo muitos casos em que a “quebra de rotinas de terapias”, levou à perda de algumas funcionalidades, tornando estes casos impossíveis de reverter.

“A Esclerose Lateral Amiotrófica, também conhecida por ELA, é uma doença neurodegenerativa, rapidamente progressiva, que envolve principalmente, mas não exclusivamente, o sistema motor, pela afetação direta do primeiro e segundo neurónios motores (responsáveis pelo envolvimento clínico dos músculos bulbares, medulares e respiratórios)”, começa por explicar Filipe Gonçalves, fisioterapeuta da APELA.

Os primeiros sintomas, embora sejam variáveis, de caso para caso, surgem, habitualmente, entre os 55 e os 65 anos. “Contudo, há casos de ELA em diferentes idades, incluindo juvenil, isto é, idades inferiores a 25 anos”, acrescenta Filipe Gonçalves.

“Clinicamente caracteriza-se por uma atrofia muscular progressiva por desenervação, com perda do controlo muscular voluntário”, e dependendo da região afetada, os sintomas são também eles diferentes.

Segundo o fisioterapeuta, a doença pode apresentar-se de diferentes formas:

  • Medular, com afetação dos quadrantes superiores ou inferiores, sendo a forma mais comum.
  • Bulbar com afetação da fala e capacidade de deglutição, em cerca de um terço dos casos. Axial com perda de força ao nível cervical. E Respiratória ou Difusa, com manifestação das diferentes regiões logo no momento inicial. Estas últimas menos frequentes.

“O diagnóstico pode revelar-se difícil até à sua confirmação, muitas vezes os doentes recorrem a diferentes especialidades como medicina geral e familiar, ortopedia, fisiatria, e otorrinolaringologia, pelos sintomas iniciais, as quais por diagnóstico diferencial e evolução dos sintomas, reencaminham para neurologia, sendo o diagnóstico confirmado por Eletromiografia”, revela Filipe.

Estima-se que, em média, estes doentes tenham uma sobrevida estimada em 3 a 5 anos. No entanto, há caso que podem chegar aos 10 anos.

“A ELA é uma doença terrível, que afeta em tudo quanto imaginável o dia-a-dia do doente. A perda de autonomia é progressiva e o expectável é que seja total, por tanto todas as tarefas desde as mais complexas às mais simples, ficam em curto espaço de tempo impossibilitas de serem realizadas autonomamente”, explica o fisioterapeuta.

“Os doentes com ELA ficam totalmente dependentes de sistemas de ajuda, de conforto e de terceiros para o seu dia-a-dia, e por isto é tão fundamental que os sistemas de atribuição de produtos de apoio, e os diferentes profissionais de saúde hajam em conjunto para apoiar não só o doente no melhor que lhes é possível, mas também s cuidadores, munindo-os e treinando-os para estes desafios progressivos. Sem dúvida que conhecer as necessidades e as vontades do doente, e não negligenciar os cuidadores, são pilares fundamentais no acompanhamento que podemos dar neste contexto”, acrescenta quanto ao papel fundamental dos seus cuidadores.

Como cuidador “sobrevive-se” dando o melhor

Cristina Ferreira não esquece o dia em que soube que a irmã, a “segunda mais velha de cinco”, sofria de Esclerose Lateral Amiotrófica. “Lembro-me desse momento como se tivesse sido ontem, tal foi o impacto. É mesmo a sensação de um balde de água gelada que nos cai em cima! Ficamos sem chão. Já tinha ouvido falar na doença, sabia que era uma doença degenerativa, rara, complicada, mas não tinha grande ideia do seu impacto real nem da sua evolução”, comenta.

Os primeiros sinais da doença surgiram aos 61 anos, mas foram passando despercebidos, como recorda adiantando que a irmão começou a ter dificuldade “na motricidade fina que exigia alguma (pouca) força de preensão, como por exemplo segurar na chávena de café, fechar ou abrir a porta à chave”.

No entanto, chegar ao diagnóstico não foi fácil, tendo sido até muito demorado, diz.

“Inicialmente foi consultado o médico assistente, de medicina interna, que prescreveu diversos exames, como análises ao sangue, radiografias entre outros. Recomendou a consulta a um ortopedista o qual, após mais alguns exames radiológicos, prescreveu sessões de fisioterapia”, conta Cristina.

Tendo em conta que padecia de alguns problemas relacionados com a coluna, a irmã, Ana, esteve vários meses a realizar sessões de fisioterapia, mas sem apresentar melhoras. “Sentia-se cada vez mais cansada, com perda de peso acentuada, falta de força muscular e fraqueza generalizada. Os fisioterapeutas consideraram que na realidade, apesar dos esforços a fisioterapia não estava a dar os resultados esperados”, recorda.

Seguiu-se nova avaliação médica e o encaminhamento para neurologia. Depois de muitos exames, o especialista encaminhou Ana para um colega da especialidade que se dedicava a doenças como a ELA. O diagnóstico chega depois da realização de uma eletromiografia, muitos meses depois das primeiras consultas. A partir daqui passou a ser seguida pelo mesmo médico, mas num hospital público na consulta de neurologia dedicada aos doentes com ELA. “Esta consulta foi complementada com a consulta de fisiatria dada a necessidade de iniciar suporte com ventilação”, acrescenta Cristina.

Segundo a cuidadora, “a doença tem evoluído rapidamente, dentro do padrão habitual. Passado cerca de 1 ano e meio a Ana perdeu totalmente a sua autonomia. Durante esse tempo, com a enorme força e resiliência que tem tido desde o início, fez tudo por tudo para se manter autónoma”. No entanto, começou a ter dificuldade na alimentação e “dado o perigo de engasgamento e asfixia foi-nos indicada a adaptação do tipo de alimentos e forma de os cozinharmos”.

“As dificuldades foram-se tornando cada vez maiores tendo sido indicada a colocação de uma sonda gástrica para alimentação artificial (PEG) (…) a fala também se foi perdendo progressivamente. A necessidade de utilizar suporte com ventilação também foi aumentando. No início era necessário apenas à noite e algumas horas durante o dia. Com a evolução da doença passou a ter que ser usado permanentemente”, conta acrescentando que, atualmente, o tratamento é meramente paliativo e que entre os irmãos tudo fazem para que Ana se sinta o mais confortável possível, dadas as circunstâncias.

“É necessária muita resiliência, coragem, força e esperança por parte do doente. É muito importante o apoio por parte dos familiares e/ou amigos e imprescindível o apoio de mais do que um cuidador, de forma a poder ter períodos de descanso e de lazer”, revela Cristina Ferreira.

Enquanto cuidadora, diz, “sobrevive-se” dando o melhor, gerindo da melhor maneira as diferentes recomendações, por vezes contraditórias, dos profissionais de saúde que acompanham o doente”. E lamenta que a gestão do dia-a-dia seja aina mais difícil “devido à falta de recursos que são disponibilizados aos doentes e às famílias e à quase inexistência de cuidadores com a devida formação e falta de instituições de apoio aos doentes no domicílio”.

Falta de apoios sociais e na área da saúde dificultam dia-a-dia de doentes e cuidadores 

“Os apoios sociais e na área da saude a estes doentes são efetivamente muito escassos, tendo em conta a gravidade da doença e as consequências para o próprio e grande repercussão na família”, revela acrescentando que “é o doente e os familiares que têm que procurar tudo o que os possa ajudar, quer em termos sociais quer até em termos clínicos, visto os protocolos seguidos por alguns hospitais serem muito redutores quando comparados com outros, relativamente às intervenções que disponibilizam e que indicam aos doentes. Também de referir a quase inexistência de equipas de cuidados paliativos da rede de cuidados de saúde do SNS que apoiem o doente no domicílio, a dificuldade de acesso a unidades de cuidados continuados ou paliativos e a falta de formação dos profissionais de saúde no geral relacionada com os doentes com ELA”.

A família tem, por tudo isso, um papel importantíssimo na vida destes doentes. “A família deve ser o principal suporte do doente e fazer tudo o que estiver ao seu alcance de forma a proporcionar a melhor qualidade de vida e os cuidados adequados. É importante que o doente sinta que a família é o seu porto seguro e que tudo farão para o acompanhar da melhor forma possível. No caso da Ana, o facto de sermos 5 irmãos, ajuda bastante ao apoio que lhe proporcionamos”, afirma.

O impacto da pandemia na vida dos doentes com ELA

“A semelhança da população em geral estes doentes vivenciaram um longo período de isolamento, com alterações abruptas nas suas rotinas extradomiciliárias. Numa fase inicial houve um medo generalizado de contaminação por SARS-COV2, dado serem doentes de elevado risco, com quadros respiratórios complexos de natureza restritiva, e, portanto, muito vulneráveis em caso de infeção respiratória”, explica Filipe Gonçalves.

Apesar de se tentar minimizar, tanto quanto possível, o impacto da pandemia no acompanhamento destes doentes, sabe-se que a maioria dos pacientes ficou sem acompanhamento assistencial durante a suspensão das terapias, imposto durante este período. “De um modo geral esta interrupção repercutiu-se num acentuar da evolução da doença, principalmente nos doentes mais funcionais. De facto, a quebra de rotinas de terapias, agravou pelo desuso e descondicionamento, o quadro de base de atrofia por denervação, o qual nestes doentes é extremamente difícil de reverter. Estas implicações são visíveis tanto ao nível da perda de funcionalidade, como numa maior perceção de fadiga, alterações posturais, e muitos vezes agravamento de sintomatologia associada à maior imobilidade”, lamenta o fisioterapeuta.

“De salientar que a pandemia não teve só impacto no apoio clínico e terapêutico, tendo também interferido muito negativamente com outros sistemas de apoio, tanto a nível pecuniário como de apoio técnico. A título de exemplo, agravando ainda mais os tempos de espera para consultas e adjudicação de diferentes produtos de apoio, e juntas médicas que todos estes doentes carecem com a máxima prontidão e mínimo de atrasos”, acrescenta.

No caso de Ana, Cristina refere que todo este período foi vivido com bastante receio por todos os familiares. “Quando existe um elemento da família com ELA esses sentimentos agudizam-se pelo receio de podermos transmitir a Covid-19. Tivemos que alterar as rotinas drasticamente visto ser habitual, nos dias de semana, existirem cinco pessoas utilizadoras de transportes públicos a entrar e a sair de casa da Ana. Tivemos que nos cingir a uma cuidadora formal, tendo o apoio, duas vezes por dia, de duas outras irmãs. Conseguimos manter as sessões de fisioterapia no domicílio e prescindimos do apoio da equipa de cuidados continuados do centro de saúde”, conta. Para além disso, garante, tiveram de implementar todas as medidas de prevenção da infeção cruzada, relacionadas com a lavagem”. A desinfeção das mãos passou a ser ainda mais rigorosa e nunca descuraram a utilização de máscara cirúrgica e os cuidados relativos ao vestuário.

Para já, diz, não ser possível “fazer o regresso à normalidade que tínhamos em janeiro. Devemos continuar a ter todos os cuidados relativamente à prevenção da infeção, visto os doentes com ELA serem doente com risco acrescido. No entanto, prevenir e proteger os mais vulneráveis não significa “desaparecer” com medo de transmitir a doença”, apela.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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