Opinião

Audição Funcional não é Audição Real: pela Justiça na Avaliação da Surdez em Portugal

Atualizado: 
22/09/2025 - 09:50
Em Portugal, milhares de cidadãos vivem com deficiência auditiva. Muitos recorrem à reabilitação através de próteses auditivas e implantes cocleares, tecnologias que melhoram substancialmente a sua qualidade de vida. Contudo, essas tecnologias não curam a surdez: apenas a compensam parcialmente, e de forma dependente de baterias, manutenção e ajustes técnicos.

Apesar desta evidência, as Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade continuam, em demasiados casos, a avaliar as pessoas com os aparelhos auditivos colocados e em funcionamento, confundindo a chamada audição funcional com uma suposta audição “normal”. O resultado é perverso: cidadãos que vivem com surdez incapacitante acabam por ser classificados como se não tivessem uma deficiência real, perdendo o direito a apoios sociais e legais que deveriam estar garantidos.

 

Audição Real vs. Audição Funcional

A audição real é a capacidade auditiva biológica da pessoa, sem apoios externos.

A audição funcional é o resultado do uso de tecnologias auditivas, que permitem recuperar parcialmente sons, mas de forma condicionada e artificial.

 

As limitações são conhecidas:

dependência de pilhas ou baterias carregadas;

necessidade de manutenção regular;

falhas técnicas e avarias;

dificuldades acrescidas em ambientes com ruído ou distância;

som artificial, nunca comparável ao de uma audição natural.

Logo, quem depende destas tecnologias permanece surdo. Vive com uma deficiência permanente que deve ser reconhecida pelo Estado.

 

Uma injustiça estrutural

O problema é agravado por um paradoxo:

Uma pessoa com surdez incapacitante que não usa prótese ou implante (optando, por exemplo, pela Língua Gestual Portuguesa) é avaliada pela perda auditiva real e reconhecida como pessoa incapacitada.

Já quem aceita a reabilitação tecnológica é, paradoxalmente, prejudicado: avaliado como se tivesse uma audição normalizada, perdendo direitos e apoios.

Este sistema desincentiva a reabilitação e penaliza os que mais lutam pela sua integração social e laboral.

 

A falha da Tabela Nacional de Incapacidades

A Tabela Nacional de Incapacidades (TNI) não prevê de forma clara a distinção entre perda auditiva biológica e audição funcional. Isto deixa espaço a interpretações injustas por parte das Juntas Médicas, gerando desigualdade e exclusão.

 

É urgente uma revisão profunda da TNI, que contemple:

1. Graduação clara da perda auditiva, desde 35 dB num ouvido até à surdez total, com critérios objectivos e audiométricos.

2. Reconhecimento da deficiência auditiva real independentemente do uso de próteses ou implantes.

3. Consideração das limitações tecnológicas que impedem a equiparação entre audição funcional e audição normal.

4. Equidade de tratamento entre utilizadores de Língua Gestual Portuguesa e utilizadores de reabilitação auditiva.

 

Proposta objectiva

Defende-se que a TNI seja alterada de modo a que a incapacidade seja sempre avaliada com base na perda auditiva natural, independentemente do recurso a tecnologia. A audição funcional deve ser registada apenas como nota complementar, nunca como substituto da realidade biológica.

 

Um apelo à Justiça e à Dignidade

Este não é apenas um problema técnico ou médico. É uma questão de justiça social e de dignidade humana. Pessoas que vivem com surdez profunda continuam a ser confrontadas diariamente com barreiras comunicativas, discriminação e exclusão. Negar-lhes o reconhecimento formal da sua deficiência é perpetuar a desigualdade.

Assim, apelamos à Assembleia da República, à Provedoria da Justiça e ao Governo de Portugal — em particular aos Ministérios da Saúde, Trabalho e Solidariedade Social, Educação, Finanças e Presidência — que promovam com urgência a revisão da Tabela Nacional de Incapacidades, para que nenhuma pessoa surda seja penalizada por utilizar tecnologias de reabilitação.

Da forma como está actualmente, a avaliação incorrecta desestimula a busca por melhorias de qualidade de vida, uma vez que penaliza a pessoa que tenta ouvir com um dispositivo electrónico em uma espécie de limbo burocrático. A pessoa não será avaliada em condições de igualdade a uma pessoa sem deficiência, visto que ela não tem ou tem falta de audição natural, mas também não é aceite como pessoa com deficiência, e não tem direito a nenhum tipo de apoio socioeconómico.

A justiça social mede-se pela capacidade de um Estado proteger os seus cidadãos mais vulneráveis. E neste momento, Portugal está a falhar com a comunidade de pessoas com deficiência auditiva.

Autor: 
António Ricardo Miranda - Engenheiro Electrotécnico e de Computadores de Controlo e Robótica e Pessoa com Deficiência Auditiva e Visual
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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