A importância de se falar sobre Incontinência Fecal

"Perder a capacidade de controloar a urina e as fezes não é normal, mas também não é motivo de vergonha!"

Atualizado: 
08/02/2024 - 12:50
Falar de Incontinência Fecal é falar de uma condição devastadora, "vivida em silêncio, pela enorme vergonha e humilhação de quem sofre", revela o cirurgião geral, José Assunção Gonçalves. Mas, fundamental "de forma a criar visibilidade para os problemas associados à continência e disfunção do pavimento pélvico, encorajando o debate público e aberto e a quebra de estigma e tabus associados a estas doenças", sublinha Joana Oliveira, presidente da Associação Portuguesa para a Disfunção Pélvica e Incontinência (APDPI), que fala na primeira pessoa sobre como é conviver com esta condição.

Joana tinha 35 anos quando se deparou com o problema. Logo após o nascimento da filha mais nova. "Os sintomas eram perda involuntária de fezes e gases diárias", no entanto, admite que não olhou para o que lhe estava a acontecer "como incontinência". "Pensei que fosse uma consequência normal do parto e, que, com o tempo iria desaparecer. O tempo foi passando, mas o tabu, o medo, a vergonha e os mitos que envolvem este tipo de doenças, atrasaram a procura de ajuda", revela admitindo que só ao fim de seis meses tocou no assunto, em consulta, junto da obstetra "com a qual tinha bastante confiança". 

"A incontinência fecal (IF) é provavelmente a condição que mais afeta a dignidade do ser humano, enquanto espécie animal social e sexual", admite o especialista em cirurgia geral. "É uma condição profundamente humilhante que desencadeia sentimentos de vergonha e de depressão. É um tema que provoca repulsa e constrangimento social e que impede os doentes de falarem abertamente sobre o seu sofrimento", acrescenta admitindo, por isso, que esta condição se encontre subestimada e possa ser mais frequente do que se imagina. "Em números absolutos, estima-se que afete mais de 19 milhões de adultos na Europa. Calcula-se que atinja aproximadamente 7,7% (intervalo: 2-21%) da população", revela explicando que a incontinência fecal (IF) se define "como a perda involuntária de fezes sólidas, líquidas ou gases pelo ânus". Ou seja, "ter vontade urgente de evacuar e não conseguir chegar à casa de banho a tempo, ou aperceber-se que tem sujidade na roupa interior, sem ter sentido vontade de evacuar". 

Embora possa depender de vários fatores - "a continência anal depende de uma série de fatores, nomeadamente da função cognitiva, volume e consistência das fezes, trânsito intestinal, distensibilidade rectal, função esfincteriana anal, sensibilidade e reflexos anorectais" -, as causas mais frequentes de IF são o traumatismo obstétrico e o traumatismo cirúrgico, as doenças médicas (neurológicas, degenerativas, endócrinas e psiquiátricas) e os efeitos secundários de medicamentos. "É importante estar atento a perturbações psicológicas por abuso físico/sexual e emocional, desporto de alto-impacto,  distúrbios alimentares e falta de cuidados assistenciais", acrescenta José Assunção Gonçalves. 

Esta condição encontra-se dividida em dois tipos: incontinência de urgência e incontinência passiva. "A IF de urgência caracteriza-se pela vontade de defecar e incontinência apesar do esforço voluntário para reter as fezes e/ou gases. A IF passiva caracteriza-se pela ausência de perceção da necessidade de defecar, antes do episódio de incontinência", explica o médico. No entanto, ambas podem coexistir no mesmo doente. "Nesses casos designa-se de IF mista", esclarece. 

"O diagnóstico é clínico e feito pelo doente, ao referir perda involuntária de fezes sólidas, líquidas ou gases pelo ânus", acrescenta. 

Joana teve o diagnóstico numa consulta de cirurgia geral, "com exames complementares de diagnóstico - sendo alguns deles a ecografia anal, a eletromiografia do nervo podendo, a manometria ano-retal e a ressonância magnética pélvica e perianal". 

"Foi-me explicado que tive rotura do músculo externo do anus e lesão pélvica decorrentes do parto da minha filha mais nova", revela quanto às causas.  

Sendo tão jovem, admite que não foi fácil descobrir que sofria desta condição. "Ainda era uma pessoa jovem e quando se aborda o tema “incontinência” está usualmente associado a pessoas de mais idade", explica. E, apesar de tentar lidar com o assunto com normalidade, esta condição impactou fortemente a sua vida. "No início, apesar das dificuldades inerentes a esta condição fui tentando levar uma vida “normal” tanto a nível profissional como pessoal. Porém, após a esfinctroplastia, esta condição piorou passando as perdas de fezes e gases a serem recorrentes mais que uma vez por dia, impactando a vida familiar e ainda mais a social porque não tinha condições para sequer sair de casa". 

"Por norma, estas situações trazem consequências devastadoras visto que são sofridas em silêncio, a vergonha impede-nos de falar sobre este assunto com outros e diretamente implica faltas ao trabalho, compromissos pessoais, familiares ou sociais que podem destruir carreiras e a vida conjugal e íntima, levando inclusivamente são isolamento e problemas psicológicos graves por terem um elevado impacto na nossa auto-imagem e saúde mental", explica adiantanto que, no seu caso, após uma baixa prolongada, viu a sua carreira de 10 anos chegar ao fim. "Por um despedimento sem bases relacionadas com o meu profissionalismo mas sim devido à incapacidade e falta de condições para assegurar o meu emprego", recorda. 

Por ser uma condição "devastadora" que "pode comprometer em definitivo um emprego ou uma carreira profissional, destruir a vida íntima e conjugal, levar ao isolamento e a problemas psicológicos gravíssimos", é, na opinião do cirurgião geral do Hospital da Luz, "absolutamente essencial o médico transmitir uma mensagem de esperança, que é realista, porque existe tratamento para a incontinência". "Nenhum doente está condenado a viver incontinente para o resto da sua vida. Existem tratamentos eficazes que devolvem a qualidade e dignidade de vida aos doentes que sofrem de incontinência", afirma. 

A abordagem terapêutica da IF, explica José Assunção Gonçalves, "deve ser dirigida à causa subjacente e focada nos resultados clínicos (continência e qualidade de vida)". Ao dispor estão "medidas de suporte, dietéticas, ajuste da medicação habitual, terapêutica farmacológica, reeducação períneo-esfincteriana, biofeedback, estimulação elétrica e cirurgia". 

Quanto a esta última, o cirurgião revela que "está reservada para a última linha de tratamento da IF, quando todas as medidas mais conservadoras já foram implementadas e não obtiveram o resultado desejado". 

Joana Oliveira foi submetida a uma esfinctroplastia, dois anos após a lesão que deu origem ao problema. No entanto, esta só agravou a sua condição. "Como esta cirurgia provocou um agravamento do meu estado de saúde, foi me sugerido fazer fisioterapia de reabilitação do pavimento pélvico e manometria ano-retal", recorda. Não havendo melhoras, Joana procurou tratamento alternativo, tendo descoberto a neuroestimulação sagrada. "Fui candidata ao programa, na altura ainda em fase experimental, e como obtive bons resultados coloquei o neuroestimulador definitivo", conta. 

"As melhorias foram sendo graduais, como em qualquer problema de saúde não resolveu em definitivo, mas devolveu-me a qualidade de vida necessária para eu poder voltar a ter uma atividade profissional, vida familiar e social com menos restrições e tantos receios associados", acrescenta sublinhando a importância de não se esconder um problema para qual existe solução. 

"Existem vários tipos de tratamento como farmacológico, cirúrgico e a reeducação pélvica, que possibilitam um regresso à normalidade para quem sofre destas patologias. Os tratamentos conservadores devem estar presentes em todas as fases da doença, mas quando estes falham a esperança não está perdida. A estimulação dos nervos sagrados (neuromodelação), uma técnica minimamente invasiva que consiste na implantação do neuroestimulador mais pequeno que existe (3cm), permite controlar os esfíncteres urinário e anal e a dor pélvica. Através do diagnóstico precoce, é possível adotar tratamentos conservadores, como a reeduacação pélvica ou o tratamento farmacológico, mas existe esperança mesmo em casos avançados. O passo mais importante é pedir ajuda!", reforça. 

De acordo com José Assunção Gonçalves, "a prevalência da IF aumenta com a idade, estimando-se que afete cerca de 50% dos idosos institucionalizados ou residentes em lares. E, devido ao aumento da esperança média de vida e envelhecimento da população, é expectável que a prevalência da IF tenderá a aumentar". Atualmente estima-se, que na sua forma mais grave, afete 1% da população. 

Assim, é de extrema importância que seja um assunto que continue a ser divulgado e partilhado, quer junto da comunidade médica, quer da população em geral. É aqui que entra em ação a Associação Portuguesa de Disfunção Pélvica e Incontinência - APDPI, presidida por Joana Oliveira, que pretende ser a voz dos doentes junto da sociedade e poderes políticos, incentivando, incusive  "a alteração da lei de incapacidade". 

"Perder a capacidade de controloar a urina e as fezes não é normal, mas também não é motivo de vergonha!", reforça Joana Oliveira. 

 
Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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