Uma lição de neurobiologia no Dia Mundial da Saúde Mental

Deixem-me contar-vos o que acontece no cérebro de quem estigmatiza — e no mundo de quem é estigmatizado

Atualizado: 
10/10/2025 - 07:38
O estigma não é uma doença mas podia ser. Não dá febre nem dor de barriga nem manchas vermelhas estranhas na pele mas tem sintomas claros: o medo e a hesitação de querermos saber mais quando vemos alguém triste, a vergonha de sermos julgados ou rotulados quando estamos ansiosos, a normalização dos sintomas que são “só da cabeça” e o total descrédito pela ideia de que algo da cabeça possa ter uma solução à mão de semear.

As doenças mentais não são contagiosas. Esta é uma ideia antiga, digna de ficar no século em que nasceu.
Não se “apanha” depressão no metro nem se “contrai” ansiedade por falta de cuidado. Se fosse assim tão simples, andaríamos todos de máscara ou capacete.
Mas o estigma, esse sim, espalha-se com uma velocidade exemplar — quase sem exceção, cheio de boas intenções e disfarçado de “toda a gente sabe que sim”. Cola-se às palavras, aos gestos e às expressões de quem nos rodeia. E nós, ficamos com dúvidas – será que é mesmo assim?

O estigma nasce do medo e o medo nasce da ignorância.
No cérebro de quem estigmatiza, o “diferente” é automaticamente lido como uma ameaça.
A amígdala dispara, o sistema de alarme acende as luzinhas todas e o córtex pré-frontal, responsável por avaliar e compreender o outro, desliga – pelo menos parcialmente.
É o mesmo mecanismo que usamos há milhares de anos para distinguir o “meu grupo” do “dos outros”. Só que aqui, o resultado não é a nossa proteção (proteção de quê?) — é a exclusão.
Para evitar o desconforto de olhar de frente a dor do outro, o cérebro desliga a empatia. Deixa de ver uma pessoa e passa a ver um rótulo.
E cada vez que o faz, o sistema de recompensa dá um pequeno impulso de dopamina — uma satisfação que nos chega por “pertencer ao grupo certo”.
E assim, o preconceito encontra a receita ideal: uma balança e sensação de pertença mal calibradas.

Mas há uma ironia cruel: o estigma protege quem o exerce à custa de quem está do outro lado. O cérebro de quem sofre estigma aprende a esperar a rejeição.
A amígdala permanece em alerta, o eixo do stress fica mais ativo que nunca e esta vulnerabilidade transforma-se em isolamento.

Não se fala. Não se pede ajuda. Finge-se — e finge-se mais um pouco. Até parecer que está tudo bem, porque “ninguém quer ser o doente mental da sala”.

E, no entanto, a doença mental não é contagiosa. O que se contagia é o desconforto que ela provoca.

Crescemos a acreditar que o mundo deve ser funcional, limpo e feliz. E as redes sociais inundam-nos de imagens desta vida cor-de-rosa. Seguimos o perfil de cinco alguéns que chegam a todo o lado – a mulher de sucesso, esposa perfeita, casa arrumada, grandes festas e filhos adoráveis.  Os homens não choram e as mulheres não exageram. E quem é forte – esta máxima sabemos de cor - supera tudo sozinho. Quando alguém quebra esta nossa narrativa, expõe tudo aquilo que preferimos ignorar — e isso é assustador.

Multiplicam-se frases como “tens é de ocupar a cabeça” ou “o que fazia mesmo bem era ir fazer desporto e comer melhor” – tudo isso passava logo – ou nas perguntas disfarçadas de preocupação: “Ainda tomas medicação? Achei que estavas melhor. Se tivesse no teu lugar parava logo”. Mas a recuperação não é linear — quase nunca é — e isso enche o “culpado” e o “preguiçoso” de uma enorme frustração e culpa. Como se a saúde mental tivesse prazo de validade.

O estigma é o lugar-comum. Nunca é meu - são os outros que acham isso. Li algures. Mas é precisamente esta distância que o mantém vivo.
Ele está dentro de casa, nas conversas entre amigos, nas empresas. Em todo o lado vulnerabilidade e sucesso continuam a estar obrigatoriamente divorciados. 

Mas a boa notícia que vos trago é que também o cérebro pode reaprender.

Quando não temos receio de procurar informação e deixamos o medo dar lugar à curiosidade, o sistema límbico acalma, o cortisol baixa e a amígdala desliga o alarme. E, nesse instante, algo muda — não só em nós, mas no outro que deixa de ter de fugir da palavra “louco” e pode ter o espaço para pedir ajuda.

Porque, no fim de tudo, esta é mesmo uma lição de neurobiologia: o antídoto do estigma não é o silêncio. É esta tal curiosidade, o diálogo e a coragem de querermos saber mais — sobretudo quando vemos alguém que não está tão bem.

 

Autor: 
Dra. Maria Moreno - médica psiquiatra
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.