Tal como foi descrito na 1ª parte [1] deste trabalho, a dor não é uma doença, mas antes um sintoma que faz parte do quadro clínico de inúmeras doenças. A dor pode ainda ocorrer naturalmente (faz parte de diversas situações fisiológicas), pode ser provocada pelos próprios profissionais de saúde no contexto de alguns tratamentos ou exames e pode mesmo existir sem uma base física reconhecida (dor psicogénica).
A dor tem inúmeras causas, pode ser provocada por vários mecanismos diferentes, apresenta-se de muitas formas, tem diferentes graus de intensidade e de duração, afeta todas as pessoas (embora seja percebida e interpretada de forma diferente por cada pessoa), tem um grande impacto na qualidade de vida dos doentes e gera elevados custos socioeconómicos diretos e indiretos.
Nos últimos anos, a “epidemia” de doenças oncológicas (muitas delas não fatais, mas transformadas em “doenças crónicas”, que cursam com sequelas importantes e dor intensa e prolongada) e o envelhecimento da população (maior número de pessoas com problemas de saúde em que a dor é um sintoma importante, como as doenças neurológicas e reumáticas crónicas) transformaram a dor num verdadeiro problema de saúde pública e obrigaram ao desenvolvimento de novas formas de tratamento.
No seguimento da investigação científica efetuada nesta área, a dor crónica veio a ser reconhecida como uma doença “autónoma, grave e debilitante” e o seu alívio, através de tratamento adequado, tornou-se um direito para os doentes e um dever para a sociedade em geral e para os profissionais de saúde em particular.
Para dar resposta a estas exigências, desenvolveram-se planos nacionais para a prevenção e controle da dor e redes de Cuidados Continuados e Paliativos e criaram-se competências em Medicina da Dor e serviços de saúde multidisciplinares dedicados exclusivamente à dor (Unidades de Dor).
No entanto, a grande maioria dos doentes com dor é, e deve ser, acompanhada nos cuidados de saúde primários, cabendo aos “médicos assistentes” avaliar os doentes, tratar os casos de dor ligeira e moderada, referenciar para cuidados diferenciados os casos mais graves e complexos e acompanhar de forma holística os doentes com dor, segundo modelos biopsicossociais que contemplem as implicações psicológicas, sociais e culturais da dor.
Esta abordagem multidimensional da gestão da dor é complexa, exigindo uma boa preparação técnica, uma enorme dedicação e uma grande disponibilidade de tempo por parte dos profissionais de saúde, o que não é fácil de conseguir numa época em que todos os minutos são contados e se trabalha muitas vezes “ao cronómetro”.
A dor é um sintoma bastante subjetivo, com uma grande componente emocional, pelo que cada pessoa tem a sua própria maneira de “viver” as dores: a “mesma dor” pode ser considerada por pessoas diferentes como leve, moderada, intensa ou horrível, pode ser tolerável ou intolerável, pode condicionar ou não as atividades da vida diária, pode exigir ou dispensar o apoio de cuidadores, pode gerar ou não perturbações mentais, como a ansiedade ou a depressão e pode mesmo conduzir ao suicídio.
É por isto importante caracterizar a dor, para o que existem escalas de dor, diários da dor e uma série de questionários padronizados que ajudam a medir melhor a intensidade da dor, a acompanhar a sua evolução ao longo do tempo, a calcular o seu impacto na vida dos doentes e dos seus cuidadores e a perceber a eficácia da medicação analgésica instituída.
Analisando uma dor à luz destes critérios, compreende-se que nem sempre é preciso tratar uma dor ligeira, de curta duração e bem tolerada (como sucede com a dor de uma pequena ferida ou de uma queimadura solar de primeiro grau, vulgarmente conhecida como um escaldão) e que é absolutamente vital tratar as dores agudas muito intensas (como algumas dores pós-operatórias, as cólicas renais graves ou enxaquecas intensas) ou uma dor crónica, mesmo que seja moderada, mas que provoca grande sofrimento e limita gravemente a vida do doente (como sucede nas doenças oncológicas, nas hérnias discais ou nas artroses graves).
Na maioria casos deve ter-se em consideração a vontade dos doentes de tratar ou não as suas dores (cabendo-lhes decidir se realmente precisam de as controlar ativamente ou se preferem tolerá-las sem tratamento, evitando assim os efeitos adversos dos medicamentos analgésicos), mas em algumas situações é quase obrigatório tratar rápida e energicamente a dor, para facilitar a cura da própria doença de base (no pós-operatório das grandes cirurgias, nos politraumatismos e nas queimaduras graves os doentes devem estar calmos e sem dor para facilitar os processos de cicatrização) e para evitar que as dores se cronifiquem e passem a ser “autónomas”, isto é, independentes da sua própria causa (como sucede em algumas dores nociceptivas agudas e na maioria das dores neuropáticas e oncológicas).
O alívio da dor é um direito dos doentes, cabendo aos profissionais de saúde o dever de promover esse alívio da forma mais rápida, eficaz e segura possível.
Atendendo à enorme diversidade das situações dolorosas e dos mecanismos fisiopatológicos da dor, compreende-se que a analgesia é muito mais do que a administração de medicamentos, cabendo um papel muito importante aos tratamentos adjuvantes, não farmacológicos.
Muitas vezes, as dores desaparecem quando se curam as doenças a que “pertencem” ou se resolvem as causas que as justificam (uma cólica renal resolve-se quando o cálculo que obstrui o uretero passa para a bexiga, a dor de um abcesso dentário desaparece quando se trata a infecção, as lombalgias das contracturas musculares cedem ao calor e às massagens relaxantes), mas este princípio não se aplica a todas as dores (algumas dores ciáticas persistem depois de operar as hérnias discais, as nevralgias da zona podem durar muitos anos após a cura da infecção, em certas fracturas a dor persiste mesmo depois delas estarem consolidadas).
Sempre que se decida tratar uma dor, deve ter-se em conta uma série de critérios técnicos, humanos, logísticos e económicos na escolha do esquema de tratamento, que deve ser:
É de grande interesse clínico a utilização dos tratamentos não farmacológicos da dor, também designados tratamentos “adjuvantes”, embora este termo não seja muito preciso, por levar a pensar que só se devem usar como complemento dos tratamentos farmacológicos.
Na verdade, muitas vezes os tratamentos adjuvantes são suficientes para controlar as dores, ao resolvem diretamente as suas causas. Por outro lado, são muito bem aceites pelos doentes, são muito acessíveis, têm poucas contraindicações e causam poucos efeitos adversos.
Dos muitos tratamentos não farmacológicos da dor, realçam-se os seguintes:
Apesar dos bons resultados que se podem obter com os tratamentos não farmacológicos, em muitos casos de dor aguda moderada a grave e em quase todos os casos de dor crónica é necessário recorrer a medicamentos para controlar a dor, existindo múltiplos esquemas terapêuticos e normas de tratamento bem estabelecidos para a maioria das situações clínicas, que não cabe descrever no âmbito deste trabalho.
De uma forma simplista, estes medicamentos dividem-se em dois grandes grupos: os analgésicos propriamente ditos e os fármacos adjuvantes, mais ou menos potentes, utilizados isoladamente ou em associação, administrados por diferentes vias, com perfis de segurança diversos, com muitos efeitos adversos e com custos por vezes importantes.
Os analgésicos propriamente ditos
Estes medicamentos distribuem-se por vários grandes grupos:
Apesar de serem extremamente úteis na prática médica atual, os medicamentos analgésicos são também uma fonte constante de preocupação, devido às suas interações com outros medicamentos e aos seus inúmeros efeitos adversos.
Na impossibilidade de abordar com detalhe este problema, fica um alerta para a necessidade de olhar para os analgésicos como facas de dois gumes, que tratam a dor mas têm efeitos secundários importantes, que podem provocar graves problemas de saúde (insuficiência hepática e renal, depressão respiratória, hipertensão arterial, tromboses, hemorragias, aplasia medular…) e inclusivamente causar a morte.
A título de exemplo, pode-se realçar a necessidade de evitar o consumo de álcool em simultâneo com uma boa parte dos analgésicos (especialmente os anti-inflamatórios, opióides, sedativos, anti-depressivos, anti-convulsivantes, relaxantes musculares e antagonistas dos NMDA) e o potencial que os opióides têm de provocar habituação e dependência (com os riscos inerentes de morte por “overdose”).
Em conclusão, pode dizer-se que a grande complexidade do tratamento da dor não se compadece com amadorismos e atitudes empíricas e que a escolha dos analgésicos é um acto técnico, que compete aos profissionais de saúde.
Dr. Viriato Horta
Especialista de Medicina Geral e Familiar
Ligações
[1] https://www.atlasdasaude.pt/publico/content/dor-e-o-seu-tratamento-1a-parte
[2] https://www.atlasdasaude.pt/foto/shutterstock
[3] https://www.atlasdasaude.pt/taxo-categories/artigos-de-opiniao
[4] https://www.atlasdasaude.pt/taxo-categories/sistema-musculoesqueletico
[5] https://www.atlasdasaude.pt/taxo-categories/sistema-nervoso