Neurologia Pediátrica

Paralisia cerebral afeta 2 em cada mil crianças

Atualizado: 
27/12/2016 - 10:55
Considerada como uma disfunção motora que afeta duas em cada mil crianças, a paralisia cerebral “é resultado de uma lesão cerebral que não é continuada no tempo”. O especialista José Pedro Vieira explica em que consiste.

Em 1861 William Little, um cirurgião ortopédico, comunicou à Sociedade Obstétrica de Londres um trabalho em que defendia que um parto difícil e a «sufocação» do bébé no momento do parto produziam uma lesão cerebral que se manifestava por paralisia e rigidez. Não muito depois, no final do século XIX, Sigmund Freud contestou esta teoria. Freud argumentava que muitos bébés que sofreram asfixia no parto se desenvolviam, subsequentemente, de modo normal. Propunha, alternativamente, que um desenvolvimento cerebral anormal na vida fetal estaria subjacente à paralisia cerebral.

Sir William Osler, um influente médico do século XIX, foi o primeiro a utilizar o termo «paralisia cerebral» na literatura médica.

Curiosamente, mais de um século e meio depois, as duas hipóteses revelaram-se não exclusivas mas sim complementares. As duas foram confirmadas por investigações posteriores.

Múltiplos eventos anteriores ao parto como a exposição tóxicos, anomalias genéticas, acidentes vasculares cerebrais ou infeção fetal podem produzir uma lesão cerebral. Na vida pós natal o parto é um momento chave: traumatismo e asfixia são as principais agressões. Infeção continua a ser uma causa importante de paralisia cerebral na vida pós natal.

Muito se especulou também por razões médico-legais, se a asfixia intraparto era a causa preponderante de paralisia cerebral: os métodos actualmente disponíveis (sobretudo a Ressonância Magnética cerebral) sugerem que é causa em apenas 10% dos casos. 

Os efeitos que produz uma lesão cerebral dependem do tipo de agente ou situação agressora.

Doenças diferentes poderão assim produzir efeitos próprios (por exemplo, infecção na vida fetal com frequência causa alterações nos olhos ou surdez; asfixia terá como consequências principais disfunção motora e cognitiva, defeitos de desenvolvimento de natureza genética podem manifestar defeitos de desenvolvimento craniofacial e mais raramente de outros órgãos, etc). No mesmo grupo de causas pode o grau de gravidade das consequências ser variável.

As lesões cerebrais dependem ainda do estado de desenvolvimento em que o feto ou a criança se encontram. Por exemplo, a mesma asfixia no período perinatal actuando num bébé que nasce no termo da gestação (40 semanas) produz um padrão de paralisia diferente comparativamente com um bébé prematuro. Mesmo no contexto de prematuridade existem variantes relacionadas, por exemplo, com a prematuridade extrema.

O conceito de paralisia cerebral evoluiu finalmente para definir uma disfunção motora (frequentemente associada a disfunção cognitiva e sensorial e a epilepsia) resultante de uma lesão cerebral ocorrida na vida fetal ou numa fase precoce do desenvolvimento.

Esta disfunção ou dificuldade motora (e as disfunções associadas) será não progressiva, no sentido que é o resultado (ou a «sequela») de uma lesão cerebral que não é continuada no tempo.

Deve acentuar-se, na linha do que expusemos acima, que a expressão final de paralisia cerebral não está presente imediatamente após se constituir uma lesão: a constituição/«cicatrização» da lesão e o desenvolvimento do bébé  nos primeiros anos de vida são dois processos de sinal oposto. O resultado final, as dificuldades ou disfunções que irão ocorrer mais tarde, requer uma observação cuidada, experiente e prolongada no tempo.

Paralisia cerebral ocorre um cerca de 2/1000 crianças.

A disfunção motora mais comum é a paralisia e uma «rigidez» muscular associada chamada hipertonia espástica.

Existe um padrão unilateral de paralisia (variante «hemiplégica») em que sómente os membros superior e inferior direitos ou esquerdos são afectados pela paralisia e hipertonia.

Também ocorre a variante  com envolvimento mais grave nos membros inferiores que nos membros superiores (chamada «diplégica»), habitualmente resultante de complicações neurológicas da prematuridade.

Existem casos de paralisia cerebral em que o defeito é sobretudo de controle de movimento (forma «extrapiramidal»). Manifestam-se por movimentos involuntários que se assemelham a movimentos de «torsão» nos membros e no tronco.

Finalmente, na forma mais grave, os 4 membros são afectados por uma paralisia com hipertonia espástica («tetraplégica»).

O envolvimento pode afectar os músculos da face, boca e laringe e perturbar ou mesmo impedir a articulação das palavras («disartria»).

Uma criança com paralisia cerebral terá uma dificuldade motora que pode ser mais ou menos significativa (poderá por exemplo observar-se somente o uso preponderante de uma das mãos, com a outra demonstrando uma subtil lentidão e dificuldade para realizar movimentos com mais precisão).

Quanto ao grau de gravidade das disfunções associadas aplica-se também o comentário acima: 20 a 60% com dificuldades de aprendizagem e défice cognitivo, cerca de 30% com epilepsia, 40% com problemas visuais (frequentemente estrabismo). Salientamos que um número significativo de crianças com paralisia cerebral irá ter (em alguns casos mesmo quando afectado por uma doença motora grave) uma aprendizagem escolar adequada.

No decurso da infância e adolescência, alguns problemas ortopédicos podem manifestar-se: a paralisia e a rigidez determinam menos mobilidade de articulações, colocam um «stress» sobre determinadas articulações (sobretudo as ancas), pode evoluir uma curvatura da coluna vertebral (escoliose).

Algumas crianças com paralisia cerebral têm refluxo do conteúdo ácido do estômago para o esófago (pelo posicionamento deitado, pela hipertonia dos músculos, que aumenta a pressão intra-abdominal). A dificuldade para a deglutição e o refluxo gastro-esofágico podem causar aspiração para as vias respiratórias.

Outros terão alguma disfunção do controle (esvaziamento) da bexiga e propensão para infeções urinárias.

A investigação sobre paralisia cerebral tem permitido um melhor conhecimento das causas e algumas atitudes preventivas: por exemplo a vacinação contra a rubéola erradicou rubéola congénita que no passado era uma causa de cegueira, surdez e paralisia cerebral.

A hipotermia (arrefecimento corporal) protege o cérebro (e os outros órgãos) da privação de oxigénio e do défice de compostos energéticos e demonstrou ter um efeito não só sobre a mortalidade como também sobre a gravidade das sequelas quando ocorre uma asfixia no momento do parto.

A intervenção sobre paralisia cerebral usa diferentes técnicas, salientando-se a Fisioterapia, Terapia Ocupacional e Terapia da fala.

Várias tecnologias de comunicação aumentativa têm sido desenvolvidas para melhorar a comunicação das crianças com incapacidade motora para falar.

A toxina botulínica é uma substância paralisante que, injectada em músculos selecionados, produz uma diminuição da rigidez hipertónica podendo atenuar o impacto sobre as articulações.

O Ortopedista pode realizar diversas intervenções para corrigir a postura de articulações ou para corrigir escoliose ou luxação da anca.

 Uma intervenção directa capaz de «corrigir» a lesão que causou a disfunção cerebral seria um objectivo último. Teóricamente as chamadas «células estaminais» teriam a capacidade de se diferenciarem em células cerebrais e «ocupar o lugar» de outras afectadas por uma doença.

Não é certo que estas células, uma vez localizadas numa lesão, possam reconstituir a arquitectura e o funcionamento de um cérebro normal. Teriam que ser administradas por uma via directa para o Sistema Nervoso. Este modelo de intervenção está actualmente num processo de investigação, experimental, e não existem dados firmes ou conclusivos quanto à eficácia e à segurança.

Autor: 
Dr. José Pedro Vieira – Neurologista Pediátrio Hospital Lusíadas Lisboa
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Pixabay