Opinião

Da ficção científica à prática clínica: A Inteligência Artificial a transformar os cuidados de saúde no Mundo e em Portugal

Atualizado: 
29/09/2025 - 08:50
Nas últimas semanas, muito se falou da abertura na China de um “hospital virtual” comandado por inteligência artificial (IA), com médicos e enfermeiros digitais capazes de diagnosticar e tratar dezenas de milhares de pacientes simulados em apenas alguns dias. A notícia, vinda da prestigiada Universidade de Tsinghua, soou a muitos como um guião de cinema de ficção científica — mas é, na verdade, o espelho de um movimento global em curso: a integração acelerada de algoritmos, robôs e sistemas inteligentes na prestação de cuidados de saúde.

O tema suscita fascínio e inquietação. Fascínio porque vislumbramos ganhos de eficiência, rapidez e precisão até há pouco inimagináveis. Inquietação porque, ao mesmo tempo, coloca desafios profundos à humanização do cuidado, à ética médica e à regulação pública.

 

O que já acontece no mundo

Não falamos já de protótipos ou experiências laboratoriais: falamos de hospitais onde robôs ajudam em cirurgias de alta complexidade, sistemas de IA que apoiam radiologistas a detetar hemorragias cerebrais em segundos, ou algoritmos que fazem triagem automática de lesões cutâneas suspeitas de melanoma.

Na Alemanha, hospitais como o Unfallkrankenhaus Berlin usam IA para priorizar exames críticos. Em França, o sistema público AP-HP já adoptou ferramentas de apoio ao diagnóstico assistido por computador. No Reino Unido, algoritmos agilizam a triagem de cancro da pele, reduzindo listas de espera. E no Japão, robôs como o Hospi transportam medicamentos e material dentro das unidades, libertando tempo de enfermeiros para tarefas de contacto humano.

 

E em Portugal? Um caminho que já começou

Portugal não está alheio a esta revolução. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem, em várias frentes, projectos que demonstram potencial de escala:

Radiologia no Algarve: mais de 29 mil exames de tórax e retinografias já processados por IA, acelerando diagnósticos e libertando médicos para casos mais complexos.

Dermatologia em Amadora/Sintra: um algoritmo certificado como dispositivo médico apoia a triagem de lesões cutâneas, reforçando a prevenção do cancro da pele.

Cardiologia de intervenção no Hospital Prof. Fernando Fonseca: primeiros cateterismos com apoio de IA, aumentando a segurança e a qualidade técnica dos procedimentos.

IPO Porto: projetos como o ONCOLOG(IA) aplicam inteligência artificial em radiologia e dermatologia oncológica.

Planeamento de recursos: modelos preditivos testados pela SPMS permitem antecipar a afluência às urgências e alocar equipas de forma mais eficiente.

Além disso, hospitais privados em Lisboa e Porto contam já com robôs cirúrgicos (Da Vinci, Versius), e Portugal foi pioneiro ao realizar o primeiro transplante hepático robótico da Europa, no Hospital Curry Cabral.

 

Os desafios incontornáveis

Se o potencial é enorme, os riscos não são menores. Entre eles:

Responsabilidade: quem responde em caso de erro diagnóstico de um algoritmo?

Transparência: como garantir que médicos e pacientes compreendem as decisões de uma “caixa negra” algorítmica?

Privacidade: como proteger dados de saúde, altamente sensíveis, num ecossistema digitalizado?

Equidade: como assegurar que esta inovação não acentua desigualdades no acesso à saúde?

Estes dilemas não podem ser deixados apenas às empresas tecnológicas ou aos próprios hospitais: exigem liderança política e regulação inteligente.

 

Oportunidade para Portugal

Portugal tem neste momento uma oportunidade única: aproveitar a sua dimensão relativamente pequena, a centralização do SNS e a proximidade entre comunidade científica, tecnológica e clínica para se tornar um laboratório europeu de inovação em saúde digital.

 

Para isso, é essencial:

1. Definir uma estratégia nacional de IA em saúde, clara e articulada com Bruxelas.

2. Investir em literacia digital em saúde — para profissionais e cidadãos.

3. Criar uma agência independente de avaliação e certificação de algoritmos, à semelhança do INFARMED para os medicamentos.

4. Promover a colaboração com universidades e startups portuguesas, que já estão a desenvolver soluções de classe mundial.

5. Garantir que a tecnologia liberta tempo para o cuidado humano — em vez de o substituir.

 

Conclusão: entre a automatização e a humanização

Estamos perante uma encruzilhada histórica. De um lado, a promessa da automatização: diagnósticos mais rápidos, cirurgias mais seguras, menos erros médicos. Do outro, a exigência da humanização: manter a empatia, o olhar, a escuta ativa que nenhuma máquina pode replicar.

Não se trata de escolher entre um caminho ou outro, mas de integrar ambos com sabedoria. Se conseguirmos fazê-lo, Portugal não será apenas um seguidor, mas poderá estar entre os países que lideram esta transformação global.

 

NOTA FINAL: mais do que uma “ficção científica”, a inteligência artificial na saúde é já realidade. A grande questão é quem, como e com que valores a vamos usar.

 

Autor: 
António Ricardo Miranda - Engenheiro Electrotécnico e de Computadores de Controlo e Robótica e Pessoa com Deficiência Auditiva e Visual
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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