Entrevista | Dra. Cristina Jorge, Nefrologista

"A anemia na Doença Renal Crónica é uma doença grave, mas que pode ser tratada com sucesso"

Atualizado: 
14/03/2024 - 10:35
Sabia que a anemia é um complicação comum da Doença Renal Crónica? No doente renal crónico, principalmente em hemodiálise, a deficiência de ferro pode ocorrer muitas vezes relacionada com as frequentes perdas de glóbulos vermelhos associadas quer ao tratamento. No âmbito do dia Mundial do Rim, Cristina Jorge, especialista em Nefrologia explica esta relação, salientando que é necessária um monitorização muito rigorosa destes doentes, uma vez que apesar de grave, "o tratamento precoce e adequado pode prevenir as complicações e melhorar a qualidade de vida".

Estima-se que 95% dos doentes renais crónicos em hemodiálise sofram de anemia. Sendo esta uma complicação comum da DRC, começo por lhe perguntar o que explica esta relação? Que fatores condicionam o desenvolvimento da anemia? 

O rim produz uma hormona, a eritropoietina, que é responsável pela produção de glóbulos vermelhos na medula óssea. À medida que a doença renal avança, a produção desta substância pelo rim fica comprometida, não respondendo às necessidades e os doentes desenvolvem anemia. Outros fatores que podem contribuir para esta condição na doença renal crónica, incluem a inflamação crónica, alterações do metabolismo do ferro, toxinas urémicas e um tempo de vida mais reduzido dos glóbulos vermelhos (também chamados eritrócitos). Os doentes em hemodiálise (HD) também são propensos a perdas de ferro, nomeadamente pela perda de sangue no circuito extracorporal.  Sendo o ferro um elemento essencial para a produção dos eritrócitos, estas perdas também podem contribuir para a referida anemia. 

Qual o impacto da anemia na vida de um doente com Doença Renal Crónica?

A anemia pode causar cansaço, falta de forças, tonturas ou mesmo desmaios bem como redução da qualidade de vida dos doentes. É também considerado um fator de risco cardiovascular, contribuindo para o desenvolvimento de hipertrofia ventricular esquerda, insuficiência cardíaca e para a mortalidade destes doentes. A própria anemia pode contribuir para o declínio mais rápido da função renal.

A que sinais devemos estar atentos? 

Num grau ligeiro, a anemia não dá sintomas. Em graus de maior gravidade, as queixas são inespecíficas pois outras doenças podem causar o mesmo tipo de queixas. Em termos de sinais, destacam-se a palidez cutânea, que pode ser difícil de constatar nas pessoas de pele escura e, se houver perdas sanguíneas visíveis, estas devem ser comunicadas ao seu médico. 

Ao longo do tempo a anemia na DRC tem tido diversas abordagens. Qual é o status quo em Portugal?

Em Portugal seguem-se as orientações internacionais nesta matéria. Não vamos entrar em detalhe, mas o tratamento da anemia depende da sua causa. Além da doença renal, outros fatores, tal como na população geral, podem também contribuir para esse diagnóstico nos nossos doentes com DRC. Assim, antes de tudo deve-se investigar e tratar a causa da anemia.

Antes da disponibilidade da eritropoietina farmacológica, a única hipótese de tratamento eficaz para estes doentes, com anemia relacionada com a doença renal crónica, eram as transfusões de sangue. Ocasionalmente, elas ainda são necessárias nestes doentes.

Atualmente, além de assegurarmos depósitos adequados de ferro (o qual pode ser administrado por via oral ou endovenosa) e de outros fatores como o ácido fólico e a vitamina B12, essenciais para a produção de glóbulos vermelhos, podemos ter de administrar também eritropoietina, ou análogos da mesma (os chamados agentes estimuladores da eritropoiese - AEE), a estes doentes. Estes AEE podem ser administrados por via endovenosa ou subcutânea. De forma resumida, esta é a prática clínica padrão atualmente em vigor nos doentes com anemia relacionada com a doença renal crónica. 

Existem outros fármacos que imitam as condições em que a eritropoietina é produzida. Como o fornecimento de oxigénio é a principal função dos eritrócitos, a hipoxia (níveis baixos de oxigénio) tecidual serve como o principal estímulo para a produção da eritropoietina. O fator induzido por hipóxia (HIF) é um fator que regula a expressão do gene da eritropietina. Em condições normais de oxigénio (normoxia), o HIF é degradado por enzimas designadas por prolil-hidroxilases. Em hipóxia, a degradação do HIF é inibida, permitindo-lhe ativar a produção de eritropoietina. Assim, fármacos que, inibindo a degradação do HIF, imitam a perceção de hipoxia pelo nosso organismo, contribuem para o aumento da produção de eritropoietina e podem corrigir a anemia. Estes são uma classe de fármacos mais recentes, inibidores da prolil-hidroxilase do fator induzido por hipóxia (HIF-PHI). Um destes fármacos (roxadustat), que se administra por via oral, foi aprovado para uso no espaço europeu em 2021. Os HIF-PHI não estão ainda ao alcance de todos os doentes. Por um lado, devido ao seu surgimento recente e ao seu custo e por outro, porque na maioria dos doentes que estão submetidos à medicação com os análogos da eritropoietina, esta medida é eficaz. 

Quais os principais desafios associados ao tratamento da anemia nestes doentes?

O principal desafio no tratamento da anemia na DRC é garantir a produção adequada de glóbulos vermelhos. Para isso, os doentes necessitam de um acompanhamento rigoroso, com avaliações regulares da hemoglobina, ferro, ácido fólico, vitamina B12 e outros parâmetros, conforme a necessidade individual.

A monitorização permite ajustar a medicação de acordo com as necessidades de cada doente. Por exemplo, se os níveis de hemoglobina estiverem baixos, poderá ser necessário apenas aumentar a dose do AEE, estando os restantes parâmetros dentro do alvo pretendido.  O acompanhamento regular e o ajuste da medicação são essenciais para otimizar a produção de glóbulos vermelhos e melhorar a qualidade de vida dos doentes com anemia na DRC.

Em matéria de prevenção, que cuidados devem estes doentes ter para prevenir a anemia ou o seu agravamento no decorrer da DRC? 

A prevenção da anemia na DRC consiste em medidas que visam otimizar a produção de glóbulos vermelhos e minimizar os fatores que contribuem para a sua deficiência

Em termos de prevenção, além de um estilo de vida saudável, incluindo uma dieta rica em ferro, o principal é avaliar de forma regular os níveis dos depósitos de ferro, de outros fatores essenciais à produção dos glóbulos vermelhos como o ácido fólico e a vitamina B12, e, evidentemente, os níveis da hemoglobina no sangue. Em termos de doença renal, como a probabilidade de anemia é mais elevada nos estádios mais avançados da doença, esta monitorização deve ser mais frequente nestes doentes. O acompanhamento nefrológico dos doentes é essencial.

Caso não seja tratada, que outras complicações podem surgir?      

A anemia na DRC é uma doença que, se não for tratada, pode levar a diversas complicações graves, além dos sintomas já mencionados.

A falta de oxigénio nos tecidos, incluindo o coração, pode enfraquecer o músculo cardíaco e levar à insuficiência cardíaca, com sintomas como fadiga, falta de ar, inchaço nas pernas e tornozelos.

A anemia também pode causar fadiga extrema, dificultando a realização de atividades diárias, podendo ser tão intensa que o doente pode ficar impossibilitado de trabalhar ou realizar atividades de lazer.

A falta de oxigénio no cérebro pode causar dificuldades de concentração, memória e aprendizagem, dificultando a realização de tarefas que exigem atenção e foco.

O sistema imunitário também pode ser debilitado pela anemia, tornando o doente mais suscetível a infeções, que podem ser mais graves e difíceis de tratar.

Em casos graves, a anemia não tratada pode levar à morte, devido à falha de oxigénio nos órgãos vitais.

É importante salientar que a anemia na DRC é uma doença grave, mas que pode ser tratada com sucesso. O tratamento precoce e adequado pode prevenir as complicações e melhorar a qualidade de vida do doente.

 
Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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