Doença atinge 10% das mulheres em idade reprodutiva

Tenho endometriose. E agora?

Atualizado: 
19/02/2018 - 17:07
Dor menstrual intensa e incapacitante, desconforto na bexiga ou dor nas relações sexuais são os principais sintomas da endometriose, uma doença ginecológica de natureza progressiva, e sem cura, considerada uma das maiores causas da infertilidade feminina. Patrícia Mesquita recebeu este diagnóstico aos 30 anos. “No início, o pânico fez com que ficasse com a ideia que seria impossível engravidar”, recorda.

De causa desconhecida, embora se admita que fatores genéticos, hormonais, imunológicos ou ambientais possam estar na sua origem, a Endometriose é uma condição clínica crónica que atinge cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva. E, apesar de se estimar que em 80% dos casos o principal sintoma é a dor intensa, esta patologia pode ser assintomática.

“A endometriose é uma doença crónica, benigna, que se caracteriza pelo crescimento de tecido endometrial (glândulas e estroma) fora do seu local habitual que é a cavidade uterina. Este focos vão colonizar a cavidade abdominal e também os órgãos vizinhos”, começa por explicar Fátima Faustino, ginecologista, coordenadora da Unidade Integrada de Endometriose do Hospital Lusíadas Lisboa.

De acordo com a especialista, “sempre que ocorre a menstruação existe sagramento nestas zonas, o que vai provocar uma reação inflamatória crónica”, que pode produzir aderência nos órgãos e o crescimento de tumores que “apesar de benignos, trazem grande transtorno como dor”, conduzindo em muitos casos à infertilidade.

Patrícia Mesquita descobriu “por acaso” que sofria da patologia. Apesar de não apresentar qualquer sintoma que “necessitasse de pesquisa ou identificação”, a doença já se encontrava numa fase avançada, sendo caraterizada como uma endometriose profunda. Tinha 30 anos.

“Existem vários tipos de endometriose”, esclarece a especialista que a classifica enquanto “endometriose superficial ou peritoneal, caracterizada por lesões disseminadas na superfície (peritoneu) do interior do abdómen, podendo atingir o diafragma”, endometriose ovárica com implantes na face externa dos ovários que conduz à formação de quistos (também designados por endometriomas) e endometriose infiltrativa profunda. Sendo que nesta última,  “em que os implantes alcançam uma profundidade superior a 5 milímetros”, a doença pode envolver o septo recto-vaginal e espaço vesico-uterino, “atingindo órgãos pélvicos como o recto, vagina, cólon sigmoide, uréteres, bexiga e nervos superficiais e profundos”. Órgãos mais distantes como o apêndice, diafragma e pulmão, também podem vir a ser afetados.  

Na sua forma mais grave, quando apresenta “infiltração dos órgãos adjacentes, pode conduzir a obstrução/perfuração intestinal ou obstrução dos uréteres com consequente interferência no funcionamento dos rins”, prejudicando severamente a função renal.

Pneumotorax ou derrame pleural são as consequências mais graves da doença, quando esta envolve o pulmão. No entanto, tal como descreve Fátima Faustino, estes são casos muito raros. 

No caso de Patrícia Mesquita, a doença afeta apenas o sistema reprodutor - “paredes externas do útero, trompas e ovários”. No entanto, dada a sua localização envolve já todo o canal rectovaginal.

Cirurgia e medicação, as armas terapêuticas contra a endometriose

De acordo com a especialista, o tratamento da doença deve ser individualizado “tendo em conta a idade da doente, a extensão e gravidade da doença, o desejo de engravidar e a sintomatologia dolorosa”.

Não obstante, Fátima Faustino afirma que a maioria das mulheres beneficia do tratamento médico que proporciona um alívio da dor e controlo na progressão da doença.

“A variedade de fármacos usado no tratamento da endometriose divide-se em dois grupos: os específicos para o tratamento da doença e os que são usados off-label”, explica.

Na primeira categoria enquadra-se a hormona libertadora de gonadotrofinas (GnRH), o danazol. “Estes fármacos promovem a atrofia de lesões endometrióticas e induzem a amenorreia – ausência de menstruação – através de forte redução da produção de estrogéneo”, refere acrescentando que, no entanto, dado os seus efeitos adversos, estes não devem ser usados de forma prolongada.

“Outra classe terapêutica usada para tratar a endometriose são os progestativos e destes destaca-se o dienogest, o único progestativo investigado de forma sistematizada para o tratamento da endometriose”, explica admitindo que estes são a primeira escolha para o tratamento da doença, uma vez que apresentam uma grande eficácia na redução da dor e menos efeitos secundários.  

No âmbito da terapêutica, existem ainda outros fármacos não específicos para a patologia, como os anti-inflamatórios não esteróides ou contracetivos orais não combinados, que podem ter efeitos positivos no seu tratamento.  

Já a abordagem cirurgica está indicada para casos que associam dor pélvica intensa (apesar desta nem sempre ser proporcional à gravidade das lesões) e infertilidade.

“Os principais objetivos da cirurgia são a excisão das lesões e a reposição da anatomia pélvica, tendo em consideração que se tratam habitualmente de mulheres jovens que querem engravidar, pelo que teremos de optar por uma cirurgia que conserve a integridade do útero, ovários e trompas”, explica a ginecologista.

Deste modo, afirma que a abordadem deverá ser, sempre que possível, minimamente invasiva, ou seja, via laparoscópica.

“No meu caso, o alastramento da doença poderia induzir a uma cirurgia imediata, mas a ausência de sintomas faz com que seja, atualmente, mais prudente controlar a sua evolução com recurso a exames médicos. Quando isso deixar de ser possível, passaremos para a cirurgia”, revela Patrícia Mesquita.


"É importante dizer que embora a característica mais falada seja as fortes dores, muitas vezes a doença pode ser silenciosa, como foi no meu caso", realça Patrícia 

Complexidade da doença e falta de informação dificultam diagnóstico

“A endometriose sempre foi conhecida pelos ginecologistas como uma doença complexa”, afirma Fátima Faustino. No entanto, dado o seu impacto e o agravamento que tem vindo a registar nos últimos anos, considera que “só agora os médicos começam a estar mais sensibilizados para a gravidade e consequências da endometriose”.

Ouvir as doentes e observá-las com atenção é pois, na opinião desta especialista, fundamental uma vez que permite considerar a doença como hipótese de diagnóstico.

A ecografia pélvica com sonda vaginal e retal e a ressonância magnética nuclear são os exames complementares que permitem identificar a doença. “No entanto, um exame negativo não exclui a doença, porque o diagnóstico definitivo só é possível por laparoscopia, que nos permite a visualização e biópsia das lesões”, ressalva a médica.

Foi também uma explicação semelhante que Patrícia recebeu aquando o seu diagnóstico. “Foi-me explicado pelo técnico, e posteriormente pela minha ginecologista, que as ecografias ginecológicas com sonda poderiam não ser conclusivas e teria de fazer uma ressonância magnética”, recorda a jovem revelando que, nessa altura, teve esperança de não se tratar de endometriose. “Afinal, eu não tinha sintomas. Como poderia ter esta doença? Pensei que poderia ser outra coisa qualquer, mas confesso que nem sabia bem o quê”, acrescenta.

No entanto, o resultado do exame não deixaria margem para dúvidas. “Um conjunto de termos técnicos assustadores culminam na conclusão que se tratava de endometriose profunda, com um elevado processo de aderência das trompas e o comprometimento do canal rectovaginal, embora se mantenha a integridade dos intestinos”, revela.

Dado o estado avançado da doença, Patrícia pode apenas supor que já convive com a endometriose há vários anos. “O que significa que os médicos que me acompanharam até aos meus 30 anos não a conseguiram identificar”, afirma considerando que, para além de muitos especialistas não estarem sensibilizados para a gravidade desta doença, também falta informação aos técnicos que realizam os exames que “procuram outro tipo de lesão”.

“Infelizmente, é preciso sorte com os médicos que encontramos. E sorte é palavra que em saúde jamais deveria ser usada”, lamenta destacando a necessidade de entender que esta é uma doença muitas vezes silenciosa.

De acordo com Fátima Faustino, coordenadora da Unidade Integrada de Endometriose do Hospital Lusíadas de Lisboa, há ainda um longo caminho a percorrer quanto a esta matéria.

“Muito se tem feito, nos últimos anos, através de reuniões científicas nacionais e internacionais, e a Sociedade Portuguesa de Ginecologia tem tido um papel essencial na divulgação da doença à classe médica”, afiança destacando ainda o trabalho realizado pela MulherEndo, associação de apoio a doentes com esta patologia. Para além de ações de sensibilização e orientação das doentes, tem tentado chegar ao Governo na tentativa de “dar a esta doença o estatuto de doença crónica”. “Há um longo percurso a percorrer, mas penso que estamos no bom caminho”, afirma Fátima Faustino.

O diagnóstico de uma doença «é sempre assustador»

Perante o diagnóstico de uma doença crónica, seja ela progressiva ou não, muitos são os doentes que não são capazes de lidar sozinhos com a complexidade da sua situação.

A verdade é que, tal como explica a psicóloga Sílvia Botelho, “as doenças crónicas progressivas exigem uma adaptação psicológica e emocional significativa na vida das pessoas” e alguns doentes passam a ter uma visão muito negativa do seu futuro, antecipando que o “seu sofrimento ou dificuldades atuais, continuarão indefinidamente”.

“Quando recebemos um diagnóstico de uma doença é sempre assustador”, admite Patricía Mesquita que foi tomada de assalto por inúmeras dúvidas. “A questão da fertilidade, como a doença ia evoluir e condicionar a minha vida”, recorda assegurando, no entanto, que apesar de tudo nunca pensou em baixar os braços. “Eu quis saber logo tudo sobre a doença para a conseguir vencer”, afirma.

Stress e ansiedade são, na realidade, quadros bastante comuns a esta condição ginecológica crónica, que influencia e exerce um impacto direto na qualidade de vida conjugal, social, profissional “e até os planos futuros para a concepção”.

De acordo com a psicóloga, o diagnóstico e “todo o processo da doença “ podem ser vividos com grande sofrimento, não só físico (quando há sintomatologia associada) mas também psicológico.

No caso de endometriose, sabe-se que “muitas vezes o atraso no diagnóstico pode aumentar os riscos de transtornos depressivos ou outras alterações de humor que podem prejudicar a qualidade de vida da mulher”. É por isso que, na opinião desta especialista, a atenção dispensada às pacientes com endometriose deveria ser focada não apenas na doença “mas na mulher como um todo, tendo em vista os problemas emocionais, sexuais e sociais que causa nas pacientes”.

É, por isso, importante aprender novos comportamentos, novos hábitos e crenças. “Focar-se essencialmente na resolução de problemas e não tanto em alimentar o problema”, refere Sílvia Botelho.

Um diagnóstico de doença crónica pode ser avassalador sim! Mas é também, de acordo com a especialista, “o maior desafio da vida, que nos faz crescer, ganhar uma maior resistência”. Um desafio com “começo, meio e fim”, assegura.

E foi na resiliência que Patrícia Mesquita encontrou a sua maior aliada. Porque desistir nunca foi opção e talvez, por isso, deixe o apelo a outras mulheres: “não se habituem às dores considerando que se trata de algo normal. Quando algo dói no nosso corpo é sinal que ele não está bem. É a forma de ele nos pedir ajuda”.

A outras pacientes pede esperança. “Que os avanço na medicina nos tragam boas novas”.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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