Da ficção científica à prática clínica: A Inteligência Artificial a transformar os cuidados de saúde no Mundo e em Portugal

O tema suscita fascínio e inquietação. Fascínio porque vislumbramos ganhos de eficiência, rapidez e precisão até há pouco inimagináveis. Inquietação porque, ao mesmo tempo, coloca desafios profundos à humanização do cuidado, à ética médica e à regulação pública.
O que já acontece no mundo
Não falamos já de protótipos ou experiências laboratoriais: falamos de hospitais onde robôs ajudam em cirurgias de alta complexidade, sistemas de IA que apoiam radiologistas a detetar hemorragias cerebrais em segundos, ou algoritmos que fazem triagem automática de lesões cutâneas suspeitas de melanoma.
Na Alemanha, hospitais como o Unfallkrankenhaus Berlin usam IA para priorizar exames críticos. Em França, o sistema público AP-HP já adoptou ferramentas de apoio ao diagnóstico assistido por computador. No Reino Unido, algoritmos agilizam a triagem de cancro da pele, reduzindo listas de espera. E no Japão, robôs como o Hospi transportam medicamentos e material dentro das unidades, libertando tempo de enfermeiros para tarefas de contacto humano.
E em Portugal? Um caminho que já começou
Portugal não está alheio a esta revolução. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem, em várias frentes, projectos que demonstram potencial de escala:
Radiologia no Algarve: mais de 29 mil exames de tórax e retinografias já processados por IA, acelerando diagnósticos e libertando médicos para casos mais complexos.
Dermatologia em Amadora/Sintra: um algoritmo certificado como dispositivo médico apoia a triagem de lesões cutâneas, reforçando a prevenção do cancro da pele.
Cardiologia de intervenção no Hospital Prof. Fernando Fonseca: primeiros cateterismos com apoio de IA, aumentando a segurança e a qualidade técnica dos procedimentos.
IPO Porto: projetos como o ONCOLOG(IA) aplicam inteligência artificial em radiologia e dermatologia oncológica.
Planeamento de recursos: modelos preditivos testados pela SPMS permitem antecipar a afluência às urgências e alocar equipas de forma mais eficiente.
Além disso, hospitais privados em Lisboa e Porto contam já com robôs cirúrgicos (Da Vinci, Versius), e Portugal foi pioneiro ao realizar o primeiro transplante hepático robótico da Europa, no Hospital Curry Cabral.
Os desafios incontornáveis
Se o potencial é enorme, os riscos não são menores. Entre eles:
Responsabilidade: quem responde em caso de erro diagnóstico de um algoritmo?
Transparência: como garantir que médicos e pacientes compreendem as decisões de uma “caixa negra” algorítmica?
Privacidade: como proteger dados de saúde, altamente sensíveis, num ecossistema digitalizado?
Equidade: como assegurar que esta inovação não acentua desigualdades no acesso à saúde?
Estes dilemas não podem ser deixados apenas às empresas tecnológicas ou aos próprios hospitais: exigem liderança política e regulação inteligente.
Oportunidade para Portugal
Portugal tem neste momento uma oportunidade única: aproveitar a sua dimensão relativamente pequena, a centralização do SNS e a proximidade entre comunidade científica, tecnológica e clínica para se tornar um laboratório europeu de inovação em saúde digital.
Para isso, é essencial:
1. Definir uma estratégia nacional de IA em saúde, clara e articulada com Bruxelas.
2. Investir em literacia digital em saúde — para profissionais e cidadãos.
3. Criar uma agência independente de avaliação e certificação de algoritmos, à semelhança do INFARMED para os medicamentos.
4. Promover a colaboração com universidades e startups portuguesas, que já estão a desenvolver soluções de classe mundial.
5. Garantir que a tecnologia liberta tempo para o cuidado humano — em vez de o substituir.
Conclusão: entre a automatização e a humanização
Estamos perante uma encruzilhada histórica. De um lado, a promessa da automatização: diagnósticos mais rápidos, cirurgias mais seguras, menos erros médicos. Do outro, a exigência da humanização: manter a empatia, o olhar, a escuta ativa que nenhuma máquina pode replicar.
Não se trata de escolher entre um caminho ou outro, mas de integrar ambos com sabedoria. Se conseguirmos fazê-lo, Portugal não será apenas um seguidor, mas poderá estar entre os países que lideram esta transformação global.
NOTA FINAL: mais do que uma “ficção científica”, a inteligência artificial na saúde é já realidade. A grande questão é quem, como e com que valores a vamos usar.