Entrevista | Dra. Inês Homem de Melo, Psiquiatra

A Depressão ainda é uma “doença profundamente estigmatizada e escondida”

Atualizado: 
04/10/2023 - 14:55
Os dados da OCDE mostram que o consumo de antidepressivos mais que triplicou nas últimas duas décadas. Um cenário que inquieta médicos especialistas e que nos deve levar a repensar na forma como olhamos e tratamos a Saúde Mental. Em entrevista, a médica psiquiatra, Inês Homem de Melo, afirma que é possível melhorar os indicadores de depressão. Para isso é mandatório que se promova a saúde mental “desde o início da vida da criança” e se invista “no diagnóstico e tratamento precoce, reforçando os cuidados de saúde primários e o acesso à psicoterapia no SNS”. “A depressão não é um sinal de fraqueza”, sublinha, alertando que, embora existam fatores de risco, esta é uma patologia que pode atingir qualquer pessoa independentemente da “idade, estatuto socioeconómico, etnia ou profissão”.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a depressão é um dos principais problemas de saúde no mundo desenvolvido, sendo que se estima que esta afete cerca de 8% da população portuguesa. Assim sendo, sabendo que esta é uma perturbação com uma prevalência significativa no nosso país, por que motivo, ainda nos é tão difícil falar sobre ela? Quais os principais mitos ou estigmas associados?

Para mim enquanto psiquiatra, é um silêncio ensurdecedor. Embora a pandemia tenha trazido a depressão para a ordem do dia, a verdade é que ainda é uma doença profundamente estigmatizada e escondida. A depressão não é um sinal de fraqueza. Não resulta de uma falha de carácter ou de falta de força de vontade. Trata-se de um quadro médico que cursa com alterações do sistema nervoso central, endócrino e imunitário. Enquanto não for encarada como tal, será escondida pela vergonha de parecer frágil, pelo medo de parecer fraco ou inferior.

Para ajudar a entender, em que consiste a Depressão, a que sinais devemos estar atentos, e o que a distingue da tristeza? Como se pode distinguir as normais mudanças de humor de um episódio depressivo, por exemplo?

A tristeza faz parte da vivência humana, surgindo como reação normativa (e até útil) face a acontecimentos do quotidiano e às perdas inevitáveis ao longo do ciclo de vida. Tristeza não é sinónimo de depressão! Na depressão, a tristeza assume um carácter persistente, invasivo, dominando toda a experiência interna e afetando o nível de funcionalidade do doente. Além disso, na depressão a tristeza surge acompanhada de um conjunto de outras manifestações clínicas: perda do interesse em atividades outrora prazerosas, diminuição da energia, sentimentos de culpa, dificuldades de concentração e sintomas do próprio corpo: alterações do apetite, do sono, do desejo sexual, do trânsito intestinal e até dores.

Que tipos de depressão existem?

Não há duas depressões iguais. Cada doente pode apresentar uma constelação única de sintomas, carecendo de uma avaliação cuidadosa em consulta.

A que outras perturbações ou problemas de saúde mental pode estar a Depressão associada?

A depressão surge frequentemente associada a outros problemas de saúde mental. Em psiquiatria, quando duas doenças se apresentam juntas, dizemos que coexistem em comorbilidade. É habitual vermos depressão em comorbilidade com perturbações de ansiedade, abuso de álcool e drogas, perturbação de hiperatividade e défice de atenção, perturbações do comportamento alimentar e até demência.

Quais as causas ou fatores de risco associados à depressão? Que tipo de pessoa está mais predisposta a poder sofrer de depressão?

A depressão pode afetar qualquer pessoa, seja qual for a sua idade, estatuto socioeconómico, etnia ou profissão. No entanto, há fatores de risco que aumentam a vulnerabilidade para desenvolver depressão. Por um lado, fatores de risco genéticos, como acontece em pessoas com vários familiares próximos com depressão ou outros quadros psiquiátricos. Por outro lado, fatores de risco psicossociais: desemprego, pobreza, violência, migração, sofrer graves perdas, entre outros.

Embora possa atingir qualquer pessoa em qualquer idade, existe uma faixa etária ou género mais afetado?

A prevalência é maior entre os 18 e os 44 anos e nas mulheres, embora possa afetar também crianças e idosos.

No que diz respeito à sintomatologia, há alguma diferença na forma como a depressão se manifesta numa criança ou adolescente e no adulto? A que sinais devem os pais estar atentos?

Por serem mais impulsivos, os adolescentes são especialmente propensos a expressar o seu mal-estar através de ações. Assim, são comuns as queixas de inquietação motora, explosões de raiva e episódios de agressividade. Mais do que tristes, os adolescentes podem parecer sobretudo irritados ou zangados. Os pais devem estar atentos a um maior isolamento dos jovens, desinvestimento nas atividades de que gostavam antigamente, alterações do sono e do apetite, dificuldades escolares e comportamentos auto-lesivos (magoarem-se a si mesmos).

Em que momento devemos pensar em procurar ajuda?

A procura de ajuda deve ser o mais precoce possível. Quando o sofrimento mental impacta a qualidade de vida ou afeta de forma sustentada o nível de funcionalidade da pessoa (no trabalho, nas atividades de lazer ou na vida familiar), é hora de procurar ajuda!

Qual o tratamento da depressão?

O tratamento deve passar por uma combinação de intervenções farmacológicas (ou seja, medicamentos, quando necessários) com intervenções não-farmacológicas. Nesta última categoria incluem-se as alterações do estilo de vida (como é que a pessoa dorme, dieta, exercício físico, atividades de lazer) e a psicoterapia (também conhecida por talk therapy, habitualmente realizada por psicólogos).

Em casos mais graves, que não respondem ao tratamento farmacológico e/ou psicoterapia, que outras opções terapêuticas existem?

Para casos mais graves, de difícil tratamento, a medicina dispões de outras intervenções valiosas. É o caso da eletroconvulsivoterapia (ECT), da estimulação magnética transcraniana e do promissor uso médico de substâncias psicadélicas, atualmente sob intensa investigação.

Quais as consequências de um diagnóstico tardio ou de uma depressão não tratada?

A depressão não tratada provoca alterações cerebrais que tornam mais difícil o tratamento desse episódio depressivo e que aumentam a probabilidade de vir a ter um novo episódio no futuro. Fala-se até de uma cicatriz depressiva. É por isso que devemos atuar o mais cedo possível!

É possível prevenir a depressão?

Sim! Os indicadores de depressão podem melhorar mediante intervenções preventivas. A promoção da saúde mental deve começar desde o início da vida da criança: cursos de parentalidade positiva (para os pais) e cursos de inteligência emocional para as próprias crianças, nas escolas. Além disso, devemos investir no diagnóstico e tratamento precoce, reforçando os cuidados de saúde primários e o acesso à psicoterapia no SNS.

Os números da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), mostram que nos últimos 20 anos o consumo de antidepressivos aumentos exponencialmente (cerca de 304%). O que estes dados nos estão efetivamente a mostrar: que temos vindo a falhar em matéria de promoção de saúde mental?

Enquanto psiquiatra (inquieta com estes números) já me debrucei várias vezes sobre esta percentagem e creio que para ela concorrem vários fatores. Por um lado, o facto de sermos o segundo país europeu com a prevalência mais alta de doença mental (a seguir à Irlanda do Norte). Temos mais depressão, mas temos sobretudo mais ansiedade, e ambas as doenças são tratadas com antidepressivos. A situação social adversa que vivemos neste momento em Portugal não tem contribuído para a melhoria destes indicadores, pelo contrário. Por outro lado, é importante referir as dificuldades no acesso aos cuidados de saúde, bem como a gritante falta de profissionais de saúde mental não-médicos no SNS, sobretudo de psicólogos. Numa fase inicial da depressão, a doença pode ainda ser tratada sem recurso a medicação, investindo-se na psicoterapia (habitualmente feita por psicólogos). Numa fase mais avançada, de maior gravidade, já será necessário medicar com antidepressivo. O atraso na chegada aos cuidados pode explicar que tenhamos de medicar pessoas que, tratadas precocemente, não teriam tido essa necessidade, ao mesmo tempo que a falta de psicólogos nos deixa sem respostas não-farmacológicas para quem efetivamente acede aos cuidados atempadamente.

Na sua opinião, o que deveria ser feito para tentar mudar este cenário?

Para mudar este cenário faltam iniciativas de prevenção e campanhas de promoção de literacia em saúde mental. Por saberem pouco sobre saúde e doença mental (e por terem tantos mitos e preconceitos), os portugueses atrasam muito a procura de ajuda. Tempo é saúde: quanto maior o período sem tratamento, pior o prognóstico. Quanto menos literacia, mais estigma.

A campanha ‘Viva! Para lá da depressão’ é particularmente poderosa por ter o foco na recuperação! É luminosa, solar e transmite esperança. Dá voz a profissionais de saúde de múltiplas disciplinas - psicologia, nutrição, desporto, medicina geral e familiar e psiquiatria – promovendo um olhar completo sobre a doença em toda a sua complexidade. O tratamento da depressão quer-se multidisciplinar, numa intervenção concertada entre a medicação, a psicoterapia e alterações do estilo de vida, e esta campanha não deixou nenhuma ferramenta terapêutica de fora! Por fim, é uma campanha onde podemos ouvir falar algumas figuras públicas acerca da sua experiência com a depressão, algo que ajuda muito a diminuir o estigma.

No âmbito do Dia Europeu da Depressão, que se assinalou no passado dia 1 de outubro, que mensagem ou conselhos gostaria de deixar?

Consulte um profissional em quem confie. A depressão tem tratamento e quando mais cedo, melhor! Há sempre esperança, mesmo que a doença o convença do contrário.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.